Título: Longe da política, Furukawa prepara livro
Autor: Junqueira, Caio
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2006, Política, p. A16

No dia 15 de maio, São Paulo amanheceu sitiada. Sair às ruas, só em último caso. Não havia um toque de recolher explícito. Não era necessário. O quarto dia de ações da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) no Estado já contabilizava 73 rebeliões e 180 ataques. Na ponta oposta ao crime organizado, o então secretário Nagashi Furukawa tentava controlar a situação e minimizar as divergências com o secretário de Segurança, Saulo de Castro Abreu Filho. A situação ficou insustentável e sem Geraldo Alckmin no governo paulista, o homem forte das penitenciárias caiu.

Cinco meses depois, a crise de maio transformou-se no primeiro capítulo do livro, escrito pelo próprio Nagashi. A obra "pode nem sair", confessa o ex-secretário, mas as 127 páginas já prontas e organizadas o ajudaram a ocupar o tempo. Depois de seis anos e meio gerenciando a área mais problemática do governo de São Paulo, ter o dia livre pode ser angustiante. Não que faltem oportunidades, mas o ex-secretário ainda não definiu se voltará a lecionar em uma faculdade de direito, prestará assessoria a algum governo ou até mesmo se voltará ao Executivo - hipótese afastada, mas não descartada. Aposentado como juiz de direito, Nagashi alterna-se entre sua casa em Bragança Paulista, a uma hora e meia da capital, e seu refúgio no litoral.

Nada de campanha para Geraldo Alckmin, nem mesmo em eventos fechados. Até o convite de seu partido, o PSDB, para concorrer a uma vaga como deputado estadual foi rechaçado. O único pedido que não rejeitou foi do neto do ex-governador Mário Covas, Bruno, eleito para a Assembléia Legislativa. Participou de uma reunião com outros ex-secretários de Covas, pegou impressos de campanha e distribuiu. Nada muito engajado, mas a única campanha que fez.

A política, partidária e penitenciária, por enquanto, está restrita aos livros de cabeceira. Na sala de paredes laranjas, seu escritório improvisado no térreo de sua confortável casa de Bragança, Nagashi mergulha na leitura de obras daqueles que já vivenciaram os conflitos do sistema penitenciário: "Meu casaco de general -500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro", do ex-secretário Luiz Eduardo Soares, no governo Anthony Garotinho, e "Elite da tropa", do mesmo autor; "Estação Carandiru", do médico Drauzio Varella, também. Ao lado, "Arte da Política", do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é uma leitura inacabada.

Das eleições, ele quer distância. Credita à proximidade das eleições e às tentativas de enfraquecer a candidatura de Alckmin a efervescência dos ataques do crime organizado no primeiro semestre do ano. O secretário defende com convicção essa idéia. O resultado do primeiro levante foi cruel para a carreira dos responsáveis pela segurança do Estado: mais de 400 mortos no período de 12 a 19 de maio. Desde que saiu do governo, Nagashi não pára de se perguntar: "A lotação das penitenciárias era a mesma do ano passado. O secretário era o mesmo. Tudo estava igual. Por que só agora, quando Alckmin saiu como candidato, que houve isso?". Nos bastidores da campanha, a longa calmaria nos presídios que sucedeu à sua saída é atribuída a acertos entre o governo e o PCC.

Ao lembrar dos ataques, o número de cigarros acesos por Nagashi aumenta. Seis, ao longo de uma tarde. Em seu governo nunca houve acordo, "jamais". Mas nem quando foi permitida a conversa de uma advogada ligada às lideranças do crime organizado com o líder da facção, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola? "Foi apenas uma negociação", afirma. A negociação contou com a participação do Estado, que bancou inclusive o helicóptero que levou a advogada à penitenciária onde estava Marcola, e foi entendida pelos parlamentares brasileiros como acordo. Por conta do episódio, Nagashi prestou depoimento à CPI do Tráfico de Armas, em agosto, e foi aí que começou seu livro. A recepção foi inóspita ao ex-secretário. "Aquilo foi um absurdo. A maneira como os deputados me trataram foi uma falta de respeito. Precisava relatar aquilo". Nos capítulos já escritos e organizados, estão também as 29 rebeliões simultâneas, de 2002, e a saída do secretariado, em 26 de maio.

A história na Secretaria de, por mais que Nagashi tente deixar no passado, está viva em seus dias. Os telefonemas de ameaça que recebia diminuíram, mas não minguou o assédio de jornalistas e interessados em conhecer a gênese do crime organizado no Estado. "Não sei por que ainda me procuram". Na tarde de conversa com o Valor, foi a vez de um repórter o procurar para repercutir críticas à sua gestão. No dia anterior, o francês "Le Monde" quis agendar uma conversa sobre a experiência no governo. "Quando entrei, seis anos atrás, o PCC já era um problema seríssimo. Cresceu, mas não mais que o número de presos. Quando assumi eram 53 mil presos. Hoje são mais de 125 mil".

O jeito calmo, sereno, de quem termina as frases com um sorriso aberto, em nada lembra a face preocupada dos últimos dias no governo. Na última entrevista, ao lado de Saulo de Castro, a irritação era visível. Os dois não se olhavam. Conflitos não faltaram entre as pastas de Segurança Pública e Administração Penitenciária. No auge da crise, o governador Cláudio Lembo, sucessor Alckmin, chegou a classificar Nagashi como "romântico" e Saulo como "realista". Mas pouco o governador conheceu do modo de administrar dos dois secretários. Depois do estopim dos ataques, não houve reunião do secretariado. Nenhum encontro entre os dois responsáveis pela segurança no Estado e o chefe do Executivo. Nenhum confronto de idéias. "Se Alckmin continuasse no governo, eu ficaria até o fim", limita-se a comentar.

Da saída da Secretaria no dia 26 de maio, ficaram sete páginas para o livro e alguns ressentimentos. De "romântico", pouco se pode identificar em sua visão sobre o sistema penitenciário. "Tem que ter ordem e disciplina". A ordem pode ser ditada pelo Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), atacado por entidades de direitos humanos por violar condições básicas. A disciplina, pela ameaça de uma pena mais dura, com mudanças na legislação criminal. A idéia mais polêmica, que rendeu-lhe o adjetivo de "romântico", foi dada pouco antes de sair do governo: como parte das penitenciárias foi destruída nas rebeliões, a solução seria isolar as lideranças em uma ilha. "Acho que não foi uma solução de loucura. Não era pra reativar nenhum presídio em ilha".

Na queda de braço com o secretário de Segurança, Nagashi levou a pior. Sob pressão, desligou-se do cargo, uma semana depois do fim da primeira onda de ataques. O ex-secretário agüentou a série mais forte das ações do PCC. Administrou 29 rebeliões simultâneas em 2002. Tirou a limpo pessoalmente as ameaças que recebia, supostamente de Fernandinho Beira Mar, de seqüestrar sua família - "Luiz Fernando, eu não sou homem de deixar as coisas no ar", questionou o criminoso. Negou a um diretor de presídio a transferência de seis presos do Regime Diferenciado de Detenção em troca da libertação da filha do diretor. Lidou com fugas cinematográficas das penitenciárias paulistas, como quando um helicóptero resgatou presos em Guarulhos ou os detentos conseguiram perfurar o piso, com camadas de rocha, cimento e chapa de aço para fugir. Mas não conseguiu administrar a vaidade de seus companheiros ou a falta de habilidade política de seus superiores no gerenciamento da crise.

Formalmente, Nagashi se desligou da Secretaria e não mantém qualquer contato com o novo secretário, Antonio Ferreira Pinto. O novo secretário, ligado ao governador Cláudio Lembo, iniciou um processo de desconstrução das ações da gestão anterior. A menina dos olhos de Nagashi, os convênios com entidades sociais para humanizar o tratamento e diminuir custos, foram pouco a pouco esvaziados. Em pouco mais de quatro meses a gestão de Nagashi foi virada pelo avesso. Alguns funcionários afastados na gestão anterior, por suspeita de irregularidades, retomaram funções no governo, em cargos comissionados.

Ao citar as ações na Secretaria, Nagashi mostra que não se afastou totalmente do cargo. Pelo menos na memória, onde as estatísticas, as ações e o nome dos diretores são ditos com muita naturalidade. Nagashi pega uma pasta cheia de folhas com timbre da Secretaria, aperta botões de uma pequena calculadora e dispara números: como secretário, diminuiu os gastos com os presos de R$ 2.222,85 por mês, em 1999 (valor corrigido pelo IGP-DI) para R$ 686 em 2005. "No total, foram R$ 804 milhões a menos todo ano". Mesmo com a economia de recursos, não houve contratação significativa de funcionários e o número de agentes carcerários cresceu bem menos que o número de presos. "Isso não influencia", diz. E solta mais dados: as fugas caíram de 0,77% do total para 0,11%; o número de óbitos diminuiu de 0,22% do total dos presos para 0,04%, no mesmo período. O ano de 2005 é o último a que ele se refere de sua gestão - 2006 prefere esquecer.

Ele se concentra em 2003. Depois de já ter enfrentado as 29 rebeliões simultâneas no ano anterior, finalmente um período mais ameno. Nagashi foi convidado a falar sobre a situação das penitenciárias paulistas em Oxford. O ex-secretário conta que a população carcerária paulista é mais que o dobro da de todo o Reino Unido. "Só era possível fazer o que foi feito. Não há muitas opções. São Paulo tem 35 mil presos a mais do que poderia ter. São 145 mil onde cabem 110 mil. Pedir eficiência a um administrador penitenciário é o mesmo que pedir a um administrador hospitalar para arrumar seis doentes em três camas. Como quer que funcione bem?"

Com o governador eleito José Serra, Nagashi diz que ainda não conversou. A equipe tucana o procurou para saber dos números, dos problemas e das soluções sugeridas. "Manter as duas secretarias, ter entrosamento muito forte entre Judiciário e o Ministério Público". Há um atraso muito grande no julgamento. Hoje são mais de 30 mil que já deveriam ter saído. Tem que ter também mudança na Lei de Execuções Penais. E construir mais presídios.

Depois da passagem pela Secretaria de Segurança, pelo Ministério da Justiça e pela Administração Penitenciária, a volta ao Executivo não é cogitada nesse momento. Os três filhos alegraram-se com a saída do pai do cargo. A esposa, Marli, com 51 anos, também. Dois filhos deles seguem o mesmo caminho jurídico do pai; Juliana, com 21 anos, é estudante de direito e Hélio, com 27 anos, é juiz em Itu, no interior paulista. O filho do meio, Arthur, de 26 anos, preferiu outro caminho e é dentista.

Nagashi não quer falar em culpados pela situação conturbada da política de segurança do Estado. Mas aponta as deficiências "do sistema". Não há equilíbrio entre o número contingente de pessoas que entram e os que são soltos. "É como se fosse colocando tudo dentro de uma banheira, com o ralo fechado. Uma hora transborda". Com o governo federal, tinha um bom relacionamento. O ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, foi "companheiro" em sua gestão. Mas faltaram os recursos. Ele poupa as ações da pasta de Saulo de Castro. "A polícia aperfeiçoa as ações, é natural que prenda mais. Não é a política certa, mas é o que se pode fazer diante das circunstâncias". Mas não deixa de criticar a falta de investigação. "A minha Secretaria nunca foi para combater o crime organizado. Vou combater com quem, assistente social, sociólogo? Se eu tivesse pessoal, tudo bem, mas não tem. Investigação é para a polícia".

Aos 57 anos, Nagashi diz que, sem dúvida, "valeu a experiência". "Ficou a satisfação de ter participado de dois governos. Eu dirigi 82 presídios, reduzi custos". As maiores conquistas foram a construção de centros de ressocialização, a extinção das celas nos distritos policiais - "aquilo me incomodava demais, o pessoal amarrava lençóis na cela, quase uma rede, e dormiam como um morcego. Eram 180 onde cabiam 30" - e o regime diferenciado, além dos convênios. Dos seis anos e meio que ficou no cargo, diz não ter ficado com peso na consciência por não ter conseguido desarticular a facção criminosa. "Apurar a existência de organização criminosa e combatê-la não é função da Secretaria de Administração Penitenciária. Até poderia ser se tivéssemos equipe". Uma reclamação? "A cobertura da mídia, muito superficial". E uma certeza: "A vida pública é extremamente ingrata. Aquilo que se faz de bom ninguém reconhece e, quando há falhas, você é execrado pela opinião pública".