Título: Lula prepara inflexão pró-EUA na política externa
Autor: Costa, Raymundo e Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2006, Política, p. A11

Sem modificar o discurso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prepara-se para fazer uma inflexão na política externa. Talvez antes mesmo do início do segundo mandato. Trata-se de uma mudança de fundo, provavelmente a maior em estudos para o futuro governo do PT, na qual a relação com os países ricos, especialmente os Estados Unidos, voltará a ser articulada preferencialmente, ao contrário do que ocorreu nos últimos quatro anos.

Com a reeleição de Lula no próximo domingo, como indicam as pesquisas, o chanceler Celso Amorim deve permanecer à frente do Ministério das Relações Exteriores. Mas o secretário-geral, Samuel Pinheiro Guimarães, e o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, devem ser estrategicamente removidos para outros postos. No exterior, caso de Samuel, ou mesmo cumprindo alguma missão no PT, caso de Marco Aurélio, que atualmente acumula as funções de presidente do partido e de coordenador da campanha de Lula, mas também pode ir para uma embaixada.

Os dois são considerados os principais ideólogos da marca anti-americana impressa no Itamaraty, de agrado do PT, mas que sofre profunda oposição em áreas do governo e do empresariado. Num sinal de que a política externa mudará, o presidente Lula avalia o conselho dado por alguns ministros: liderar uma caravana de empresários numa visita aos EUA, já no início do primeiro ano do segundo mandato.

A idéia é visitar Estados americanos importantes para as exportações brasileiras e também aqueles onde estão empresas que podem investir no Brasil. Integram essa lista a Flórida, onde o Brasil já possui o seu maior centro de distribuição de mercadorias no exterior, e a Califórnia, o Estado mais rico dos EUA. O fim da viagem seria uma visita oficial de Lula a Washington, onde ele retomaria a proximidade que chegou a cultivar, no início de seu mandato, com o presidente George W. Bush.

O governo pretende mudar sem dizer que mudou. O discurso de Lula a interlocutores que trataram do assunto com o presidente, nos últimos dias, é que a atual política já cumpriu seu objetivo inicial, qual seja, tornar o país menos dependente dos EUA, ampliar o comércio (exportação e importação) com os países da Ásia e da África, além de fortalecer o comércio com a América do Sul. Agora, em uma nova etapa, seria necessário o país voltar-se novamente para os países ricos. O Brasil tem demandas importantes com Washington, sendo uma delas imediata: a renovação do sistema geral de preferências, prevista para até o fim do ano. O embaixador na capital americana, Roberto Abdenur, também deve ser substituído.

Apesar de manter o discurso, o governo pretende falar mais duro com vizinhos como os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e sobretudo da Bolívia, Evo Morales. A reação do chanceler Celso Amorim ao ultimato dado pela Bolívia ao governo brasileiro, esta semana, de certa forma já reflete essa nova postura. Lula está intrigado com Morales. Enquanto julga manter um diálogo franco e sincero com Chávez, mesmo quando a conversa não é do seu agrado, considera o presidente boliviano uma incógnita.

A conversa é sempre tensa. Segundo apurou o Valor, Lula confidenciou a auxiliares próximos que considera Evo Morales imprevisível. Sempre surpreende, como teria surpreendido a ele, Lula, e ao presidente espanhol José Luiz Zapatero ao escolher como parceiros Fidel Castro e Hugo Chávez, em vez de entrar na cena política internacional pelas mãos de Brasil e Espanha. A idéia agora é ser duro com a Bolívia, mas sem manifestar intenções imperialistas. O Brasil também vinha apoiando oficialmente a candidatura da Venezuela a uma vaga temporária no Conselho de Segurança da ONU, mas nos bastidores não ficaria desapontado com uma derrota de Chávez - a disputa era com a Guatemala; ontem, os venezuelanos abriram mão de sua candidatura em favor da Bolívia.

Essa nova postura do governo brasileiro atende à visão que os norte-americanos têm em relação ao papel do Brasil na América do Sul, uma espécie de fiador do equilíbrio estratégico da região. As intervenções diretas de Washington nos anos 60 e 70 teriam atrasado em pelo menos 30 anos o processo político da região, segundo avaliações feitas no governo.

Com a manutenção Amorim no comando da política externa, Samuel Pinheiro Guimarães deverá assumir a embaixada do Brasil na Argentina. Já Marco Aurélio Garcia pode ser designado para Paris. "São dois exílios dourados", brinca um ministro próximo de Lula. Mas a crise do PT pode adiar a mudança de Marco Aurélio.

O desgaste de Samuel vem de longe. Desde o primeiro ano do mandato de Lula, assessores do presidente e ministros importantes _ naquela ocasião, notadamente Antonio Palocci (Fazenda), Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento) e Roberto Rodrigues (Agricultura) _ vêem com grande desconforto a sua atuação. Reclamam, principalmente, da sua visão anti-americana, que teria dificultado o estreitamento das relações do Brasil com os Estados Unidos, a locomotiva da economia mundial.

Foi a defesa de uma posição radicalmente contrária à criação da Alca que fez Samuel conquistar o apoio do PT. O embaixador, que se tornou notório no governo Fernando Henrique Cardoso por ter sido censurado pelo então chanceler Celso Lafer, virou uma espécie de ídolo da esquerda petista. Internamente, adotou métodos peculiares de administração que o desgastaram com seus pares _ entre as novidades, está a obrigatoriedade de leitura de livros de forte conteúdo ideológico e a submissão dos diplomatas a sabatinas com base nessas publicações, conduzidas pessoalmente por ele.

Já em 2003, Amorim foi pressionado a despachar Samuel para a embaixada em Buenos Aires. Amigo de longa data do secretário-geral, de quem é também co-sogro, Amorim não conseguiu convencê-lo a deixar Brasília. Agora, com a mudança de governo, surgiu uma nova oportunidade.

Embora publicamente o presidente Lula elogie a política externa, internamente a avaliação no governo é a de que ela não produziu os resultados esperados. Em quatro anos, o Brasil perdeu todas as disputas por cargos importantes em órgãos multilaterais, azedou as relações com os vizinhos sul-americanos, distanciou-se dos países ricos, criou alianças improdutivas com os emergentes e isolou-se das principais negociações comerciais.

O Palácio do Planalto avalia que pode mudar os rumos da diplomacia com Celso Amorim. O chanceler é considerado um dos mais brilhantes de sua geração. É um forte defensor do multilateralismo e não vê problema numa aproximação com os EUA, mas teve a sua gestão arranhada pela politização das negociações comerciais, patrocinada por Samuel Pinheiro Guimarães e, em certa medida, por Marco Aurélio Garcia. Além disso, Amorim nunca viu com bons olhos a interferência de outros ministros _ casos de Garcia e de José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil _ na política externa. Interlocutor privilegiado do governo Bush desde a campanha presidencial de 2002, Dirceu foi mais de uma vez a Washington, entre 2003 e 2005, aparar arestas com o governo americano, criadas pela diplomacia.