Título: Na Venezuela, dólar vira alface no câmbio paralelo
Autor: Murakawa, Fabio
Fonte: Valor Econômico, 03/10/2012, Internacional, p. A15

A cena parece banal: em um shopping center do centro de Caracas, o dono de um site de cotação de moedas encontra-se com um repórter brasileiro para dar-lhe uma entrevista sobre câmbio. Mas, na Venezuela dos dias atuais, o evento ganha contornos de um livro de John le Carré. Como nas histórias de espionagem, a reunião é clandestina, tanto quanto o site em questão. "Esteja às 12h30 no Centro Comercial San Ignácio e me espere no café que fica no primeiro piso", pede ao telefone o entrevistado, que, após alguma insistência, aceita falar ao Valor.

Ele é um dos sócios do Lechuga Verde (alface verde, em espanhol), uma alcunha que encontraram para se referir ao dólar e escapar de retaliações de processos judiciais. Com 2,5 milhões de page views diários, o site virou referência para venezuelanos que precisam comprar dólares e estrangeiros que vivem no país, desde que o governo tornou o mercado paralelo ilegal. Ao chegar para a entrevista, ele faz outro pedido. "Por favor, me chame de sr. Lechuga na sua publicação. Não posso me identificar."

Na Venezuela, o mercado paralelo de dólar está proibido desde 2010, quando o presidente de Hugo Chávez resolveu fechar as casas de câmbio como uma maneira de evitar a fuga de capitais e combater a inflação, que então beirava os 30%. Segundo o "sr. Lechuga", o governo já fechou seu site treze vezes ao longo de sua curta existência de pouco menos de três anos.

Por trás do sucesso do site, há dois grandes fatores: a alta procura por dólares no país e a falta de informação sobre qual seria a cotação real do bolívar, que está sobrevalorizado. A moeda venezuelana está desde 2010 cotada a uma taxa fixa oficial de 4,30 por dólar. Isso num país onde a inflação anual tem oscilado entre 25% e 30% ao ano. Há também um outro câmbio, usado para algumas importações, estipulado a 5,30 bolívares por dólar. As antigas casas de câmbio sumiram, mas compra-se e vende-se dólar em qualquer esquina de Caracas, onde padarias, mercadinhos e hotéis tomaram o lugar dos corretores. E o Lechuga Verde é a principal referência para quem faz esse tipo de negócio. Ontem, pela cotação do site, o dólar estava sendo negociado a 12,19 bolívares. Leia trechos da entrevista do "sr. Lechuga" ao Valor.

Valor: Como surgiu o site? Quanto tempo tem?

Lechuga: A ideia surgiu de meu sócio, que é o criador da página. Nossa página se estabeleceu no mercado, com muita luta contra o governo, que não quer que nós levemos à luz esse tipo de informação na web. Estamos num país que tem controle cambial.

Valor: Como vocês determinam as cotações?

Lechuga: Com base sobretudo na inflação do país, na oferta e na demanda em diferentes ramos, como o comércio. Em um país extremamente dolarizado, a moeda ganha força à medida em que se vão complicando mais as transações de compra no exterior. Com base nisso, fazemos um cálculo para estimar o dólar. E também utilizamos como base o ouro, pelo Banco Central. Isso nos dá um preço estimado de quanto deveria estar o dólar no mercado negro.

Valor: Vocês também negociam a moeda americana?

Lechuga: A moeda já é um negócio de todos os venezuelanos. Na Venezuela, as divisas são um produto, mais que uma moeda.

Valor: Por que vocês chamam o dólar de "lechuga" [alface] no site? Há o risco de processo judicial por divulgar essas informações?

Lechuga: Claro. Nós não podemos nos expor, porque teríamos problemas legais com o governo e deixaríamos de fazer esse trabalho social.

Valor: O governo venezuelano persegue vocês?

Lechuga: Sim. Estamos abertos há três anos e já nos fecharam a página treze vezes. Nós mudamos a hospedagem sempre que possível, para evitar que ela seja fechada.

Valor: O governo sabe quem são vocês?

Lechuga: É possível. Mas ao governo também convém que a página continue existindo.

Valor: Por quê?

Lechuga: Porque na Venezuela há muita corrupção. E há funcionários [públicos] que precisam vender dólares e precisam de um preço referencial. Por isso a página se mantém aberta, ainda que haja outros funcionários que queiram fechá-la. Isso depende de cada critério. Tem funcionários pró-governo, outros estão contra o governo.

Valor: E por que alguns funcionários querem fechar o site?

Lechuga: Porque eles querem passar a ideia de que há um controle cambial e precisam manter uma ordem. Ou, então, fechar todas as portas para que eles controlem tudo por uma só. Mas há mais dólares do que bolívares. Então, eles precisam converter muito, precisam comprar [bolívares].

Valor: Vocês estão infringindo a lei ao manter a página aberta?

Lechuga: Nós não estamos contra a lei. Estamos contrariando a opinião do governo sobre esse tipo de informação. Nós vemos a página como um trabalho social para informar a todos os venezuelanos que desejam fazer suas compras no dólar negro.

Valor: Se vocês não infringem nenhuma lei, qual é a alegação do governo para fechar a página?

Lechuga: Eles alegam que há muita facilidade para obter a divisa oficial e que nós mentimos ao dar essa informação, que essa informação é falsa, porque para eles não há desvalorização do bolívar. É o mesmo que o governo alega para fechar os meios de comunicação. Nós somos um meio de comunicação de algo específico.

Valor: Como o governo faz para fechar a página?

Lechuga: Normalmente, um engenheiro de sistema entra em nossos códigos e bloqueia a página pelo nosso IP [identidade digital]. É como no filme Matrix. Entra um hacker na nossa página, viola a nossa privacidade e a bloqueia.

Valor: Ao presidente Hugo Chávez, interessa que a página esteja aberta ou fechada?

Lechuga: Na minha opinião, interessa-lhe que estejamos abertos. Porque nos fecham a página, depois a deixam aberta por um tempo. Então, eu não sei. De repente, a fecham para manter uma certa imagem dentro de sua hierarquia, de que há leis e que elas são cumpridas. Por outro lado, a deixam aberta por um tempo, para que também façam seus negócios com preços referenciais.

Valor: O sr. acredita que, com isso, que o governo faça um controle informal do câmbio paralelo?

Lechuga: Sim, isso acontece porque eles têm a maior quantidade de dólares. E muitas vezes são eles que põem o preço de mercado. E nós competimos contra isso, para dar um preço real.

Valor: E como o governo faz esse controle?

Lechuga: Não há um controle como tal. Isso tudo se maneja com informação clandestina. Ninguém sabe. Muita gente compra, sem saber, dólares ilícitos do governo.

Valor: O governo também vende no mercado ilegal?

Lechuga: Sim, [por meio de] funcionários, que usam intermediários para não aparecer. Se um funcionário tem certa quantidade de divisas em suas contas no exterior, ele não vai vendê-las ao câmbio oficial, pois teria prejuízo.

Valor: Se o governo cessasse hoje o controle sobre o câmbio, qual seria a cotação do dólar?

Lechuga: [Risos] Eu não saberia dizer. Porque é algo que nós não consideramos que possa acontecer. É muito pouco provável que isso aconteça. Se acontecer, creio que se manteria o preço do dólar negro, talvez um pouco menos. Pode ser que se estime em cerca de 7 bolívares.

Valor: O sr. tem um candidato preferido para as eleições?

Lechuga: Para muitas pessoas que estão ganhando dinheiro com este governo, convém que ele prossiga. Se eu ganho dinheiro, me convém que ganhe o presidente. Se eu não ganho, me convém que ganhe o opositor.

Valor: Mas você ganha dinheiro com essa política do governo, não?

Lechuga: Todos ganhamos um pouco de dinheiro. Uns ganham mais, outros ganham menos. Mas, de certa forma, com a desvalorização do bolívar [no câmbio negro], todos estamos ficando mais pobres a cada dia. Então, é difícil dizer o que eu penso das eleições, quem deveria ganhar.