Título: Atrás do sonho de ser classe média rural
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2007, Empresa & Comunidade, p. F4

Entre muito verde e cachoeiras poderosas, o discurso soa como o da construção de uma mega-hidrelétrica - mas é projeto do terceiro setor. No Baixo Sul baiano, uma região de 11 municípios a 270 quilômetros de Salvador, o nome Odebrecht está ligado ao de uma fundação que não contabiliza megawatts mas toneladas de mandioca, palmito pupunha, fibras de piaçava e tilápias de estuário. Por ali, a Fundação Odebrecht procura combater a miséria e o êxodo rural a toque de organização, disciplina e metas. As comunidades de pescadores, lavradores e remanescentes de quilombos inseridas em municípios-lanterninhas no Índice de Desenvolvimento Humano parecem ter abraçado o axé empresarial. A renda familiar duplicou em muitos casos, tem gente produzindo mandioca como ninguém e há jovens sonhando em continuar na terra do avô para plantar alface. Talvez ali, entre Ilhéus e Salvador, onde 70% da população se acostumou a viver com menos de um salário mínimo, comece a surgir uma classe média rural.

Não é pouco sonho. Mesmo para quem está atrás de tudo, o recifense Norberto Odebrecht, um engenheiro que vira "general" ou "doutor" dependendo da intimidade com os 40 mil funcionários que a Organização Odebrecht tem espalhados do Panamá aos Emirados Árabes, passando pela reconstrução de New Orleans a uma ponte sobre o Tejo ou exportações de petroquímicos do Peru ao Japão. Ele preside o Conselho de Curadores da fundação, que existe há 41 anos e há três concentrou seu foco no Baixo Sul. O esforço ganhou no final do ano passado aval do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID. Será US$ 1,1 milhão a fundo perdido - com outro US$ 1,1 milhão de contrapartida da fundação - para que a experiência seja replicada em outras partes do Brasil, continue a preservar a biodiversidade e a buscar rotas de comércio justo ao que sai da roça dos pequenos produtores. É o outro lado da moeda de uma empresa que, no Consórcio Furnas-Odebrecht, quer construir as usinas do rio Madeira, em Rondônia, e teve que enfrentar embates calcados justamente em argumentos ambientais e sociais.

Com o Baixo Sul baiano, o vínculo da Odebrecht é emocional. Foi lá, em Valença, que a companhia fez sua primeira obra, nos anos 40, e deu origem ao processo com que Norberto Odebrecht reergueu a construtora herdada do pai junto a um gordo feixe de dívidas. Foi o início do império de construção, infraestrutura e petroquímica que pretende figurar, em 2010, entre os cinco maiores grupos privados não-financeiros do hemisfério Sul.

Em terra de seringais e cacaueiros, no interior baiano, a engenharia é outra. Trata-se de desenvolver tecnologia social que alicerce a vida de 250 mil pessoas. A fórmula é a de um modelo de desenvolvimento sustentável que produza renda, tire as populações da informalidade e garanta a conservação dos exuberantes trechos de Mata Atlântica que ainda são vistos por lá. O nome do projeto é longo - Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Baixo Sul da Bahia, ou, para encurtar, DIS Baixo Sul. Reúne a palavra da moda - governança - e se ergue sobre uma teia de vários atores - do Instituto do Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul da Bahia, aos governos federal e estadual, associação dos municípios, algumas OSCIP, iniciativa privada e quatro cooperativas. É trabalho em várias frentes. Uma das entidades, por exemplo, regulariza a posse das terras; outra centra foco na cidadania e distribui identidade a quem nem tem certidão de nascimento.

O início foi identificar as vocações da região, conta o presidente-executivo da Fundação, Maurício Medeiros. Mandioca se produz por lá desde sempre, a piaçava brota, o palmito pupunha foi introduzido em 1983 e ganhou força uma década depois, e a pesca sempre foi tradição - o lado positivo do cenário. O lado ruim era produtividade incipiente, produtos vendidos in natura sem nenhum valor agregado, pesca por bombas que liquidava estoques e pobreza disseminada. A idéia era incorporar à moldura extrativista, ancestral e de pouca renda, tecnologia, valor agregado, canais de comercialização sem intermediários e preço justo. Espera-se que surja daí uma PPP incomum, de sotaque baiano - Produtividade, Poupança e Prosperidade.

Divulgação Peças de artesanato em piaçava: a fibra que cobre telhados e vai para a vassoura pode ter destinos de maior valor A inspiração tem fórmula mosqueteira, o um por todos e todos por um junta produtores isolados em cooperativas. "A figura central é a da unidade-família, isoladamente frágil, mas agora abrigada em um modelo corporativo", explica Medeiros. Hoje as quatro cooperativas - uma para cada cadeia produtiva, da mandioca, palmito, piaçava e pesca - somam mais de duas mil famílias associadas.

A da mandioca, a Coopatan, é a maior. Na Fazenda Novo Horizonte, em Presidente Tancredo Neves, técnicos da Embrapa montaram o maior campo de experimentação de mandioca do país, pesquisando mais de cem variedades. Ensinam formas de plantio mais produtivas, técnicas de adubação mais eficientes, manejo de mudas mais promissor. A produção dos cooperados é escoada em uma fábrica de farinha e as redes Wal-Mart/Bom Preço e Ebal/Cesta do Povo vendem o produto final. "Antes o quilo da raiz de mandioca era vendido a R$ 0,05 e a produtividade da região era de 8 toneladas por hectare", diz Sergio Cabral, líder de Organização Dinâmica da Coopatan. Hoje o preço do quilo da farinha sai por R$ 1,00 e a produtividade média saltou para 20 toneladas por hectare.

Não é mágica. Quem plantava mandioca do mesmo jeito há 500 anos aprende nova tecnologia e o produto primário recebe valor depois do beneficiamento. A busca por parceiros sociais na comercialização, que paguem preços honestos ao produtor, termina o processo. Os planos para o futuro estão em outro galpão, a poucos metros da fábrica de farinha. Uma instalação metálica de grandes tubos (utilizada no Sul pelos produtores de mate) testa como extrair ácido cianídrico das folhas de mandioca, que é tóxico mas evapora a altas temperaturas, para preparar ração que é pura proteína. "A mandioca é o boi vegetal, dela se aproveita tudo", diz Leopoldo Meira, líder de Organização Dinâmica da casa rural que existe na fazenda. A iniciativa já está sendo testada com avestruzes e peixes.

A dezenas de quilômetros dali, as tilápias da Coopemar entram em frenesi toda vez que um barquinho se aproxima, condicionadas à hora do lanche. São cobaias naturais para a ração da mandioca. O preço da ração para peixes é um funil apertado na produção das tilápias estuarinas, representa, em média, 75% dos custos. Os alevinos (todos machos, para evitar que a espécie exótica se propague na região) são comprados e acostumados vagarosamente a viver em água salobra. Os tanques que recebem os alevinos ficam em um galpão em Tapuias, um lugar tão paradisíaco quanto carente, de vinte casas, às margens do estuário.

Por lá já viveram 150 pessoas, hoje são 72. Gilmar Bonfim Palma é um dos sobreviventes. O avô era comerciante, vendia piaçava em tempos em que a fibra ainda não tinha sido substituída pelo plástico nas vassouras. As mulheres ainda estão lá, trabalhando a fibra, sob a sombra das mangueiras. "Mas o pessoal foi embora, as pessoas tinham necessidade de estudar", conta Gilmar. Ele mesmo foi para Valença, com os pais e sete irmãos. "Só não se formou quem não quis. Estudei até a 1ª série e voltei." Em Tapuias, mora com a mulher e os filhos e cuida da aclimatação das tilápias que depois serão levadas aos tanques-redes dos cooperados, para engordar por vinte semanas. "A nova onda, agora, é a aqüicultura", anima-se.

Aquele trecho da Costa do Dendê é bonito como Boipeba e Morro de São Paulo, sua faceta rica e turística. No estuário, os povoados de Torrinhas, Tapuias e Canavieiras estão em uma paisagem que alterna coqueirais ao verde fechado da Mata Atlântica. Na água, balsas vendem ostras (outra atividade da cooperativa) e sobre os tanques cheios de tilápias, garças brancas buscam uma brecha na rede para comer sem fazer esforço. Cada cooperado tem dez tanques destes e recebe 900 peixes. Este ano, a renda média familiar foi de R$ 480, a meta é chegar logo a R$ 600. Desde 2005, já produziram quase 200 toneladas beneficiadas em Ilhéus, por terceiros. Os estudos, agora, são para aproveitar a pele e fazer farinha de peixe.

O mantra de integrar o setor primário (extrativista) ao secundário (beneficiamento) e ao terciário (venda) é repetido nas cadeias produtivas da pupunha e da piaçava. O berçário do palmito pupunha fica em Camamu, na Biofábrica. As sementes vêm de Rondônia, de plantas sem espinhos, e a tecnologia, do Equador. Os produtores levam as mudas e depois vendem as hastes para a parceira Ambial. De lá saem potes de palmito cortado em vários formatos - os da linha Países vêm com azeitonas, orégano, tomate seco - direto para as prateleiras dos supermercados. O processo é tão ambientalmente correto que até as caldeiras da fábrica são alimentadas com casca de coco de dendê. A produtividade média na região, de 5 mil plantas por hectare, saltou para 7.200.

A cadeia produtiva temporã é a da piaçava. Fica na Área de Proteção Ambiental do Pratigi, terra de comunidades quilombolas. A região é a maior produtora mundial de piaçava. A fibra que cobre telhados deve ter outros fins com o deslanche do projeto. O resíduo pode virar isolante térmico para mantas. "É a única fibra que varre a neve. Estamos começando a desenvolver vassouras industriais para exportar", diz o presidente-executivo da Fundação. É a piaçava chegando aos países do Norte.

O DIS-Baixo Sul já exportou palmito e peixe para a França e a Price Waterhouse Coopers, outra parceira da coisa toda, assessora buscando certificações aos produtos. Selos de proteção ambiental e comércio justo são mágicos para consumidores europeus. O projeto tem idéia globalizada de distribuição de renda: "Queremos ligar a mais pobre das famílias nordestinas ao mais rico consumidor europeu", diz Medeiros. No contexto social brasileiro, a intenção "é tirar a população do estágio em que está e trazê-la para uma sociedade agrícola mais forte".

O trabalho artesanal da piaçava já dá corpo a cestas e porta-copos, apoiadores de panelas, mandalas divinas para pregar na parede. Na festa de fim de ano da Organização Odebrecht, 600 bolsas de piaçava feitas pelos cooperados foram entregues às convidadas à confraternização. Em trabalhos assim, fica evidente o valor agregado à fibra que costumava ficar nas vassouras atrás da porta. Pela Península do Pratigi, a natureza cria, e o baiano transforma.

O combate à miséria tem outra ponta fundamental - inibir o êxodo dos jovens. "Nas cidades, enquanto os problemas sociais se resolvem em progressão aritmética, chegam avalanches migratórias em progressão geométrica", diz Medeiros. O jeito de driblar esta matemática perversa veio da França. As franjas do DIS-Baixo Sul são as cadeias produtivas, mas o centro são os adolescentes.

O conceito francês vem de 1937, de agricultores preocupados com a formação dos filhos. O modelo chegou ao Brasil em 1987, no Paraná, e depois se espalhou. No DIS Baixo Sul, a Casa Familiar Rural, de Tancredo Neves, é a mais antiga e já está na terceira turma; a do Mar é de 2004 e a Agroflorestal surgiu em 2006. Durante uma semana, jovens de 16 a 24 anos ficam internados recebendo teoria e prática. Aprendem novas técnicas para mexer com cravo ou mandioca, trabalham com adubo orgânico, têm noções de suinocultura; os moços do Pratigi secam frutas, aprendem informática e montam casinhas para abelhas sem ferrão, nativas da área e que produzem um mel que pode ser vendido a R$ 40 o litro. O sonho é comum: virar jovens empreendedores rurais.

São salas com 35 alunos, escolhidos entre quem cursou até a 8ª série, quer ficar no campo e não vê o ensino formal como opção de crescimento. Neste modelo de pedagogia de alternância, os estudantes voltam para casa por 15 dias e são visitados por monitores. Trabalham na propriedade da família, repassam técnicas aos vizinhos, rompem a resistência dos mais velhos. "O jovem pede um pedaço da terra aos avós que plantam mandioca do mesmo jeito há cinco gerações. Eles deixam de ficar desconfiados depois que vêem o resultado do trabalho dos netos", conta Medeiros.

A Casa Familiar Rural acaba de formar a primeira turma. Na experiência, o índice de evasão foi zero e os formados estão fundando uma associação para montar seu negócio. "Estamos mudando um pouco a cultura da região. Antigamente não se encontrava por aqui um frango de quintal, não tinha um pé de alface para comprar na feira, muitos jovens nunca tinham comido uma cenoura", diz Meira, da Casa Familiar Rural. Uma estudante se especializou em alface e começou a abastecer o mercado local. Virou a "rainha do alface" de Tancredo Neves. Quem só comia farinha, feijão e carne seca agora cultiva acerola e melancia no pomar. São estes novos líderes, espera-se, que vão dar sustentabilidade às cooperativas no futuro.

Norberto Odebrecht, 86 anos, é conhecido pela alma pragmática. "Educação é item fundamental", costuma repetir. "Os filhos aprendem a empresariar os negócios agrícolas e se comprometem com o desenvolvimento da região", traduz a linha-mestra do esforço no Baixo Sul. "Nós só ajudamos a transformar trabalho em planejamento, músculos em cérebro e suor em mais conhecimento." Sua-se muito naquele pedaço da Bahia - e não é só pelo clima.

A jornalista viajou à Bahia a convite da Fundação Odebrecht