Título: A aliança da agronergia contra a fome
Autor: Graziano, José
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2007, Opinião, p. A12

O alvorecer do século XXI anuncia o crepúsculo do ciclo do petróleo com movimentos contraditórios que procuram antecipar o futuro. Guerras preventivas incendeiam o Oriente Médio, onde se disputa a primazia de acesso às reservas que determinarão a sobrevida da era do combustível fóssil. De outro lado, o relatório do IPCC-2007, divulgado em Paris, afasta dúvidas - de quem ainda as tinha - sobre a responsabilidade das atuais formas de viver e de produzir na escalada do aquecimento global. Não só isso, promove também uma mudança nos prazos da mitigação: em substituição ao longo prazo, instalou-se na agenda mundial o horizonte da emergência.

A contagem progressiva do despertador climático se impõe assim ao ritmo declinante da oferta de petróleo. E a tendência é o abismo se alargar no curto prazo. A China reúne cerca de um quinto das bocas do mundo e vai dobrar o consumo de energia até o final da década. O termômetro do aquecimento global pode quebrar. As concentrações de CO2 na atmosfera subiram de 280 partes por milhão, antes da revolução industrial, para mais de 380 atualmente, avisa o IPCC-2007. Evitar que os desequilíbrios climáticos se aprofundem e elevem a temperatura média do planeta acima dos previstos quatro graus (acréscimo de 28% sobre o padrão atual) exigiria um corte de mais da metade das emissões de CO2 previstas para este século. Matematicamente, significa evitar emissões de 650 bilhões de toneladas. Politicamente, trata-se de uma façanha quase impossível. Basta dizer que mesmo o protocolo de Kioto, que previa um corte de 5,2% sobre o nível emitido em 1990, vem sendo descumprido.

A alavanca dos preços do petróleo figura nesse panorama como um freio de arrumação benigno e talvez o principal sopro de ar fresco a impulsionar uma mudança. Graças a ele, a hipótese de "cultivar combustíveis", em vez de disputá-lo no subsolo exaurido do planeta - devolvendo à atmosfera 23 bilhões de toneladas de CO2/ ano - passa ser uma opção imediata, e sobretudo realista, face a um futuro que, para o bem e para o mal, bate à nossa porta.

Há quem enxergue nessa mera troca de conteúdo da bomba - por isso mesmo a solução mais viável nesta emergência - o risco de um efeito colateral igualmente desastroso, à medida em que a agroenergia possa avançar sobre terras e lavouras originalmente destinadas ao abastecimento humano. Há também interesses bilionários a vaticinar que esse seria um passo em falso. Recentemente, por exemplo, o gerente de tecnologia de uma das "Sete Irmãs do Petróleo" classificou de "moralmente imprópria a produção de biocombustíveis a partir de comida". A imagem cinematográfica de uma colisão entre 800 milhões de pobres imobilizados pela fome e dois bilhões de motoristas ávidos por mobilidade tem um apelo midiático certeiro. Funciona também como um poderoso serviço difusão de alternativas remotas. Caso, por exemplo, do hidrogênio, no qual aposta a corporação do nosso gerente moral, secundado por legiões de incautos repetidores neomalthusianos.

O traço comum de sentenças apocalípticas como esta é o seu descompromisso com a experiência histórica. O que lhes sobra de verniz científico é a exatidão estatística de projeções, nem sempre vem acompanhadas daquela nota de rodapé para lembrar que valem se e somente se todas as demais variáveis permanecerem constantes.

Quem não se lembra da "bomba demográfica", o dragão apocalíptico dos anos 60/70? Evaporou-se em algum ponto entre o declínio das taxas de natalidade e subsídios bilionários pagos aos agricultores dos países ricos para acumular montanhas de manteiga, leite em pó e trigo. E nada disso livrou a humanidade do martírio obsceno da fome, mas pelo menos deu maior transparência à natureza política dessa chaga que sobreviveu incólume também às promessas do "salvacionismo científico". Espécie de resposta de laboratório ao Juízo Final malthusiano, a Revolução Verde foi uma desses "raios redentores" que disseminou técnicas, sementes e fertilizantes químicos mundo afora com a promessa de acabar com a fome. Em que pese impactos negativos que tenha causado no ambiente e na diversidade genética, o fato é que impulsionou de fato um enorme salto na produtividade agrícola. E deixou evidente que a abundância não basta para trazer fartura à mesa dos mais pobres.

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A tecnologia é uma dessas variáveis que teima em ser inconstante e que pode borrar as projeções malthusianas. A mera seleção genética da cana-de-açúcar e de novos processos de fermentação bacteriana, por exemplo, permitiu um aumento de cerca de 1,5 para quase 8 mil litros por hectare ano desde os anos 70; e o Estado de São Paulo em vez de despejar lavouras como se temia no início do Próalcool, produz mais alimentos hoje que antes. Naturalmente é necessário disciplinar a expansão futura dos canaviais para atender a uma demanda exponencial por etanol. Mas a experiência indica que a busca de rentabilidade será parceira nesse esforço, não adversária.

É necessário, portanto, circunstanciar melhor o mundo do qual estamos falando antes espetar na alternativa da agroenergia o epíteto de inimigo voraz dos famintos, num momento em que a humanidade, mais que nunca, precisa de prontidão e realismo para se superar.

Ninguém deve imaginar que a energia fornecida pelo petróleo - 80 milhões de barris/dia - será substituída por uma única fonte. Esse é mais um ponto de partido falso do imaginário apocalíptico. O que se visualiza com realismo não é a troca de uma dependência por outra. O que está em jogo, ao contrário, é a busca de um mix de alternativas que possam, gradativamente, completar e substituir a oferta fóssil combinando recursos locais, preços competitivos e um custo ambiental sustentável. Mas principalmente, permitam começar já.

A agroenergia preenche parte desses requisitos. A maior experiência prática dela no planeta está no Brasil. E o que se vê no país não só desautoriza o pessimismo, como indica que plantar combustível, além de combater o efeito estufa no planeta, pode ser também um jeito de colher justiça social, como diz o presidente Lula. Essa é a ponte emergencial que temos à mão para uma transição possível. Enquanto as opções definitivas maturam em laboratório, esta pode ser acionada de imediato, em escala suficiente para, ao menos, afastar a humanidade da rota de colisão que opõe seu presente ao seu futuro. Nunca como desta vez a máxima keynesiana foi tão pertinente em sua urgência: "a longo prazo estaremos todos mortos" se persistirmos na tendência atual.

José Graziano Da Silva é Representante Regional da FAO para América Latina e o Caribe.