Título: Bolsa Família sobreviveu ao processo eleitoral
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2006, Opinião, p. A18

A política social talvez tenha sido a grande sobrevivente desse processo eleitoral. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva capitaliza a enorme extensão que ganharam as políticas de transferência de renda em seu governo; o candidato tucano, Geraldo Alckmin, reclama para o PSDB parte do mérito, o de ter se iniciado, no governo FHC, essas políticas federais. Independentemente da disputa pela paternidade, no entanto, o fato é que o Bolsa Família, carro-chefe da política social do atual governo, consolidou-se como política pública. Nenhum dos candidatos se propõe a acabar com o programa, exceto numa gloriosa hipótese de o Brasil, um dia, não ter mais cidadãos tão pobres. O programa de governo dos dois candidatos já vão além do que está feito, mirando as chamadas "portas de saída": políticas públicas para inserção desse contingente na economia pelo trabalho.

É indiscutível que a economia é um grande complicador desse segundo passo. O candidato tucano está certo, quando coloca no mesmo nível de importância dos programas sociais o crescimento da economia. O PT, no entanto, também está certo quando define a transferência de renda como um direito e como política pública capaz de promover distribuição de renda. Aliás, em setembro foi aprovada no Congresso, com pouca divulgação, a Lei Orgânica da Segurança Alimentar (Losan), que consolida a concepção de uma renda mínima como um direito do cidadão. A lei tem como mérito colocar na agenda do país, acima da coloração partidária dos ocupantes do poder, a política social como conquista, não como uma concessão deste ou daquele governante.

O impacto dos programas de transferência de renda sobre a pobreza é visível. Na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, foi apresentado um estudo que mostra que, apenas no primeiro ano de política de transferência, ainda no governo de Fernando Henrique, em 2001, o número de indigentes com renda mensal menor de um quarto do salário mínimo diminuiu de 14,3% para 11,3%, e a camada dos que recebiam até meio salário mínimo por mês caiu de 33% para 30,1%. Segundo os pesquisadores do Ipea, se os atuais programas sociais (Bolsa Família, Previdência Social e Benefício de Prestação Continuada) fossem extintos, o número de indigentes dobraria dos atuais 11% da população para 22,6%; e a população mais pobre aumentaria de 30,1% para 41,7% ( Valor, 26/10).

A pesquisa do Ipea, no entanto, mostra o efeito perverso da economia sobre a camada mais pobre da população: entre os que recebem o benefício, 70% têm trabalho; destes, apenas 15% têm carteira assinada. Os demais se ocupam em trabalhos precários e de baixa remuneração.

Esse perfil do beneficiário do Bolsa Família é condizente com as observações feitas pelo pesquisador Marcelo Neri, do Centro de Polícias Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Segundo Neri, cada real gasto em transferência de renda reduz a pobreza duas vezes mais do que cada real gasto pelo governo com o aumento do salário mínimo. É de se supor que as classes mais pobres, que vivem do trabalho precário, não são protegidas pelo piso salarial ("2007 será o 2º tempo do Bolsa Família", Valor, 26/10).

As políticas de distribuição de renda tiveram um grande, e importante, efeito colateral, de expor a pobreza que existe no país. O Bolsa Família colocou a nu o enorme contingente de brasileiros que vive abaixo da linha da pobreza. O desafio agora é tirar os hoje beneficiados pelo programa de sua órbita, pela incorporação deles à sociedade de consumo pelo trabalho. Os dois candidatos parecem preocupados com isso. A integração do Bolsa Família com programas de outros ministérios, que está sendo articulada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), pode ser um caminho. Hoje, beneficiários do programa de transferência de renda têm acesso mais fácil ao Pronaf, por exemplo, ou ao programa Luz para Todos. É importante, porém, uma maior articulação com o Ministério das Cidades - para eliminar bolsões de pobreza é preciso um programa consistente de saneamento básico. E é recomendável o uso da rede de serviços públicos hoje universalizados, de educação e saúde, para produzir informações que permitam ações de intervenção apropriadas a cada nicho de pobreza. O sistema de informação do MDS está sendo construído e é fundamental para a focalização de políticas.