Título: Empresas poluidoras são alvo de processos nos EUA
Autor: Carey, John e Woellert, Lorraine
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2006, Internacional, p. A13

Dois dias depois que o furacão Katrina atingiu a costa americana do Golfo do México, F. Gerald Maples voltou a sua cidade natal, Pass Christian, no Mississippi. A maioria das casas estava destruída, inclusive a sua. "Isso nos deixou desolados e mudou radicalmente nossas vidas", diz. Também fez com que Maples, um veterano advogado de causas ligadas ao amianto, decidisse reagir. "Não pude ficar de braços cruzados quando minha história cultural inteira foi destruída por um evento que poderá se tornar mais freqüente por causa do aquecimento mundial", diz ele.

Assim, quando Timothy Porter, um colega, apareceu para ajudar com comida e água, os dois planejaram um ataque jurídico. Uma vez que a fúria do Katrina foi fortalecida pela água atipicamente quente do Golfo do México, e esse calor pode resultar do aquecimento global, empresas que lançam na atmosfera gases como dióxido de carbono (que causam o efeito estufa) deveriam ser responsabilizadas pelos danos, imaginaram. "O Katrina foi um resultado evidente da conduta irresponsável de emissões de dióxido de carbono pela economia empresarial", diz Maples.

Ele imediatamente passou a recrutar vizinhos sem-teto, como Ned Comer, e deu entrada numa ação coletiva no tribunal federal em Gulfport, Mississippi. Os réus? Dezenas de companhias petrolíferas, de eletricidade e produtoras de carvão, de Chevron e Exxon Mobil até a American Electric Power e a Xcel Energy. "Não quero deixar essa loucura de aquecimento global para meus filhos", diz Maples.

Essa parece ser a posição de muitos outros advogados, no que está se tornando uma ambiciosa guerra jurídica contra os setores petrolífero, elétrico, automobilístico e outras companhias cujas emissões de poluentes estão vinculadas ao aquecimento mundial.

Pelo menos 16 casos, elaborados com base em diversas estratégias jurídicas, aguardam julgamento em tribunais federais ou estaduais dos EUA. Pode parecer uma salada desconexa de iniciativas, mas a contestação emerge de uma preocupação comum: a inação em Washington. "Esse pequeno boom nos processos motivados pelo aquecimento mundial reflete a frustração com o fato de a Casa Branca e o Congresso não estarem enfrentando a questão", diz John Echeverria, diretor do Instituto de Legislação e Política Ambiental da Universidade Georgetown. "Por isso, para bem ou para mal, as ações estão assumindo a vanguarda."

Essa não é a primeira vez em que o Judiciário assume o papel de fórum para aqueles que se sentiram órfãos em questões de amplo interesse social. É possível que essa assalto legal se revele quixotesco, similar aos fracassados processos movidos por cidades que buscavam responsabilizar fabricantes de armas pela violência armada, ou por afro-americanos em busca de indenizações pela escravidão.

Mas há um exemplo preocupante para os poluidores: o dos fabricantes de cigarros. Quando os Estados começaram a processar as empresas, em meados da década de 90, para recuperar custos de assistência médica relacionadas ao hábito de fumar, os litígios foram considerados extravagantes. Mas, antes do fim da década, os fabricantes aceitaram pagar mais de US$ 300 bilhões e fazer grandes mudanças na sua publicidade.

Além disso, os autores das ações podem produzir um impacto mesmo sem vitória nos tribunais. A simples ameaça de ações judiciais envolvendo a questão da obesidade fez com que distribuidores refrigerantes e comidas fizessem de tudo para modificar seus produtos e melhorar sua imagem pública. De fato, em última instância, o objetivo dos ambientalistas não é, necessariamente, vencer nos tribunais, mas aumentar a pressão sobre empresas e políticos, para que imponham limitações obrigatórias sobre as emissões de gases.

As empresas querem manter a questão do aquecimento global fora dos tribunais. "Esse tipo de juízo deveria ser feitos por representantes eleitos", insiste Quentin Riegel, vice-presidente de litígios da National Association of Manufacturers, principal entidade empresarial da indústria nos EUA. Os advogados das empresas não esperam ter de pagar indenizações no curtíssimo prazo, mas estão levando o litígio a sério. Três grandes escritórios de advocacia (o Hunton & Williams, o Jones Day, e o Sidley Austin) estão coordenando esforços de defesa em nome de um grupo de geradoras de eletricidade.

Há sinais que outros vêm como inelutáveis. Bryan Cave, sócio do escritório J. Kevin Healy, diz que a orientação para seus clientes empresariais é que tomem medidas "razoáveis" de redução de emissões para limitar riscos legais. E, apesar da forte oposição à imposição de limites obrigatórios pelo governo, muitas companhias, como precaução contra possíveis litígios, reservadamente se dizem dispostas a implementar reduções.

Assim como no caso dos fabricantes de cigarros, os queixosos estão recorrendo a uma série de embasamentos jurídicos, alguns bastante especulativos. Mas juízes e júris, especialmente em áreas que sofreram grandes prejuízos, como o litoral do Golfo do México, podem tender a ver favoravelmente reivindicações. O processo por indenização iniciado por Maples, no Mississippi, alega que a emissão de dióxido de carbono é uma "violação da ordem pública". Esse argumento é comum em ações contra abatedouros de suínos que exalam odores insalubres ou bares barulhentos. Recentemente foi usado com sucesso num importante processo contra fabricantes de tintas, por contaminação com chumbo.

A alegação de que o aquecimento global é uma violação da ordem pública é "muito difícil de sustentar", diz Michael Gerrard, advogado da Arnold & Porter, que monitora o processo para uma empresa. Isso porque é tremendamente difícil provar que os "gases estufa" causaram o Katrina. Mesmo se um júri concluir a favor, é igualmente difícil distribuir proporcionalmente a responsabilidade entre os poluidores. Maples terá conseguido uma importante vitória se, numa decisão esperada para algumas semanas, o juiz chegar a autorizar a realização do julgamento.

Em outro caso, Connecticut e outros Estados iniciaram uma ação contra cinco geradoras de eletricidade buscando limitar suas emissões de dióxido de carbono. Em San Francisco, um grupo liderado pela ONG Friends of the Earth abriu um processo visando obrigar a Overseas Private Investment e o banco de importações e exportações dos EUA (Eximbank) a levar em conta as emissões de gases estufa pelas indústrias nos projetos essas instituições financiam.

Mais processos podem estar a caminho. A Universidade Stanford planeja realizar simpósios sobre possíveis medidas legais contra as mudanças climáticas. E Stephen Susman, um importante advogados americano, está assumindo esse esforço como uma cruzada pessoal. Seu escritório está representando gratuitamente cidades texanas em seu esforço para assegurar que as geradoras de eletricidade poluam menos. E ele está buscando outras oportunidades para contribuir para a causa. Na década de 90, Susman defendeu a Philip Morris em processos contra fabricantes de cigarros iniciados pelos Estados - e então acreditava que o embasamento jurídico de seus adversários eram tão "bizarros" que eles não teriam nenhuma chance de vencer. "No fim das contas, o tolo era eu - e não vou deixar que isso se repita", diz Susman.

(Tradução de Sergio Blum)