Título: Programa social abre oportunidades no mercado
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Fonte: Valor Econômico, 24/10/2006, Caderno Especial, p. F3

O aparentemente etéreo tema da sustentabilidade vem sendo tratado de forma bem concreta - e rentável - por empresas de primeira linha que atuam no Brasil e na América Latina. Ao inserir questões sociais e ambientais no cerne de sua estratégia, empresas como VCP, Unilever e Cemex vêm percebendo que não dá para alcançar bons resultados atuando no formato tradicional de se fazer negócios. "Para superar barreiras econômicas, físicas e sociais, as empresas devem alterar as suas estruturas e desenvolver novos produtos e serviços", diz João Teixeira Pires, professor do Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (CEATS) da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP).

Em estudo do CEATS em conjunto com outras universidades da América Latina, coordenado pela norte-americana Universidade de Harvard, verificou-se que as 11 empresas estudadas tiveram que mudar seu jeito de pensar e agir para integrar as camadas de renda mais baixa da população ao seu negócio - seja como fornecedores, parceiros ou clientes. "Os principais desafios estão em trabalhar diferenças culturais, lidar com restrições financeiras, desenvolver novas cadeias de valor e adotar sistemas participativos de gestão", avalia Pires. "É um processo que dá trabalho".

Em quatro dos casos analisados, as empresas perceberam, logo de partida, oportunidades de negócios na integração com populações carentes. Por exemplo, como fonte de matéria-prima. O caso mais emblemático, no Brasil, é a Natura, que trabalhou fornecedores em comunidades da Amazônia para lançar a linha Ekos. O enfoque pode estar também no mercado consumidor de baixa renda. A mexicana Cemex adotou um modelo de gestão à parte para inserir a população pobre em seu portfólio de clientes. Contratou pessoas da própria comunidade para serem espécies de promotores na venda de cimento, selecionando aquelas que já eram reconhecidas em fornecer à vizinhança bons produtos a preços razoáveis.

Em três casos, o que moveu as empresas foram as ameaças a seu redor. A AES - Eletricidad de Caracas (AES-EDC), que fornece energia na área metropolitana da capital venezuelana, foi obrigada a criar um contrato próprio para pessoas de baixa renda de forma a reduzir as conexões ilegais, que chegaram a representar 18% da energia produzida pela empresa em 2004. Organizações não-governamentais pressionaram a rede de cafeterias Starbucks a comprar grãos de pequenos produtores em Chiapas (México), assim como a preservar a diversidade de flora e fauna da região.

A última alternativa é começar por projetos filantrópicos, para conhecer melhor as necessidades das comunidades e, posteriormente, gerar oportunidades de mercado. A Unilever do Brasil não fez parte do estudo de Harvard, mas é um bom exemplo neste sentido. Com projetos como o Mais Vida, que visa melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em Araçoiaba, cidade de Pernambuco com o 5º pior IDH do Estado, profissionais da empresa fazem o primeiro contato com a população de baixa renda ."Estamos conhecendo as necessidades da população de baixa renda", diz Elaine Molina, gerente de Responsabilidade Social corporativa da Unilever. Ao conviver um longo período com os moradores de Araçoiaba, verificou-se que os hábitos de higiene pessoal e limpeza do ambiente são precários para quem enxerga com olhos de multinacional. "Na hora de elaborar o marketing, é preciso abordar não apenas o produto, mas também a educação", afirma Molina.

A Unilever não quer repetir erros de sua concorrente a Procter &Gamble. Depois do fracasso com o NutriDelight, uma bebida rica em micronutrientes lançada nas Filipinas, por conta de preço alto e falta de rede de distribuição, a P&G lançou o PuR, um saquinho em pó que purifica a água, tornando-a potável. A multinacional começou a introduzir o produto na Guatemala, Filipinas, Marrocos e Paquistão a US$ 0,10 o saquinho, o equivalente ao preço de um ovo. Só que, para uma população acostumada a tomar água sem tratamento desde o nascimento, ainda é um valor alto a pagar.

"Muitas empresas fazem um levantamento superficial e acham que dá para entender a realidade local", avalia Pires, do CEATS. Na maioria das vezes, superar hiatos culturais e costurar laços com a comunidade é um trabalho de anos. Foi o que aconteceu com a AES-EDC, em Caracas. A empresa havia sido fundada por membros da elite no início do século 20, com olhos apenas para os consumidores de renda média e alta - quando muito, pois os resultados da companhia monopolista eram medidos em kilowatts-hora, e não pela satisfação dos clientes. Depois da privatização, a sua nova dona, a americana AES, pressionada pelo alto prejuízo dos "gatos", passou a pensar em soluções para transformar os "sabotadores" em consumidores.

A inovação veio dos funcionários da área técnica, muitos dos quais moradores de regiões de baixa renda. Trinta deles se reuniram para convencer o topo da administração de que havia como mudar a situação. Primeiro, trabalharam de forma voluntária. Com os bons resultados, o projeto seguiu em frente. Na primeira vez que entraram na favela, os funcionários da AES-EDC foram recepcionados pela mira de armas pesadas.

-------------------------------------------------------------------------------- Superar hiatos culturais e costurar laços com a comunidade é, muitas vezes, um trabalho de anos --------------------------------------------------------------------------------

Assistentes sociais e sociólogos (e, note-se, nenhum especialista em marketing) foram a campo para entender as necessidades e aspirações. Descobriram, por exemplo, que usar secador de cabelo era alta prioridade. Outro achado: a energia "roubada" não saía de graça, não. Os moradores pagavam para vizinhos qualificados fazerem a ligação ilegal. Os eletricistas informais eram requisitados para reparos, que, por sinal, aconteciam com bastante freqüência.

A AES conversou com lideranças locais para montar seu modelo de negócio, obtendo assim, uma licença informal para operar. Numa ação ousada, experimentou deixar a comunidade se auto-regular, por meio dos seus próprios líderes. Normalmente mulheres, essas lideranças tornaram-se espécies de executivos de conta da empresa, coordenando o uso coletivo do sistema, coletando pagamentos e desconectando aqueles que não cumpriam as regras.

Organizar as relações com a comunidade, de forma perene, é uma das principais dificuldades das empresas. Os custos de transacionar com cada fornecedor ou cliente podem tornar o projeto inviável. Por isso, as empresas têm estimulado que seus interlocutores se agreguem e negociem em conjunto. A Starbucks recomendou que os pequenos produtores instituíssem suas próprias cooperativas.

Mesmo que as questões culturais e organizacionais sejam resolvidas, sempre sobrará o maior obstáculo de todos: as dificuldades financeiras. "As empresas têm que contar com a descontinuidade de pagamento e trabalhar com as restrições de forma diferente da tradicional", diz Pires Quais garantias vão ser utilizadas? Pedir um imóvel ou terra em garantia não costuma funcionar. O caso da AES mostra como grupos podem ser mobilizados para ajudar a empresa. A Cemex estabeleceu uma rede de crédito para construir casas mais rápido a um custo menor. Baseado na confiança da comunidade, dez pessoas contribuem por dez semanas por 100 pesos mexicanos semanalmente para um fundo da comunidade. A cada semana, por sorteio, uma pessoa diferente pode tirar 1000 pesos mexicanos para gastar na construção de sua casa.

No financiamento fornecido pelo Banco Real para o desenvolvimento de pequenos fornecedores de eucalipto para a fábrica da VCP, que entra em funcionamento entre 2009 e 2011 no Rio Grande do Sul, a garantia está na assinatura da esposa. "Em algumas comunidades, a esposa é o centro familiar, consegue promover a coalizão e não permite a violação do contrato", afirma Pires, que ajudou a empresa de papel e celulose do grupo Votorantim a montar seu projeto de sustentabilidade. Os contratos com pequenos produtores permitem à VCP garantia de matéria-prima, menos impacto de deslocamento da mão-de-obra, e evitam que a empresa compre terras inflacionadas pela sua chegada à região. A VCP garante gratuitamente as mudas, disponibiliza treinamento e assegura a compra de madeira. O fornecedor paga juros de 9% ao ano, a mesma taxa que é praticada no reajuste anual do valor da madeira. "Isso garante que o agricultor não correrá riscos", afirma Fausto Rodrigues Alves Camargo, gerente de meio-ambiente da VCP. Os pagamentos do empréstimo são deduzidos do valor a receber pela madeira vendida.

No caso das Aguas Argentinas, a solução foi ainda mais inovadora. Para levar água e esgoto aos moradores da periferia de Buenos Aires, a empresa fez um trato: prometeu reduzir em 50% o preço do suprimento de água em troca da força de trabalho da comunidade. "Os pobres não têm capital econômico, mas é possível trabalhar com o capital social", diz Pires.

Mesmo com todos os avanços e soluções alternativas, ainda não foi comprovado que projetos que visam melhorar a situação social e o meio-ambiente possam ser lucrativos. Poucas são as empresas que medem o custo-benefício. "Não dá ainda para afirmar que exista alguma ligação entre desempenho social e desempenho financeiro", afirma Pires. (A.W.)