Título: 'Terceiro turno' pode levar o país a um racha
Autor: Magalhães, Heloisa
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2006, Política, p. A13

Os governadores eleitos José Serra, de São Paulo, e Aécio Neves, de Minas Gerais, terão papel fundamental para equilibrar o desenvolvimento do chamado "terceiro turno", caso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja reeleito domingo. Para o cientista político e professor Marcus Figueiredo, do Instituto Universitário de Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj), um "terceiro turno" poderá promover um "racha no país", dependendo da evolução das apurações de denúncias envolvendo participação de pessoas próximas ao presidente da República na compra de dossiê com o objetivo de prejudicar a campanha tucana para o governo de São Paulo.

Nesta entrevista, o professor fala também das motivações para o voto e destaca que as pesquisas estão indicando que Lula será reeleito com ampla margem, a não ser que aconteça fato absolutamente inesperado. Além disso, lembra que os resultados das eleições estaduais são altamente favoráveis ao presidente. E frisa que não acredita que Serra embarque num confronto regido pela oposição, que pode se transformar em "golpismo de direita".

" O Aécio já começou a campanha e já disse que procura o equilíbrio. Está se preparando para 2010, quando vai disputar com o candidato do Lula. Ele e Serra são dois políticos com fortes bancadas e capacidade de diálogo muito grande", afirma.

Marcus Figueiredo lembra, entretanto, que caso seja eleito, Lula vai precisar montar uma base parlamentar sólida. "A experiência do mandato anterior não foi feliz. Ele terá de reconstruir uma composição dentro do Congresso. "Estamos diante de forças políticas que têm mais ou menos o mesmo peso. O PMDB é o divisor", diz.

Mas, alerta: "Lula terá de tomar muito cuidado com a aliança com o PMDB, porque entre os ganhadores do PMDB que ficaram com Lula há os que não têm boa história". Avalia que será necessário fazer o que classifica como "concertação política programática" para garantir os primeiros dois anos de governo, uma vez que nos dois seguintes já será deflagrado novo processo de eleição presidencial. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Valor: O que mais pesa na escolha do voto é o bolso?

Marcus Figueiredo: Eleições presidenciais têm por objetivo fundamental o estado da nação, Estado econômico de bem-estar da população que sempre carrega o debate para ganhos e perdas, tanto econômicas como sociais. Portanto, no que se refere, principalmente, à disputa presidencial, a idéia de que o eleitor vota pelo bolso encerra uma concepção de decisão política entre ganhos e perdas. Para governador também entra um pouco disso, mas pesam também fatores de outra natureza.

Valor: O senhor acredita que o eleitor, mesmo o menos informado, tem consciência dos limites de atuação de cada Poder?

Figueiredo: Sim. Por exemplo, o presidente da República tem muito pouco a fazer no que se refere à segurança pública . O eleitor sabe que é responsabilidade da polícia estadual. Da mesma forma que não cobra do prefeito o problema de insegurança pública. O eleitor tem perfeita clareza das distinções de cada cargo. A economia representa para o eleitor, numa linguagem mais simples, exatamente o que representa o salário no final do mês para 99% dos trabalhadores. Se a economia vai bem o salário chega ao final do mês, se vai mal, não chega. Neste momento, e eleitor pratica de forma muito lúcida o que chamamos de voto retrospectivo e voto prospectivo. Ele olha para trás e vê como foram os ganhos que teve, se é que teve. E olha para a frente na expectativa de ganhos que poderá vir a ter e quem será capaz de fazer isso. O segundo elemento da decisão do voto passa pela identificação de quem é capaz de garantir o que está prometendo. As promessas de Lula e de (Geraldo) Alckmin são relativamente semelhantes. Cruamente, o eleitor sabe que uma boa parte das promessas não será cumprida porque nem tudo é possível. Mas espera que sejam cumpridas as essenciais. O eleitor precisa de uma garantia quando vota: se quem está prometendo tem um mínimo de capacidade política para cumprir essas promessas.

Valor: Como o candidato mostra que poderá cumprir o prometido?

Figueiredo: Mostrando os aliados. A importância desses aliados na execução dos programas de cada candidato tem efeito muito grande. O eleitor pensa que por melhor que o candidato seja, ele não tendo uma aliança em volta dele, um grupo em volta dele capaz de garantir politicamente a possibilidade de implementar, o eleitor lamenta mas não vota, opta por outro. Então, quando se fala que eleição presidencial decide-se pelo bolso, tem uma carga retórica nessa frase, mas ela significa que o fator essencial de decisão eleitoral para presidente da República é o estado econômico e social das pessoas. Isso significa poder de compra e ganhos sociais. Sempre que o estado da economia e os ganhos sociais são positivos, o governante é bem avaliado e sendo bem avaliado tem uma alta probabilidade de ser eleito.

Valor: O Real representou um ganho importante para a população. O que aconteceu que prejudicou o desempenho em 2002? Naquela época Lula era apenas uma promessa.

Figueiredo: Na sua campanha de 1998, Fernando Henrique Cardoso colocou, em especial, duas promessas: garantia da estabilidade e abertura de empregos. A primeira, ele não agüentou. Em janeiro de 1999, veio a crise do Real e do Banco Central. Ele foi obrigado a desvalorizar o real em 30%. Em dezembro de 1998, Fernando Henrique tinha quase 40% de aprovação do eleitorado e em fevereiro de 1999, depois da desvalorização do real, caiu para 29%. Ele passou variando em torno de 25% e 29% de aprovação até o final do seu governo. Então, o eleitor olhou e disse: eu garanti a eleição desse candidato porque ele disse que iria garantir o real e o emprego. E ao longo desse período, por mais que tenha havido oferta de emprego, não foi tanta assim para gerar no eleitorado um estado psicológico de bem-estar e garantias. O eleitor estava vendo o Real indo para o espaço e uma dificuldade enorme de emprego. Daí, surge a idéia da mudança. Quando Lula se apresenta em 2002, encarna essa mudança. Ele se apresentou como alguém maduro, capaz de enfrentar os problemas e com uma política mais sensível às demandas sociais. Mas Lula não ganhou logo no início da campanha. No período, houve situações de ganhos e perdas. O candidato do Fernando Henrique, José Serra, apresentou uma campanha substantivamente voltada para o emprego e para o bem-estar social. O discurso que a demanda popular pedia. Mas ele vinha dos tucanos, de um ninho que acabava de decepcionar o eleitorado.

Valor: O bolso pesa mais do que a corrupção?

Figueiredo: Varia em função da natureza do processo. Temos que dividir o eleitorado por graus de percepção das atividades governamentais no que se refere ao combate à corrupção e quanto ao exercício da corrupção. O nível de carência na baixa renda é muito alto. Ele é perfeitamente ciente de que políticos em geral roubam, mas fazem, oferecem respostas às carências. O eleitor cuja carência é muito grande e depende da ação do Estado, ele raciocina de forma bastante cínica, mas perfeitamente compreensível, que é a seguinte: se para eu ser atendido nas demandas sociais os políticos vão cobrar um pedágio eu estou disposto a pagar, não importa que ele ganhe um pouco desde que atenda as minhas carências. Não estou falando de clientelismo barato, de arrumar um empreguinho para uma pessoa ou para outra ou arrumar um leito em um hospital. Estou falando é de saneamento básico, asfalto, iluminação, água nas favelas, de saúde.

Valor: Mas a classe média mostrou-se atenta à corrupção no primeiro turno...

Figueiredo: A classe média brasileira é suscetível à questão da corrupção porque tem suas carências básicas supridas. Passa pelo famoso fenômeno do comportamento sócio-trópico. Vota pensando no mais pobre. A classe média tirou voto de Lula no primeiro turno e provocou o segundo turno porque o presidente não se comportou de forma adequada no processo eleitoral. Estava arrogante. Faltou ao debate. E havia o episódio do dossiê. Lula não estava dando uma resposta à população. Resultado: a classe média produziu o segundo turno.

Valor: Mas as pesquisas estão indicando uma mudança de comportamento da classe média neste segundo turno.

-------------------------------------------------------------------------------- "O eleitor cuja carência é muito grande raciocina de forma bastante cínica, mas também perfeitamente compreensível" --------------------------------------------------------------------------------

Figueiredo: Depois do primeiro debate (na Rede Bandeirantes), ficou absolutamente claro que a classe média voltou para Lula. Voltou porque perdoou a história do mensalão ou do dossiê? Não, porque a leitura é que isso não faz parte do Lula. Isso é do PT, da política.

Valor: Mesmo com indicações de que há envolvimento de pessoas próximas ao presidente?

Figueiredo: Não há nenhuma evidência posta publicamente de que Lula pegou dinheiro e colocou no bolso dele. Essa é a questão fundamental para o eleitorado.

Valor: Que erros os tucanos estão cometendo na campanha para as pesquisas de intenção de votos abrirem cada vez mais vantagem para Lula?

Figueiredo: Quando ocorreu o episódio do mensalão, a oposição decidiu não atacar o presidente. Decidiu sangrar o PT até a eleição e preservou o presidente Lula. Preservado, ele recuperou a popularidade. Depois que o processo se transforma em disputa eleitoral, acusar vira bate-boca de eleição, vira oportunismo. Porque está acusando agora se sabia disso antes e não acusou? Esse foi o primeiro erro. O segundo erro foi a disputa interna do PSDB em relação a candidatura José Serra versus Geraldo Alckmin. Isso, evidentemente, desgastou o partido. É o responsável pela provável derrota? Não é, mas contribuiu. José Serra tinha um componente político importantíssimo que Alckmin não tem. Serra foi derrotado em 2002 avisando ao eleitorado que tomasse cuidado com o PT. Não surtiu efeito naquela ocasião. Aquilo que foi denunciado em 2002 em relação ao PT não foi retomado nesta campanha, a memória do eleitorado não foi resgatada. A postura ficou restrita a um aspecto puramente moralista e não ao processo político. Para o eleitorado, tornou-se uma campanha inteiramente nova entre um candidato conhecido e outro inteiramente desconhecido. O debate ficou entre o que eu faço no Brasil versus o que o outro fez em São Paulo.

Valor: O resultado do primeiro turno foi então respondendo ao bolso do eleitor?

Figueiredo: Lula perdeu no Sul e no Centro-Oeste, afetados pela queda dos negócios agrícolas. Lula está ganhando no Nordeste porque a região registrou uma taxa de crescimento superior à média brasileira. É uma região em crescimento. Foi muito mais beneficiada pelos programas sociais. O eleitorado do Nordeste pensou: eu sou carente, preciso crescer, meu Estado está crescendo, então não quero mudar essa política, ela está boa. Então, votou em Lula. Agora, o que acontece é que como existem menos, mas existem, carências no Sul, Sudeste e no Centro-Oeste, a diferença não é muito grande entre os dois candidatos (nessas regiões), e isso equilibrou. A bancada ruralista no Congresso hoje tem o dobro do tamanho que tinha no passado. Esses deputados foram eleitos fundamentalmente na trilha da migração dos gaúchos, na expansão agrícola. Descarregaram o voto no Alckmin. Só que na hora do confronto, qual é a política agrícola oferecida? O Alckmin não oferece nos debates eleitorais uma resposta à crise da fronteira agrícola no Sul e no Centro-Oeste.

Valor: O Lula vai crescer então nessas regiões?

Figueiredo: Pode ser que não vença, principalmente no Rio Grande do Sul, mas não tenho dúvida que a diferença vai diminuir na comparação com o primeiro turno. Isso impacta nas disputas estaduais. No segundo turno está havendo uma onda pró-Lula nas disputas pelos governos estaduais. Entre os exemplos, temos o Rio de Janeiro, Pernambuco, Pará, Rio Grande do Norte e Maranhão. No Rio Grande do Sul, a Yeda Crusius (PSDB) irá ganhar a eleição porque além da questão nacional há também as locais. Ela própria, é a terceira ou quarta vez que disputa. E o PT está desgastado no Rio Grande do Sul.

Valor: Como o senhor acha que fica a questão da governabilidade uma vez Lula reeleito? As investigações do dossiê vão continuar.

Figueiredo: Estamos falando na possibilidade de um " terceiro turno" em relação aos acontecimentos que envolvem a eleição? A implicação jurídica pode interferir. Um crime eleitoral é passível de caçar o diploma do presidente eleito. Não vai provocar o impeachment do presidente e sim a cassação do candidato eleito. Ele perde o segundo turno por cassação da candidatura, por decisão do Tribunal Eleitoral. Já houve casos de prefeitos cassados.

Valor: O senhor acha que isso pode acontecer?

Figueiredo: Trata-se de uma possibilidade extremamente difícil. Se levarmos em consideração tudo o que apareceu na mídia - eu não tenho outra base - não tem nada que implique a candidatura do presidente. A argumentação jurídica até pode chegar a esse ponto, mas acho extremamente difícil. E por duas razões: seria um revanchismo tão grande, tão forte, que geraria um racha no país.

Valor: Principalmente caso o presidente Lula seja eleito com os votos que as pesquisas estão indicando...

Figueiredo: Exatamente. Nós estamos falando em um confronto social perigoso. Trata-se de um grupo derrotado enfrentando 70% da população. Isso é muito perigoso, eu não acredito que a oposição vá caminhar nessa direção. Além disso, os resultados das eleições estaduais são altamente favoráveis ao Lula. José Serra, por exemplo, certamente não embarcaria nesse confronto de "golpismo" de direita em cima do resultado eleitoral, via Tribunal. O Aécio (Neves) já falou que não. São dois políticos com fortes bancadas e capacidade de diálogo muito grande. E, ainda, os governadores eleitos pelo resto do país são lideranças novas. Não tem aquelas raposas antigas, capazes de embarcar numa aventura dessas. Portanto, o horizonte de Lula é de diálogo.

Valor: Eleito, como Lula irá montar a base parlamentar de apoio? Ele não pode repetir erros do passado...

Figueiredo: Lula precisa montar uma base parlamentar relativamente sólida. A experiência do mandato anterior não foi feliz. Ele terá que reconstruir uma composição dentro do Congresso. Grosso modo, cada grupo está com cem deputados. PSDB/PFL têm cerca de 120 deputados; PT e seus aliados tradicionais somam praticamente 110 deputados. O PMDB está com mais de 80 deputados. Estamos diante de três forças políticas que têm mais ou menos o mesmo peso. O PMDB é o divisor. Lula terá que tomar muito cuidado com a aliança com o PMDB porque, do ponto de vista histórico, os ganhadores do PMDB, com exceção do Rio de Janeiro, que ficaram com Lula não têm boa história. Jader Barbalho está tendo uma atuação importantíssima na eleição de Ana Júlia, candidata a governadora no Pará, mas ele tem muito que explicar. De qualquer forma, o PMDB será o fiel da balança e a aliança com o partido não poderá ser na base do suposto mensalão. Terá que haver uma concertação política programática.

Valor: O que o senhor quer dizer com concertação programática?

Figueiredo: É chamar as lideranças que estão com Lula e as lideranças de oposição que podem conversar e fazer acertos com o governo para uma pauta governativa para os próximos dois anos. Não podemos abrir o Congresso Nacional no ano que vem como se fosse a continuidade do último. Tem que haver um espírito novo, um projeto novo. Tem que resolver com muita cautela a questão do presidente da Câmara e do Senado. Não podemos mais partir para a aventura que produziu o Severino (Cavalcanti). Neste particular é que acho que os governadores da oposição, no caso José Serra e Aécio Neves, têm um papel importantíssimo para manter a continuidade institucional e construir, ainda que na oposição, um diálogo positivo com o governo para avançarmos nos próximos dois anos. Falo em dois anos porque em 2008, passada a eleição de prefeitos, inicia-se a campanha presidencial seguinte. De modo que Lula tem dois anos para completar o trabalho que ele fez até agora.