Título: O Vaticano e o HIV
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Fonte: Correio Braziliense, 23/11/2010, Opinião, p. 18

Visão do Correio

A declaração de Bento XVI sobre o uso da camisinha constitui passo importante na luta contra a propagação do HIV. Em entrevista concedida ao jornalista alemão Peter Seewald, o papa disse que, em certos casos, o uso do preservativo é autorizado. Sem entrar em pormenores, citou situações extremas como a das prostitutas: ¿É o primeiro ato de responsabilidade para desenvolver novamente o conhecimento do fato de que nem tudo é permitido e não se pode fazer tudo o que se deseja¿.

Um dia depois de as palavras do pontífice terem ganhado as manchetes mundiais, o Vaticano se esforçou para minimizar o impacto causado pela afirmação histórica. Disse não se tratar de mudança na posição da Igreja, mas de uma visão mais compreensiva da sexualidade. De qualquer forma, Bento XVI trouxe à tona tema evitado pelos antecessores e causador de desgastes para a instituição, cuja doutrina sofre acusações de insensibilidade e alienação da evolução dos costumes.

Fato que estremeceu os alicerces da intransigência do catolicismo foi a disseminação da Aids. Segundo a ONU, desde a descoberta do HIV, em 1983, 60 milhões de pessoas foram infectadas pelo vírus. Delas, 30 milhões perderam a vida. Mais: 80% das transmissões da doença, que afeta nada menos de 33 milhões de adultos e crianças no mundo, ocorreram por relações sexuais. Nos cinco continentes, registram-se 7 mil novas infecções diárias.

Na África, a situação é dramática. Estima-se que a quarta parte da população esteja infectada e que, em razão dos costumes locais, ocorrem oito novos casos por minuto. Na África do Sul, o quadro ganha contornos trágicos. Aos 5,7 milhões de contaminados, somam-se 500 mil novos registros anuais. Nelson Mandela, ao perder um filho em decorrência de complicações do HIV, denunciou publicamente a calamidade por que passa o país e o continente.

Bento XVI, em visita à África no ano passado, repetiu o que padres costumam dizer aos fiéis devastados pelo mal. Camisinhas, segundo eles, contribuem para a proliferação da Aids. A afirmação mereceu protestos internacionais. Agora o papa, corajosamente, retoma o tema. Rende-se à realidade sem renunciar aos princípios. Para a Igreja, uso do preservativo não deixa de ser errado. Mas abre-se uma brecha na parede de concreto. O papa aceita o mal menor ¿ o uso do preservativo na prevenção do vírus. Vindo de um pontífice conservador, o reconhecimento acena com avanços. É bom sinal.