Título: Kirchner põe prestígio à prova em eleição provincial
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2006, Política, p. A17

Neste domingo acontecem duas eleições importantes para a Argentina. Uma é a presidencial no Brasil, que definirá os próximos quatro anos da relação com o principal parceiro na América Latina. A outra será na pequena província de Misiones, que elegerá uma assembléia constituinte para reformar a Constituição provincial.

O objetivo da mudança é dar ao atual governador, Carlos Rovira, aliado do presidente Néstor Kirchner, a possibilidade de se reeleger quantas vezes quiser. Pela constituição local, o governador e o vice só têm direito a uma reeleição.

Observadores políticos do país dizem que o resultado dessa eleição significa a vitória ou a derrota da oposição, não só ao governador mas também a Kirchner, que está jogando suas fichas nesta campanha. "Essa é uma eleição emblemática. Se Rovira conseguir seu objetivo, a oposição sai enfraquecida. Isso vai repercutir em todo país, e Kirchner, que apoiou a empreitada, terá grandes chances de conseguir sua reeleição sem grandes resistências. Mas, se perder, será um sinal importante para o fortalecimento da oposição, e o quadro atual de favoritismo absoluto [de Kirchner], pode se reverter", avalia o ex-embaixador da Argentina no Brasil, Jorge Hugo Herrera Vegas.

Isso porque, segundo disse o cientista político Rosendo Fraga ao jornal "La Nación", "o presidente foi quem nacionalizou a eleição ao viajar semanas atrás a Misiones para apoiar Rovira". Kirchner deu apoio de todas as formas: com dinheiro, aparato estatal, obras, presença em comícios e declarações.

A oposição, que a nível nacional não tem empolgado - Kirchner mantém 60% de aprovação nas pesquisas - está forte e se faz ouvir em Misiones. Seu maior expoente, o bispo de Porto Iguaçu, Joaquín Piña, da Frente Unidos pela Dignidade (FUD), está conquistando apoios importantes das centrais sindicais CGT e CTA, do partido União Cívica Radical (UCR), dos socialistas e de parte do Partido Justicialista (de Kirchner). Só na última semana, obteve apoio público do candidato a presidente Roberto Lavagna (ex-ministro da economia de Eduardo Duhalde e Kirchner), do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, e do empresário Juan Carlos Blumberg, que se transformou em ícone da luta contra a violência urbana depois que teve seu filho assassinado em 2004.

Piña, de 76 anos, pediu aposentadoria ao Vaticano para concorrer a deputado. A Igreja aceitou e, no mês passado, substituiu-o. Mas em seguida divulgou nota oficial dizendo que seus sacerdotes não deveriam participar da política, que deveria ficar para os laicos. Embora o Vaticano tenha se distanciado de Piña com esta nota, o bispo de Porto Iguaçu sempre teve o apoio - antes público, agora velado - do arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio e de outras autoridades da Igreja Católica argentina.

O apoio de Bergoglio irritou Kirchner, que criticou duramente a igreja em pronunciamento público em setembro, respondendo à interferência religiosa na campanha de Rovira com ataques à atuação da igreja na ditadura militar.

A disputa é acirrada. Pesquisas divulgadas pelo jornal "Clarín", mostram resultados díspares. Uma delas, da Ricardo Rouvier y Asociados, dá 58,5% de apoio a Rovira contra 45,5% à FUD. Mas a mesma pesquisa mostra que 54% desaprovam a reeleição indefinida. Já uma pesquisa da empresa Opinión Autenticada dá 63% contrários à proposta de Rovira.

O elevado apoio a Rovira, independentemente da proposta em votação, se deve à campanha carregada do clientelismo típico dos "coronéis". Com apoio do governo federal, Rovira distribui de tudo para a população, de casas populares a comida e colchões. Esta semana, deu empréstimos de 1.000 pesos, com três meses de carência, parcelados em 12 mensais de 83 pesos (996 pesos no total). Uma imensa fila de mulheres pobres se formou na porta de um órgão público em Posadas, capital de Misiones, para receber o dinheiro. Junto com o cheque, vinha um panfleto do Frente Renovador de la Concordia, que apóia a reeleição.

Se a reeleição indefinida for aprovada, não será a única. As províncias de La Rioja, Catamarca, San Luis e Formosa também aprovaram o modelo de sucessão, além da própria Santa Cruz, terra natal de Kirchner, que governou 12 anos seguidos graças à mudança aprovada em sua primeira gestão.

"O resultado é incerto, mas uma derrota do projeto de reforma da constituição de Misiones, no caso de a oposição ser mais votada que o governo, significaria não apenas um alento a outras oposições provinciais, mas também a demonstração de que Kirchner não é invencível", comentou Gustavo Adolfo Druetta, um dos principais assessores políticos de Lavagna.

Misiones é a segunda menor entre as 23 províncias argentinas depois de Tucumán e fica na tríplice fronteira com Brasil e Paraguai. Sua principal fonte de renda é o turismo nas cataratas do Iguaçu. E além das cataratas, Misiones divide parte de sua história com o Brasil. Foi alvo de disputa até o século XIX entre Portugal e Espanha, até que Portugal perdeu as províncias do Prata para a Espanha. Passou ao domínio da Argentina depois da Guerra do Paraguai (1865) e de um tratado entre Brasil e Argentina mediado pelos EUA em 1895.