Título: Xangai quer ser nova 'capital mundial'
Autor: Balfour, Frederik
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2007, Especial, p. A14

Benjamin Wood balança a sua constituição pesada sobre a moto antiga, com sidecar, coloca o seu capacete e se acomoda. O arquiteto americano imprime vida à máquina com um único golpe e arranca na direção do trânsito na hora do rush, atravessando o elegante distrito Xintiandi, de Xangai. Logo em seguida, se dirige a uma rua estreita e penetra em um outro mundo.

Se por um lado Xintiandi é repleta de lojas luxuosas e cafés ao ar livre, nos bairros em torno as calçadas estão cheias de pessoas de pijamas jogando mah-jong, lavando a louça em torneiras ao ar livre ou arremessando bolinhos de massa em óleo fervente. A vida prossegue como tem sido pela última metade de século.

Enquanto a moto ganha velocidade, o casaco de seda branca de Wood se agita ao vento. Ao passar por entre algumas das casas com quintal que estão em extinção em Xangai, ele acena para as pessoas preparando seus jantares. "Eles me conhecem muito bem nesse bairro, por que eu gosto de rodar por aqui bastante", diz ele, elevando a sua voz para ser ouvido sobre o ronco do motor. "O que eles não sabem", acrescenta, com uma ponta de pesar, "é que eu sou o cara que fará esse estilo de vida desaparecer".

Embora poucos possam reconhecer Wood, praticamente qualquer pessoa que tenha passado mais de um dia ou dois em Xangai conhece Xintiandi. O bairro reconstruído é o primeiro e mais renomado trabalho de Wood na China, uma colagem de ruas com paralelepípedos, travessas estreitas e tetos graciosamente cobertos de telhas. Xintiandi, cuja tradução é "Novos Céu e Terra", se tornou uma das principais destinações de turistas de Xangai. Os estrangeiros o amam porque o lugar evoca a era colonial e é um dos poucos bairros que escaparam das demolições. Os moradores locais são atraídos para os bistrôs, bares e butiques que lhe emprestam um característico traço ocidental.

O trabalho de Wood em Xintiandi se transformou num símbolo para as aspirações mutantes que a China reserva para Xangai. Em 1992, Deng Xiaoping declarou que Xangai seria "a cabeça do dragão", impulsionando o país para o futuro, e que os chineses despejaram dezenas de bilhões de dólares na reconstrução da cidade após meio século de abandono. O ritmo diminuiu depois de um escândalo em torno de recursos previdenciários municipais gastos com negócios imobiliários questionáveis, porém a cidade ainda está em franca expansão.

O problema é que Xangai há muito tem preferido megaprojetos que imitam o tipo de incorporações de arranha-céus que gritam "modernidade", mas que pouco têm a ver com a cultura chinesa tradicional. Ou melhor, até Ben Woods. Xintiandi representa o estilo de assinatura de Wood: em vez de trazer as máquinas de terraplanagem, ele imagina um bairro em ruínas como algo renovado: restaura edifícios antigos, salva a fachada de outros ao mesmo tempo em que destrói seus interiores e projeta novas estruturas que se combinam.

Esta graciosa mistura de velho e novo se encaixa nas ambições de Xangai em meio à sua arrancada rumo à sua terceira década de hipercrescimento. A exemplo de Florença no Renascimento, Londres nos anos 1800 ou Nova York no começo do século XX, Xangai tem como meta abrir caminho para se situar na mais alta posição na ordem econômica mundial - papel que desempenhou nos idos da década de 1920. Hoje, Xangai é a cidade mais populosa do continente, com 18 milhões de residentes.

Ela sedia o escritório central na Ásia de mais de 150 corporações globais, como a General Motors, IBM e Alcatel-Lucent. E as multinacionais estão expandindo suas relações com a cidade. A GM emprega atualmente ali aproximadamente 1,8 mil funcionários em setores administrativos, 60% a mais do que em 2004, ao passo que o Citibank hoje tem 2 mil empregados na cidade - em 1999, eram 80 empregados. "Xangai tem ambições muito visíveis para se tornar um importante centro financeiro na região e talvez além dela", disse Richard Stanley, executivo-chefe do Citigroup China.

Os expatriados amam a vida noturna de Xangai, enquanto os jovens trabalhadores de alta especialização da tanto da China quanto estrangeiros se apressaram em tirar proveito da economia em forte expansão da cidade. Xangai está crescendo a 12% - num ritmo ainda mais rápido do que a expansão de 10,7% que a China como um todo registrou em 2006 - e o PIB da cidade foi de US$ 136 bilhões no ano passado. Isto representa menos de metade do PIB de Londres, porém o crescimento de Xangai é três vezes mais veloz do que o da capital britânica. Além disso, Xangai atraiu cerca de US$ 120 bilhões em investimento direto externo (IDE) desde 1992, incluindo compromissos de US$ 14,6 bilhões no ano passado, ou 23% do IDE chinês total para 2006. "Estamos testemunhando a maior transformação de um pedaço de terra na história. É espetacular", exclama Greg Yager, vice-presidente do escritório de projetos RTKL Associates, de Baltimore, que realizou trabalhos de planejamento na cidade.

As oportunidades em Xangai atraíram um grande número de arquitetos estrangeiros, que ajudaram a criar uma das mais extraordinárias linhas de horizonte do mundo. No distrito financeiro de Pudong, que até há duas décadas era pouco mais do que arrozais e pequenas fábricas, a Jin Mao Tower, de 88 andares (projetada pela firma Skidmore, Owings & Merrill de Chicago), sedia a GM, Crédit Lyonnais e a IBM. Ao lado, o World Financial Center de Xangai, de 101 andares (do escritório Kohn Pederson Fox Associates de Nova York) - originalmente planejado para ser o edifício mais alto do mundo, mas agora superado pelo Taipei 101 de Taiwan - está aproximadamente 75% completo. Do outro lado do rio Huangpu, o Plaza 66, de 66 andares (da John Portman & Associates de Atlanta), aloja a General Electric, BP e KPMG. E o outrora dilapidado Bund, a Wall Street da Ásia de antigamente, à margem do rio, foi reenergizado com clubes noturnos lotados, butiques elegantes e restaurantes da moda. "Xangai é uma cidade dinâmica, emocionante, cada vez mais multicultural", disse Robert Pallash, presidente para a Ásia da fabricante de autopeças Visteon, que transferiu sua sede regional do Japão para Xangai em 2003. Um motivo que explica por que a cidade superou Bancoc, Hong Kong e Cingapura: é fácil atrair gente de outros países. "É muito importante atrair pessoas da organização global", diz Pallash.

Atrair moradores locais é igualmente importante. As legiões de imigrantes afluindo para Xangai estão ocupando as fábricas da Visteon, bem como as da Intel, Phillips, Honeywell e muitas outras multinacionais. E as universidades chinesas estão produzindo milhares de engenheiros graduados a cada ano, o que oferece uma oferta regular de pesquisadores para laboratórios dirigidos por corporações de todo o mundo. Nas suas instalações em Zizhu Science Park, 25 km ao sul do centro, a Intel hoje emprega mil pessoas, uma alta em relação aos cerca de 40 empregados em 2000. Há uma década, "era difícil encontrar um prédio de escritórios de alta qualidade" e trabalhadores qualificados eram raros, diz Wang Wen-hann, gerente-geral do laboratório. Hoje, "esses fatores amadureceram", disse.

Bairro após bairro, porém, vias expressas de oito pistas e gigantescos edifícios de vidro e aço comprimem encantadores residências e prédios que remontam ao começo do século XX. A cidade dobrou o número de moradias ao longo das duas décadas passadas, porém a maioria destas novas habitações está em arranha-céus desumanos. Além disso, grande parte das torres de Pudong estão ao lado da avenida Centenário, de 90 metros de largura, uma artéria praticamente impossível de atravessar, e carece até de uma banca de jornais, quanto mais de um café na calçada. O distrito representa "uma falha em criar um ambiente urbano habitável", disse Tom Doctoroff, o executivo para a China da agência de publicidade JWT.

Isto é um problema para um lugar com ambições enormes. Se as empresas concluírem que Xangai se tornou cara demais ou congestionada demais para os tipos de empregados que querem atrair, rapidamente ela poderá despencar da lista global de mais cotadas. Espaço de escritório de alto padrão hoje custa mais do que no centro de Manhattan e expatriados geralmente desembolsam de US$ 5 mil a US$ 10 mil - ou até mais - em aluguéis mensais. O ar pode ser irrespirável e as vias expressas ficam congestionadas na maior parte do dia. "Temos uma cidade cuja infra-estrutura está sobrecarregada", diz Steve Mullinjer, sócio-gerente da empresa de colocação de executivos Heidrick & Struggles em Xangai. "É como um cavalo selvagem que não se pode domar."

-------------------------------------------------------------------------------- Assim como a Londres do século 19 e a Nova York do 20, Xangai agora quer posição de destaque mundial --------------------------------------------------------------------------------

Domar esse cavalo descontrolado é a tarefa número um em Xangai. E, atualmente, a forma como Xangai lida com esse tema é importante para toda a China. Centenas de milhões de imigrantes poderão se deslocar para as cidades no continente nas próximas décadas e grande parte do resto do país observa a cidade em busca de soluções. Portanto, se Xangai elimina a sua história para construir estradas, pode apostar que muitas outras cidades farão o mesmo. Desde 2000, o número de carros no continente triplicou. Xangai e Pequim já estão rodeadas casas e novas comunidades só acessíveis por carro. Com 1,3 bilhão de pessoas, o continente não poderá se permitir o tipo de cultura suburbana que muitos parecem desejar. "O governo hoje está mais consciente de temas relacionados com qualidade de vida", diz Daniel Vasella, presidente do conselho de administração da gigante farmacêutica Novartis e chefe do Conselho Consultor dos Líderes de Empresas Internacionais, que assessora o prefeito de Xangai. "Eles percebem que, se não puderem oferecer um bom padrão de vida, as pessoas não vão querer viver lá", completa Vasella.

Talvez isso explique por que os chineses procuraram Ben Wood tão prontamente. O arquiteto de 59 anos, cuja barba branca e pele avermelhada o fazem se assemelhar mais a uma velha e simpática figura da sua Geórgia natal do que um designer badalado, foi atraído à vida nas ruas de Xangai e dos prédios apinhados conhecidos como shikumen. Esses edifícios de dois andares, uma mistura de estilos chineses e ocidentais com detalhes em pedra talhada, permaneceram na sua maior parte intocados desde que os comunistas tomaram o poder em 1949. Mas, quando Wood chegou a Xangai em 1998 para projetar Xintiandi, eles estavam sendo velozmente demolidos.

No local da obra em Xintiandi, Wood sugeriu poupar as estruturas e criar um distrito de passeio que preservaria a sensação de comunidade da antiga Xangai. Isto representou uma revelação para os fundadores da cidade, que até então haviam lutado para encontrar uma forma alternativa de manifestar a recém-encontrada confiança e afluência de Xangai. Depois de provar que pode reproduzir o Ocidente em distritos como Pudong, a cidade estava procurando uma segunda onda de desenvolvimento que não importaria estilos integralmente, mas que conferisse uma forma às suas aspirações de se tornar uma metrópole de categoria mundial. Wood "compreende a relação entre edifícios novos e antigos", disse Wu Jiang, vice-diretor do Escritório de Planejamento Urbano de Xangai.

Se Wood tem sido bom para Xangai, Xangai igualmente tem sido boa para Wood. Ele manteve um comportamento relativamente discreto nos EUA, porém na China ele é um verdadeiro astro. O sucesso de Xintiandi produziu incontáveis imitadores no continente, e Wood recebeu mais de uma dezena de incumbências de vulto. Atualmente ele dirige um estúdio de 30 desenhistas e projetistas. Sondagens de clientes potenciais chegam quase diariamente. Ele está trabalhando em uma estância nas montanhas, uma incorporação semelhante a Xintiandi na cidade ocidental de Chongqing, e outra em Hangzhou, uma cidade à beira de um lago, 190 km a sudeste de Xangai. Wood "está totalmente diferente dos demais estrangeiros que atuam na China", disse Ma Qingyun, uma arquiteta de Xangai e hoje reitora da Escola de Arquitetura da Universidade do Sul da Califórnia. "Ele está muito empenhado no lado humano."

Para evitar que o crescimento de Xangai esfacele o seu tecido urbano, a cidade está construindo nove novas comunidades na periferia que deverão alojar um total de um milhão ou mais de recém-chegados até 2020. esses projetos, denominados "uma cidade, nove povoados", foram planejados como cidades-satélite auto-suficientes nas quais os moradores podem viver, trabalhar e fazer compras, sem precisar viajar para o centro de Xangai. Cada um foi projetado tematicamente para se parecer com cidades de outros países e outras culturas - um conceito que alguns rejeitam e consideram fútil. Em Fencheng, por exemplo, um grupo espanhol está criando representações artísticas de ruas inspiradas nas Ramblas, o passeio público de Barcelona. Albert Speer, filho do arquiteto favorito de Hitler, é o cérebro por trás de Anting, uma comunidade projetada com base nas pequenas cidades na Alemanha e que aloja o circuito de Fórmula-1 de Xangai, bem como uma montadora em sociedade com a Volkswagen. E a cidade do Tâmisa (Thames Town) se parece com uma aldeia inglesa com ruas de paralelepípedos, construções parcialmente feitas de madeira em estilo Tudor, cabines telefônicas vermelhas e uma estátua de Winston Churchill. "É grotesco", diz Woods. "Por que fingir que está vivendo em alguma terra da fantasia?"

A contribuição de Wood para a iniciativa dos nove povoados é menos vistosa. Em Qinpu, no sudeste de Xangai, ele está trabalhando em um complexo residencial de 830 unidades que baseia a sua inspiração nos antigos canais, pontes e calçadas da região. Seu objetivo, afirma, é criar edifícios em uma escala humana que estabeleça uma relação com os seus arredores. "O maior problema na China é que a Cidade Proibida está encravada em cada cérebro", diz. "É simétrica, monumental e fora de escala."

Os mandarins modernos da China podem ser igualmente intrometidos. Em 2004, o Rockefeller Group International, braço de incorporações imobiliárias da Mitsubishi, sediado em Nova York, contratou Wood para projetar um bairro que os construtores chamam Rock Bund. O projeto deverá incorporar um teatro art déco de 1928 e mais de duas dezenas de edifícios da era colonial. Rockefeller parecia estar com tudo acertado, incluindo o apoio do secretário-geral do Partido Comunista de Xangai, Chen Liangyu.

Numa cidade que cresce velozmente como Xangai, porém, nunca se sabe quando a construção vai terminar numa areia movediça política. Em setembro, os executivos do Rockefeller receberam uma ligação inquietante do seu advogado, que disse: "Nosso amigo está na cadeia". O amigo era Wu Minglie, o presidente do New Huangpu Group, uma empresa chinesa que estava trabalhando com o Rockefeller. Ele havia sido detido e acusado de malversação de fundos de pensão municipais para desenvolvimento imobiliário. Logo depois, o secretário Chen foi destituído no que muitos acreditam ter sido uma luta pelo poder com a liderança central da China em Pequim. Os executivos do Rockefeller Group se abstiveram de tecer comentários sobre o caso, que um porta-voz da empresa define ser "extremamente delicado". Embora a maioria dos projetos tenham sido adiados desde a expulsão de Chen, não há nenhuma indicação de que Rock Bund esteja correndo risco de ser descartado.

Apesar das dores de cabeça, Wood não é dado a se vergar ante desafios. Um recém-chegado à arquitetura, ele só começou a exercer o ofício após os 36 anos. Até então ele já havia pilotado jatos de teste na Força Aérea dos EUA e havia fundado uma escola de montanhismo e um restaurante francês no Colorado. Com 31 anos, ele se inscreveu no curso de graduação em Arquitetura no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Logo abriu a sua própria firma com o equatoriano Carlos Zapata e entrou para a primeira divisão dos arquitetos em 1998, com a incumbência de reconstruir Soldier Field, o estádio do Chicago Bears.

Quando Woods estava no meio do projeto Soldier Field, recebeu uma ligação de Hong Kong. Será que poderia apanhar uma passagem que estava esperando por ele no aeroporto e vir o mais rápido possível? Dois dias depois, Wood havia sido despachado de limousine aos escritórios de Vincent lo, presidente do grupo imobiliário Shui-On. O encontro durou cinco minutos. "Ele me disse, quero você no próximo avião para Xangai e que retorne aqui amanhã de manhã", relembra Woods.

Após algumas horas perambulando pelos bairros dilapidados que se transformariam em Xintiandi. Wood retornou a Hong Kong para dar a sua tacada. Ele citou o Mercado Faneuil Hall de Boston e aldeias nas montanhas na Itália como modelos potenciais. Por sorte, Lo era um fã do empreendimento de Boston e passou algum tempo na Toscana. "Meia hora depois, eu disse, este é o homem com quem quero trabalhar", disse Lo, que ofereceu o trabalho a Wood, preterindo três arquitetos concorrentes. Em seis meses, aproximadamente 1,6 mil famílias haviam sido realojadas em novos empreendimentos distantes das suas velhas casas - nem sempre a contento, apesar de terem instalações hidráulicas internas na casa e sua própria cozinha pela primeira vez. "Fizemos coisas como retirar os seus telhados para agilizar o processo."

"Se Xangai for incapaz de oferecer a qualidade de vida de uma cidade mundial como Paris ou Londres, ela jamais se tornará um importante centro financeiro", diz Wood. "Mas o ambiente de velho oeste está sendo substituído por estratégias de desenvolvimento mais sofisticadas. E isso, em última instância, é o que pesará a favor de Xangai."

(Tradução de Robert Bánvölgyi).