Título: Curto circuito
Autor: Rockmann, Roberto
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2006, Caderno Especial, p. F1

As tarifas de energia elétrica pagas pelas indústrias brasileiras subiram 110% desde dezembro de 2002. A conta de luz ficou, assim, mais cara, comparativamente, que a de outros países em desenvolvimento como Índia, China, Rússia e África do Sul. Os preços são mais altos até que em países de renda per capita maior que a brasileira, como Canadá ou Holanda. Os encargos setoriais também subiram muito no período - passaram de R$ 5 bilhões para R$ 13 bilhões nos últimos quatro anos.

Nos últimos leilões realizados pelo governo, por conta principalmente da dificuldade de obtenção de licenças ambientais, as usinas térmicas movidas a gás, óleo e carvão ganharam espaço na matriz energética do país. As hidrelétricas - mais baratas e menos poluentes - perderam peso. Há quinze anos, mais de 90% da energia do país vinha de fontes hidrelétricas. Hoje, esse percentual caiu para a casa dos 80%. Mantido o atual cenário de preços crescentes, estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que a economia brasileira terá perdas significativas nos próximos dez anos. Entre 2006 e 2015, o país poderá ter queda de 8,6 pontos percentuais em seu PIB potencial, o equivalente a R$ 214 bilhões, a preços de 2005. Esse será um dos temas em discussão no seminário "Energia como fator de competitividade econômica" que o Valor promove hoje, em São Paulo.

Pressupondo a manutenção, em termos reais, dos preços da energia verificados em 2005, o estudo sinaliza que o Brasil poderia crescer 3,69% anuais de 2006 a 2010, e 3,7% ao ano entre 2011 a 2015. Já as exportações do país cresceriam a cada ano 5,7% até 2010 e 4,8% de 2011 a 2015. Esses números, no entanto, seriam bem diferentes no atual cenário de pressões crescentes sobre o insumo.

Baseando-se nas projeções apresentadas pelo Plano Decenal de Energia Elétrica do governo, o estudo da FGV estima que a energia suba 20,3%, no geral, e 34,5% para a indústria de 2006 a 2015. Nesse cenário, o PIB brasileiro sofrerá uma redução de 0,49 ponto percentual ao ano entre 2006 e 2010 -- ou seja, em vez de crescer 3,69%, a expansão do país ficaria em 3,2%. De 2011 a 2015, o crescimento econômico seria ainda mais afetado, com uma retração de 1,16 ponto percentual a cada ano. Com isso, em vez de expandir-se 3,7%, o país cresceria no período 2,54%. Por quê? A previsão mostra que as tarifas de energia até 2010 devem subir 0,81% ao ano. E de 2011 a 2015, a alta será mais expressiva, de 2,93%.

A diferença nas estimativas explica-se: o país começa a formar o preço da nova energia que entrará no sistema a partir da próxima década e, diante de encargos crescentes, impostos altos, menos hidrelétricas no sistema, o preço tenderá a subir.

Além de ser insumo básico de fabricantes de aço, minério, papel, celulose, cimento, alumínio, vidro, petroquímicos, a energia é um item que pressiona cada vez mais outros setores da economia. Por exemplo, os materiais de construção - cimento, vidro, aço - são eletrointensivos. Shopping centers, hotéis e redes de varejo têm no insumo um item de despesa cada vez mais importante. A pressão crescente dos preços pode prejudicar a atração de investimentos.

"O Brasil poderá ficar mais uma vez para trás nessa corrida. A China, até 2010, vai crescer 6% a cada ano, e o Chile deverá crescer mais de 5%", diz o coordenador do estudo da FGV Projetos, Fernando Garcia. "De 1900 a 1980, o Brasil cresceu 5,5% ao ano, de lá para cá a taxa caiu para 2,3%. A perda de dinamismo está relacionada à menor competitividade", afirma.

A energia mais cara também terá efeito sobre as exportações. De 2006 a 2010, em vez de crescerem 5,6% ao ano, podem aumentar a metade disso. De 2011 a 2015, os embarques devem cair 1,5 ponto percentual, para 3,3% de alta anual. Produtores de frango, por exemplo, têm na energia uma de suas despesas mais importantes. Dependendo da etapa de produção o insumo chega a responder por mais de 10% dos custos.

O setor elétrico hoje vive um momento de formação de preços da nova energia. Terminado o racionamento no primeiro trimestre de 2002, verificou-se uma sobra conjuntural de energia, o que acabou derrubando os preços e colocando uma dúvida sobre a retomada do consumo e sobre o equilíbrio entre oferta e demanda. Agora o horizonte mudou. Começa-se a prever que as curvas da oferta e da demanda podem se encontrar no fim dessa década ou início da próxima. Novos empreendimentos - com novos preços - serão fundamentais para assegurar o abastecimento no longo prazo.

Os primeiros sinais não são animadores para o setor produtivo. "Haverá, sim, uma alta expressiva, porque há mais térmicas no sistema e os projetos estruturantes terão um custo bastante pesado", diz o presidente de uma das distribuidoras do país.

"Estamos preocupados em que os preços continuem aumentando muito nos próximos anos", afirma o vice-presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace), Eduardo Spalding. O governo iniciou, em abril de 2003, o processo de realinhamento tarifário, reduzindo os subsídios cruzados existentes no sistema. Sob o argumento de que os consumidores residenciais não podiam mais sofrer altas expressivas nas contas, o governo transferiu o custo para os grandes consumidores. Para Spalding, essa seria uma distorção. Outro problema foi a alta dos encargos setoriais.

O cenário ficou mais nebuloso com os resultados dos últimos dois leilões de energia nova. No fim do ano passado, a oferta de energia hidrelétrica ficou em 30%, enquanto a de térmica ficou em 70%. No leilão realizado em setembro, foram contratados 1,1 mil MW médios, sendo que a energia hidrelétrica respondeu por 569 MW médios (preço médio de R$ 112 o MWh), ou 51,5%. O restante veio de fontes térmicas, com preço médio de R$ 137 o MWh (cerca de US$ 62 o MWh - mais cara que a geração térmica nos EUA, próxima de US$ 55). "Isso traz grande impacto", diz Spalding.

A dificuldade de obter licenças ambientais é um dos grandes obstáculos à licitação das hidrelétricas. No último leilão, só depois de diversas batalhas judiciais, cinco hidrelétricas foram disponibilizadas ao mercado.

Outro grande problema é a legislação ambiental, que prevê que a compensação ambiental de cada projeto de infra-estrutura não seja inferior a 0,5% do valor do investimento, mas não define um teto. Em uma pesquisa da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib) feita com 19 empreendimentos de energia e de outros setores, os custos com a compensação ficaram entre 3,5% e 5% - ou seja, até dez vezes mais que os números exigidos. Novas hidrelétricas, por exemplo, têm pago até 3% do investimento a título de compensação ambiental. "Essa imprevisibilidade faz com que muitos investidores fiquem inseguros", diz o presidente da entidade, Paulo Godoy.

O gás natural é outro fator de incerteza. Definido o segundo turno da eleição presidencial, Brasil e Bolívia devem decidir o novo preço da commodity. A expectativa entre os industriais é de que as contas possam ficar até 30% mais caras.

O governo rebate as críticas de especialistas e representantes de segmentos da indústria e do setor energético relacionadas, principalmente, ao cenário atual para investimentos em auto-produção, com as dificuldades para a viabilização de empreendimentos já licitados e com a elevação dos preços dos energéticos. Segundo o Ministério das Minas e Energia, parte significativa dos problemas enfrentados atualmente pelos auto-produtores redunda de falhas do modelo institucional implementado no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal criada no atual governo para cuidar do planejamento do setor elétrico, negou ainda que a elevação do custo da eletricidade tenha influência de um maior número de usinas termelétricas no sistema elétrico. Segundo ele, os preços se elevaram porque praticamente esgotou-se a sobra de energia elétrica que foi criada após o racionamento de energia elétrica, em 2001. "A sobra, que atingiu cerca de 8 mil MW, proporcionou energia mais barata por um período de até três anos", disse ele.