Título: O quadro é sombrio nas salas de aula
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2006, Especial, p. A20

"Nos pegano o onibai i a caroca i sigino in frete". A frase intransponível ("Nós pegamos o ônibus e a carroça e seguimos em frente") é trecho de uma redação feita em março por Francisco, estudante da Escola Estadual Embaixador Bilac Pinto, em Aracaju. Ele não conseguia, aos 13 anos, superar a 2ª série. Francisco é nome fictício; o exercício, não. Esta variante do português é constantemente replicada nas 180 mil escolas do país, às voltas com um pelotão de reprovados por ano e que podem completar a 4ª série sem saber ler nem as horas de relógio com ponteiro. Mas Francisco, em setembro, só engoliu um s em outra tarefa escolar: "Quando eu entrei nese programa eu não sabia ler direito e pensei 'eu não vou passar este ano'". Ele será aprovado, talvez até salte uma etapa. "Progrediu bem", diz a professora Verilene Carvalho Araújo. "No ano que vem irá para a terceira, talvez passe até para a 4ª série."

O resgate de Francisco, com sua performance tão irregular quanto surpreendente, é um retrato do que ocorre nas salas de aula do país. A educação brasileira é assim, uma montanha-russa. Tem 98% das crianças de 7 a 14 anos na escola, o que não é pouco esforço, e insere o país entre os desenvolvidos no quesito acesso à educação. Mas aí vem o tombo: 9,8% dos brasileiros com mais de dez anos, diz o IBGE, são analfabetos. Eram 8 milhões de pessoas em 2005 - o que significa que a população de analfabetos do Brasil é maior do que toda a população da Suíça. Em outro cume de subida do panorama do ensino brasileiro estão pessoas como as que vivem em Tarumã, no interior de São Paulo, e que poderão fazer, em 2007, um curso de ponta ministrado pela Universidade Federal de São Carlos. Vão virar tecnólogos sucroalcooleiros, profissão de prestígio na onda energética contemporânea, estudando à distância, pela Universidade Aberta do Brasil.

Enquanto se implanta o projeto de vanguarda da atual gestão do MEC - e que prevê, junto com municípios e Estados a construção de 298 pólos de ensino à distância em pontos remotos do país -, uma multidão de estudantes estará repetindo alguma série do ensino fundamental ou médio. O Brasil tem a segunda maior taxa de repetência do mundo, só perde para Moçambique. Em 2004, era de 21,1% no ensino fundamental e 22,5% no médio, uma barbaridade comparada aos índices mundiais que oscilam entre 2% e 3%. "Isto custa R$ 6,4 bilhões por ano aos cofres públicos", calcula Viviane Senna, presidente do Instituto Ayrton Senna e que há dez anos desenvolve programas para melhorar o sombrio panorama da educação no Brasil. "A criança repete, o Estado paga de novo, é um dinheiro que não melhora nada de nada. É um ralo."

Foi este horizonte que a deixou assombrada há dez anos, quando observou que são 11 milhões as crianças que estacionam e repetem as séries escolares e ficam defasadas em pelo menos dois anos. "Destas, 40%, além de defasadas, são analfabetas", registra. O instituto desenhou dois programas, o Se Liga, para alfabetizar, e o Acelera Brasil, para "acelerar" os alunos "defasados". "Introduzimos uma lógica empresarial no sistema público, passamos a trabalhar por metas, focamos resultados", conta. Os programas viraram políticas públicas em 511 cidades de Goiás, Tocantins, Paraíba, Pernambuco e Sergipe. Por eles passaram (e aprenderam) mais de um milhão de crianças - Francisco, o menino de Aracaju, é um deles.

O diagnóstico da educação brasileira não produz muita divergência entre governo e oposição, especialistas e observadores. É um problemão, concordam todos. Os maiores buracos do queijo suíço são a baixa qualidade do ensino, com seus flancos pedagógico e institucional, e o fluxo ruim, com muita gente repetindo e congestionando o sistema. "Reprovação em massa é um mecanismo de exclusão social", diz Creso Franco, professor associado do departamento de Educação da PUC-Rio. "As pessoas de boa fé acham que se reprovar mais, melhora a educação. Mas não é assim."

A discussão entre qualidade e fluxo lembra a do ovo e da galinha, mas as formas de melhorar a educação básica é que provocam polêmica. "A gente sabe mais o que não funciona do que o que funciona", reconhece Naércio Aquino M. Filho, economista com doutorado pela Universidade de Londres, que trabalha na Universidade de São Paulo e no Ibmec, e estuda o tema.

Nestas pesquisas ele levantou que só 10% dos brasileiros da geração de 1980 fizeram curso superior e que apenas a metade desta turma chegou ao ensino médio. Era bem pior antes. "O gargalo é a qualidade", diz ele, lembrando os dados da última edição do PISA, uma avaliação internacional do ensino com 41 países em que o Brasil está entre os lanterninhas - atrás da Tunísia, da Indonésia, do México, do Uruguai e da Turquia, só para citar alguns países. "Temos um problema de gestão de recursos, de como gastar bem."

É a mesma análise do economista Samuel de Abreu Pessoa, um estudioso de economia da Educação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. "O Brasil não é um país africano que não gasta nada com aluno", diz ele. "Gasta bastante e tem espaço para gastar mais. Mas o nosso problema não é gastar pouco ou muito, nosso problema é na gestão da escola." Segundo Pessoa, a estrutura organizacional da escola pública é "disfuncional". A crítica é o contrato de trabalho da escola com o corpo docente e que permite aos professores faltar dez dias por ano sem justificativa (como em São Paulo), não promove por mérito, não permite ao diretor demitir quem não dá resultados. "O contrato de trabalho que a rede pública tem com os professores é irracional", diz Pessoa. "Acho que avançaremos pouco na melhora da qualidade da educação brasileira se não pensarmos em uma estratégia de incentivos na escola."

-------------------------------------------------------------------------------- Reprovação em massa como a que existe no Brasil é um mecanismo de exclusão social" --------------------------------------------------------------------------------

Neste momento, a preocupação do governo com o tema é mais premente: trata-se de assegurar o fluxo de recursos. É que o Fundef, o fundo que garante verbas ao ensino fundamental criado há dez anos na gestão Fernando Henrique, tem prazo de validade e expira em dezembro. A alternativa petista é o Fundeb, um mecanismo mais ambicioso e que contemplará desde a creche até o ensino médio. É preciso apressar os trâmites da proposta de emenda constitucional que regulamenta o Fundeb e que já andou pela Câmara, foi ao Senado e agora voltou à Câmara. "Com o Fundeb, o aporte de recursos da União será dez vezes superior ao que ocorre agora, com o Funcef", diz o ministro da educação Fernando Haddad. Isto significa saltar de uma média anual de R$ 500 milhões para R$ 5 bilhões em quatro anos.

O financiamento adequado é só uma das pontas do tripé com o qual Haddad imagina melhorar a educação no país. Outro pilar é a nova metodologia de avaliação da rede pública, que expandiu e reformulou a criada na gestão anterior. A Prova Brasil, por exemplo, é um diagnóstico do sistema por escola. Fica transparente à comunidade, aos professores e aos pais dos alunos o desempenho de cada instituição - só o Estado de São Paulo furou o esquema e ali a consulta só dá acesso aos resultados das escolas municipais. "Agora vamos identificar as boas práticas disseminadas pelo sistema e estudar em que medida podem ser repetidas", diz o ministro.

A última coluna do tripé, na logística de Haddad, é a formação de professores. Neste ponto, o contexto brasileiro é, mais uma vez, soturno. Calcula-se que 200 mil professores da rede pública não têm título superior. Outros 200 mil têm título acadêmico, mas não na área em que atuam. "Aqui estamos introduzindo um novo conceito", diz o ministro, "da educação superior estabelecendo uma conexão com a qualidade da educação básica". Traduzindo: a estratégia do governo federal é utilizar o projeto da Universidade Aberta para treinar o corpo docente da rede pública. Este ano funcionou um projeto-piloto, para testar o sistema, com um curso de administração para 10 mil alunos. A idéia é que, no futuro, três quartos dos cursos oferecidos sejam de formação de professores, explica Ronaldo Mota, secretário-executivo de Educação à distância. Os centros contemplam lugares remotos. "É um jeito de enfrentar a desigualdade regional e social", diz Mota.

O projeto ganha aplausos até do senador Cristovam Buarque, o primeiro titular do Ministério na gestão Lula e candidato do PDT à Presidência da República. "Ter medo disso é o mesmo que ter sido contra o quadro-negro", diz ele. Durante a campanha eleitoral, Buarque colocou a educação sob os holofotes. Divulgou o quanto pôde seu projeto de federalização do ensino. Na sua concepção, é preciso estabelecer padrões nacionais em três áreas - criar um salário-mínimo e um sistema de formação voltado aos professores ("A Santíssima Trindade do magistério é o professor bem remunerado, bem informado e bem motivado", diz), ter escolas do mesmo jeito e com os mesmos equipamentos em todo o território nacional e ter um padrão nacional de conteúdo pedagógico. "O Brasil tem 180 mil escolas, mas 70% são falsas. Os alunos vão ali para comer a merenda, não para estudar. A idéia é transformá-las em escolas de verdade", diz. Nesta metamorfose seriam necessários R$ 7 bilhões - ou o equivalente a 1% do PIB - para começar. Em quatro anos teriam que ser aportados R$ 20 bilhões - "mas até lá o PIB já cresceu", diz, otimista. "Leva 15 anos para o Brasil chegar ao nível da educação na Argentina", avisa. "Educação é um processo lento."

O total de gastos da União na educação básica previsto para este ano é de R$ 11,3 bilhões. Há uma tendência de crescimento em relação aos R$ 9,5 bilhões de 2005 e R$ 7,9 bilhões de 2004. "É preciso gastar mais na educação brasileira, mas tem que gastar bem", diz o deputado federal Paulo Renato Souza, ex-ministro da educação na gestão FHC, quando se criou o Fundef. Agora, ele lança farpas em relação ao Fundeb. A divergência dos tucanos é quanto à estrutura do fundo. "Seria melhor ter três fundos, um para educação infantil, um para o ensino fundamental e outro para o médio", diz ele. "Do jeito que está vai ser uma confusão." Em outra questão, menos específica e mais pragmática, ele defende a expansão do ensino técnico, "uma área sempre atrofiada no ensino brasileiro."

"O Brasil não tem cultura de escolas técnicas", diz Maria Helena Guimarães Castro, secretária de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo e responsável pelo programa de governo do PSDB no tema educação. "Temos que acabar com o modelo único de ensino superior", diz ela. "O Brasil virou um país de bacharéis", diz outro ex-ministro da Educação e atual secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, José Goldenberg. "Com as escolas técnicas, se diminui a pressão sobre a Universidade", continua Goldenberg.

Na cartilha de governo do PSDB, o exemplo bem-sucedido do programa Escola da Família, de São Paulo, ganharia projeção nacional caso Geraldo Alckmin ganhasse o segundo turno das eleições. A idéia é abrir as escolas estaduais nos finais de semana para programas comunitários. Os monitores da inciativa são jovens universitários que estudam com bolsa. O projeto, que existe em 5.500 escolas no Estado, premia 60 mil jovens. É assim que Priscila da Silva Lima, 22 anos, consegue cursar Biologia na PUC de Sorocaba. Sem condições de arcar com as despesas da faculdade, ela se inscreveu logo que passou no vestibular. Percorreu o périplo burocrático e, depois de ter sido contemplada com uma bolsa integral, passou a dar cursos e palestras numa escola de periferia todos os finais de semana. Ela ensina pintura em tecido, dá curso de manicure e até de confecção de bijuterias. "A minha função é desenvolver projetos sociais em troca da bolsa", conta. "Eu acho muito legal. A gente percebe que faz diferença no contato com as pessoas que estão frequentando a escola."

Um dos maiores trunfos da gestão petista na educação brasileira também é um programa de acesso ao ensino superior. O ProUni, uma idéia gestada na secretaria-executiva do Ministério desde 2004, é unânime em elogios. Esteve no discurso do presidente Lula em cada comício durante a campanha eleitoral. Pelo projeto, as instituições de ensino superior sem fins lucrativos e que gozam de isenções fiscais passaram a conceder bolsas de estudos na proporção de alunos pagantes por curso e turno. A experiência é um sucesso e seria continuada num eventual governo tucano. Contempla mais de 200 mil jovens que conseguem superar a corrida de obstáculos que são os anos de escola na rede pública e terminar o ensino médio.

O entregador de lanches Diego Rodrigues da Silva, 20 anos, que trabalha em uma lanchonete da zona oeste de São Paulo, é um destes sobreviventes. Ele mora no Jardim Aliança, em Osasco, e estuda engenharia mecatrônica na Unip, em Alphaville. A mensalidade do curso é de R$ 580 por mês. "Minha família não tem renda para pagar a universidade", diz Diego, que tirou boa nota no Enem, entregou a papelada e ganhou bolsa integral. "E na USP não tinha condições de entrar, é muito difícil", conta. Ele sonha em construir robôs. Mas por enquanto, preocupa-se em passar direto em todas as matérias para não perder o benefício.