Título: Mercado perde um dos pais da Lei das S.A.
Autor: Frisch, Felipe
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2006, Empresas, p. B9

Se não fosse ele já o advogado de uma das partes de um julgamento agendado para ontem mesmo na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), provavelmente o seu falecimento seria motivo para cancelar a pauta da tarde da autarquia que regula o mercado de capitais brasileiro há quase exatos 30 anos, quando o órgão foi criado pela Lei nº 6.385, de 1976, de autoria dele e do jurista Alfredo Lamy Filho. O direito societário perdeu na madrugada de segunda para terça-feira, aos 82 anos, um dos pais da Lei das S.A. - a Lei nº 6.404, de 1976 -, José Luiz Bulhões Pedreira, com câncer generalizado, cujos velório e enterro, realizados ontem no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, pararam o mercado de direito societário em todo o país.

Entre os institutos criados por ele na época, amigos e advogados destacam muitos que só passaram a ser utilizados recentemente pelo mercado brasileiro, mesmo tendo sido criados há três décadas. É o caso das ofertas públicas hostis, possibilidade que causou um grande "frisson" nos últimos meses com a pulverização de capital de diversas companhias abertas e mais especificamente com a tentativa, frustrada, da Sadia de adquirir o controle da sua concorrente Perdigão. Foi o primeiro caso, e o segundo frustrado, desde 1978, quando a Cataguazes fez uma oferta pela Companhia Mineira de Eletricidade, rebatida pela concorrente Cemig. Outras definições previstas na Lei das S.A. ainda nem foram colocadas em prática, como a dos grupos de sociedades, em que diferentes empresas do grupo se reuniriam para determinados fins, como relata a ex-diretora da CVM, Norma Parente, nos quadros da autarquia na época.

Assim como outros colegas, Norma destaca a disponibilidade de Bulhões, sempre disposto a dar pareceres e esclarecimentos de interpretação sobre a lei que tinha ajudado a criar, e que resultaria no livro "A Lei das S.A.", também em co-autoria com Lamy Filho. "Ele tinha um viés protetor da empresa, que não sobreviveria sem o acionista minoritário", avalia Norma. Fruto desse entendimento foi a inclusão, na reforma de 2001 da lei - que resultou na Lei 10.303, a chamada "Nova Lei das S.A.", da qual ele também participou ativamente -, de um representante dos preferencialistas (donos de ações PN, sem direito a voto) no conselho de administração das empresas de capital aberto.

Para o advogado Paulo Cezar Aragão, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão, lembrar de Bulhões Pedreira apenas pela Lei nº 6.404 - já uma reforma do Decreto nº 2.627, de 1940 - não será justo com a Lei nº 4.728. Nessa de 1965, o amigo José Luiz há 30 anos já introduzia "boa parte dos institutos hoje erradamente considerados frutos da reforma de 1976". Foi na ocasião que foram introduzidos no mercado brasileiro instrumentos como as debêntures conversíveis, o capital autorizado, as ações de tesouraria, os bônus de subscrição e as opções de ações para executivos, exemplifica Aragão.

Apesar da influência atribuída ao mercado americano, a legislação brasileira foi pioneira em muitos pontos, como a definição do acionista controlador, graças ao jurista, lembra Nelson Eizirik, também ex-diretor da CVM. Um ponto que agora começa a ser discutido pelo mercado brasileiro, mas que já estava previsto na legislação brasileira da década de 1970 é a possibilidade de procurações (as "proxys"), diz. Tais instrumentos serem novidade aqui só mostra um desconhecimento da legislação societária pelo próprio mercado, ele avalia. Desconhecimento que Bulhões Pedreira tentava dirimir atuando como professor, como ao criar o Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (Ceped), no Rio de Janeiro, em 1966.

O ex-presidente da CVM, Luiz Leonardo Cantidiano, relata um caso em que teve que negociar com o seu professor da época da criação da autarquia. Na époxa, ambos trabalhavam no contrato de venda da Paranapanema, em que Bulhões atuava pelos vendedores e Cantidiano, pela empresa compradora. "Na cláusula de responsabilidade do vendedor por passivos anteriores, ele me disse 'não vamos ser mesquinhos e vamos estabelecer um piso, abaixo do qual não vamos ficar deduzindo do valor da venda, ou o comprador vai ficar procurando piolho na companhia'", relata. Desde então, Cantidiano tem usado esse padrão em suas negociações. O atual presidente da autarquia, Marcelo Trindade, presente ao enterro, considera Bulhões "um brasileiro que colocou sua enorme inteligência muitas e muitas vezes a serviço do país".

Entre os advogados ouvidos pelo Valor, uma constante foram os relatos de contatos recentes com o jurista, ainda em franca atividade. Na véspera de seu falecimento, enviou para a editora os últimos capítulos do seu livro sobre os 30 anos da Lei das S.A., novamente em parceria com Lamy. O advogado, da banca Bulhões Pedreira, Bulhões Carvalho, Piva, Rosman e Souza Leão Advogados, atuava ainda no projeto de alteração da legislação no que diz respeito às demonstrações financeira.