Título: Mercado vê BC com duplo mandato
Autor: Bittencourt , Angela
Fonte: Valor Econômico, 26/09/2012, Finanças, p. C1

O juro no Brasil não parece estar à beira de uma mudança de mão, mas a perspectiva de prolongada manutenção da taxa básica no menor nível da história do país provoca ruído. E não é de graça. Na contramão dessa estabilidade pressentida da taxa Selic, se mantém inabalável a taxa de inflação que coloca em xeque o mandato do Banco Central. Não há consenso de que o BC abandonou o regime de metas para a inflação. Mas economistas entrevistados pelo Valor veem mudanças evidentes em seu mandato. E, de cinco analistas consultados, três consideram que o BC cumpre informalmente, hoje, um duplo ou triplo mandato seja por força da instabilidade externa, de uma nova concepção de política macroeconômica ou da percepção de que o BC do governo Dilma Rousseff é mais flexível e sensível especialmente ao crescimento. A convicção de que o país não segue mais o regime de câmbio flutuante também interfere na avaliação sobre o zelo com a inflação. Se o câmbio perdeu a função de "variável de ajuste" de pressões externas sobre preços domésticos, a inflação muda e a tarefa do BC é afetada.

"Por conta da indústria, o governo decidiu mudar o regime cambial e só isso já traz um novo contexto a considerar", explica Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro do governo Fernando Henrique Cardoso. "Os choques externos afetam os preços domésticos e a inflação vai ser pressionada porque a atividade também está se aquecendo. Mas há a considerar também que o BC mudou de direção e que é mais sensível ao duplo mandato e, além de olhar a inflação, olha o crescimento econômico. Esse discurso do BC sobre a convergência futura da inflação não existe. É uma enganação."

Mendonça de Barros defende que o governo assuma claramente que ocorreram alterações no regime de metas de inflação e no regime cambial do país. "Indicações claras do governo são importantes para a previsibilidade dos cenários. E o mundo não acaba por definições claras do papel do BC, inclusive, porque esse tipo de discussão vai e volta. E não só aqui", explica o economista que vê o debate presente hoje nos Estados Unidos.

"O mandato do Fed não é único. Mas já foi. O Bundesbank, num contexto de pós-guerra, teve um mandato único rígido, dado o contexto de hiperinflação. E, hoje, diante da ameaça de uma grande depressão, o Banco Central Europeu vai fazer uma leitura torta do seu mandato que deveria ser único, mas que neste momento também tem o suporte para a atividade na mira. Isso mostra que o mandato único não funciona", afirma o sócio da Quest Investimentos que recorda o fato de, no Brasil, por força das circunstâncias - adoção do regime de metas logo após a desvalorização de 1999 em meio a uma crise de confiança - o mandato do BC ter saído mais com "a rigidez alemã do que com a flexibilidade americana".

Para Alexandre Schwartsman, ex-diretor do BC e sócio da Schwartsman & Associados, o BC cumpre um triplo mandato. "Só não tem inflação, que se transformou em variável de ajuste até o limite de 6,5% [teto da banda do regime de metas]. Está claro que os objetivos perseguidos pelo BC são crescer, manter o dólar depreciado e o juro baixo", afirma o economista, que identifica um BC menos autônomo do que o já visto no país.

Marcelo Carvalho, economista-chefe do BNP Paribas para a América Latina, considera injusto afirmar que o Brasil abandonou o regime de metas, mas reconhece que os pesos mudaram. "Hoje, o governo dá mais peso aos desvios do crescimento do que no passado exatamente como muitos governos estão fazendo no mundo. Há um custo, que é mais inflação. E isso está claro e parece estar claro também para o governo", avalia.

Ao considerar que ocorreram também mudanças no câmbio, "com um regime flutuante que não flutua", o regime de metas só sobrevive com o BC jogando areia nas engrenagens, pondera o economista do BNP. "A conta de capital não pode ser tão aberta, o dólar não pode ser tão flutuante e a inflação acaba sendo maior. Se o BC estivesse olhando somente a inflação, o juro não seria o que é hoje."

Carlos Eduardo Gonçalves, professor da FEA/USP, reconhece que o BC não está cumprindo estritamente o mandato estipulado pelo Conselho Monetário Nacional. "Não está perseguindo da mesma forma como o BC do governo Lula, que focava a inflação no centro da meta. Isso pode afetar expectativas, mas não tem implicações sobre o crescimento." Para ele, tanto o BC quanto a presidente Dilma se preocupam com a inflação. "Vejo o BC com mandato duplo, inclusive, porque não dá para falar do BC separadamente da política econômica do governo. E ambos querem crescimento e ambos querem juro baixo. Mas parece claro que o BC subirá a taxa de juro se a inflação estiver avançando para o teto da meta. Buscar o centro da meta certamente não é a prioridade."

Paulo Tenani, professor da Fundação Getúlio Vargas, pensa diferente. Vê o BC cumprindo o mandato de buscar a estabilidade de preços. "A inflação está dentro da meta. E o Banco Central tem se mostrado cauteloso em suas ações. É menos ativista que outros BCs, o que dá certo alívio aos mercados."