Título: O que é isso, ex-companheiro
Autor: Borges, Robinson
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2006, EU & Fim de Semana, p. 8

Quando o líder sindical Luiz Inácio da Silva foi preso em 1980 por comandar uma greve na região do ABC, um de seus companheiros de causa operária e de cela desabafou: "A gente mal consegue fazer uma greve, quanto mais governar um país". A frase foi dita pelo ex-sindicalista José Cicote, integrante do G-7, grupo dos sete líderes do Movimento pró-PT, que inclui Olívio Dutra, Jacó Bittar, Paulo Skromov, Wagner Benevides, Henos Amorina e o próprio Lula - na época o apelido não havia sido incorporado ao nome.

"Memórias do cárcere" como essas remetem a sentimentos ambíguos nos criadores do PT, passados 26 anos da fundação do Partido dos Trabalhadores - que surgiu "da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país e transformá-la", segundo sua carta de princípios. De um lado, seus criadores sentem um gosto de vitória pela capacidade de Lula de superar as adversidades iniciais e de estar às portas de um segundo mandato. De outro, um dissabor de assistir, em vez da transformação na política, a transformações no partido, pela política, para viabilizar o desejo aparentemente inatingível de "governar um país".

"A tese da criação do PT é minha. A idéia era fundar um partido para ser diferente dos demais, uma legenda dos trabalhadores para os trabalhadores. Mas a chegada ao poder foi uma decepção, um verdadeiro golpe", afirma Cicote, que traz em seu currículo o cargo de vice-prefeito de Santo André na primeira gestão de Celso Daniel (1989-1992). "Todos os partidos poderiam errar, menos o PT. Não digo que Lula errou, mas todas as denúncias têm de ser investigadas."

Apesar de tudo

O cenário desapontador, porém, não afastou o ex-sindicalista de 68 anos das campanhas. Na segunda-feira, Cicote percorreu fábricas do ABC em busca de votos para Lula. Mas o contato com os operários revelou-lhe que a conjuntura é bem diferente, também na base partidária. "Ela está muito fragmentada. Os movimentos sociais e a militância estão desarticulados", comenta Cicote, que trocou o PT pelo PSB logo após deixar a Prefeitura de Santo André por desavenças com a direção local do partido.

Fundação Preseu Abramo Entrega do registro provisório do PT no TSE, em Brasília, em dezembro de 1980: "Não acredito no fim do PT, mesmo com a desfiguração pelas alianças equivocadas", diz Wagner Benevides "Sou filiado ao PSB, mas sou e serei petista para sempre", afirma. "Não acredito no fim do PT, mesmo com a desfiguração promovida pelas alianças equivocadas e pelo descolamento de Lula do partido."

A transformação do PT pela política culminou no esvaziamento da legenda por causa da sucessão de escândalos e numa perda grande da identidade, de acordo com outro ex-sindicalista, o ex-deputado federal Benedito Marcílio. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, na época da criação do PT, Marcílio, 69 anos, diz que a metamorfose de seu ex-partido foi promovida por amplas alianças com legendas sem afinidades programáticas, apenas para garantir a governabilidade. O efeito colateral teria sido o distanciamento de alguns pilares, como a ética na política, a defesa dos trabalhadores e no desamparo a camadas menos favorecidas, como os aposentados.

"O Partido dos Trabalhadores me dá tristeza. O Partido dos Trabalhadores deixou de ser o partido dos trabalhadores", lamenta Marcílio, que desencantou-se há mais de duas décadas com a agremiação que ajudou a fundar e da qual se desligou pouco depois por identificar, na época, uma relação complicada com os recursos, "que foi se acentuando com o ganho de poder". "Faço uma analogia ideológica entre a prática do mensalão e a cobrança dos 30% dos vencimentos dos políticos para o fundo partidário. O PT sempre quis fortalecer sua estrutura financeira."

Mas, mesmo de longe, Marcílio continuava compartilhando de alguns objetivos-comuns do "amigo" Lula até sua chegada ao Planalto. Há tempos sem conversar com o presidente, diz que caso tivesse a oportunidade de dialogar com seu ex-companheiro, faria o seguinte comentário: "Sinto muito pelo que fez nesses quatro anos de governo, em que privilegiou os banqueiros, os ruralistas, as multinacionais e nem falou de reforma agrária".

Burocracia petista

Para Wagner Benevides, 68 anos, dirigente sindical de Minas Gerais na época do G-7, a explicação para o comprometimento da identidade da sigla no primeiro mandato de Lula tem como fundo as dificuldades imprevistas pelos formuladores do PT na primeira infância do partido. Isto é, a tal necessidade de fazer amplas alianças, estratégia que deve ser amplificada num eventual segundo mandato com a aproximação do próximo governo do PMDB na busca de coalizão. "Era uma visão estreita achar que poderíamos governar sozinhos", afirma. "Governar uma prefeitura ou um Estado é completamente diferente de governar um país. É natural que se façam alianças mais complexas."

Para ele, não era possível permanecer focado apenas nas forças iniciais, como o novo sindicalismo pragmático do ABC Paulista, a Igreja progressista, além de lideranças democráticas e militantes marxistas independentes e outras correntes de esquerda não-stalinistas, muitas das quais pertencentes à chamada 4ª Internacional Socialista, que abrigava diversos movimentos trotskistas do mundo. "O leque tinha de ser ampliado mesmo. Era inevitável."

Divulgação Lula no Maranhão: Skromov espera um eventual segundo governo com mecanismos de distribuição de renda, foco na produção e programas de renda mínima O grande nó da gestão petista, segundo Benevides, estaria menos nas alianças para garantir a governabilidade que na burocracia que se consolidou com a drenagem "dos melhores quadros do partido" pelo governo. O fato deixou o comando da sigla nas mãos de "substitutos menos preparados", diz numa clara referência a Silvio Pereira e Delúbio Soares, acusados de envolvimento no escândalo do mensalão.

"O PT tinha cabeça, tronco e membros, mas na cabeça não tinha juízo para fazer essa seletividade dos quadros", diz Benevides. Sua crítica tem um endereço certo: José Genoino, ex-presidente do PT, afastado depois dos escândalos no ano passado. O problema, segundo ele, antecede os escândalos e se deu com a complacência do presidente do PT na ocasião da disputa pela Presidência da Câmara, quando o partido teve dois candidatos, Luiz Eduardo Greenhalgh e Virgílio Guimarães. O resultado foi a vitória de Severino Cavalcanti (PP).

"O Genoino foi 'ingenoíno'. Deveria ter expulso o Virgílio Guimarães imediatamente, pois o indicado do partido era o Greenhalgh. Essa condescendência fez com que o PT se enfraquecesse e a oposição ganhasse força", avalia. A quebra da hierarquia partidária é inaceitável para Benevides, que considera emblemáticas as expulsões dos deputados federais Airton Soares e Bete Mendes do PT, quando ambos decidiram votar nas eleições indiretas para presidente em 1984. Contrariando a decisão da legenda, os dois votaram em Tancredo Neves. "Não se trata de stalinismo, não. Mas um partido precisa manter a disciplina. O Genoino não foi capaz de fazer isso. O Virgílio Guimarães provocou uma fratura exposta no PT", explica.

Mais perto da base

-------------------------------------------------------------------------------- "Sinto muito pelo que fez nesses anos, em que privilegiou banqueiros, ruralistas e nem falou de reforma agrária", diria Marcílio a Lula --------------------------------------------------------------------------------

José Genoino, 60 anos, fundador do PT, mas não integrante do G-7, faz sua mea-culpa. "Gostaria de ter ficado 20% do meu tempo em Brasília e 80% com a base e os diretórios do partido", afirma. Sua proposta como deputado federal eleito no dia 1º é justamente aproximar o partido da base social, pois, em sua análise, foram os movimentos sociais que deram suporte ao Partido dos Trabalhadores nos piores momentos da legenda.

"A base não abandonou o PT. Mas tem uma turma que vive na sombra do partido pelo fato de ter participado de sua fundação", comenta o deputado federal. "Não é possível apagar uma história de 26 anos. Os nossos erros não podem anular uma história."

A votação nas eleições parlamentares deste ano, com praticamente o mesmo número de eleitos em 2002 pelo PT, e o favoritismo de Lula no pleito deste domingo, são indicadores consistentes da força petista para se reestruturar, segundo Genoino. "O PT não é uma quadrilha. Cometeu erros políticos."

O ex-presidente do partido também é crítico sobre a análise de que Lula, para se reeleger, teria se descolado do Partido dos Trabalhadores, manchado pelas denúncias de corrupção. "Isso é uma invenção dos analistas-torcedores. Você sabe que há uma categoria de analistas políticos que são torcedores?"

Para ele, o presidente Lula é muito maior do que o seu partido, portanto, considera natural a declaração feita pelo presidente-candidato, em agosto, durante a campanha: "Eu não sou candidato apenas do PT, sou candidato que tem apoio de muitos, do PT, do PCdoB, do PSB, que embora não esteja coligado apóia nacionalmente, tem apoio do PMDB, de setores do PSDB, não posso fazer uma campanha eminentemente petista", afirmou Lula.

"O PT é parte e não o todo. Por isso, o PT tem de deixar o governo fazer o seu trabalho: governar", justifica Genoino. "Lula é a expressão máxima do país. Só que não tem essa história de que ele é maior do que o PT", rebate Benevides. Numa espécie de tréplica, José Genoino argumenta: "O Lula não tem de se preocupar com o PT. Um dos erros do PT foi ter ocupado ministérios demais no primeiro mandato do Lula. Agora o partido tem de se reestruturar".

Desmobilização social

Na visão de Paulo Skromov, 69 anos, presidente do Sindicato dos Coureiros na ocasião da formulação do PT, conhecer a história do partido é mesmo fundamental para se proceder à reestruturação defendida por Genoino e exigida por boa parcela da militância. Seria preciso saber de onde o partido saiu para saber aonde quer chegar. Para ele, Lula foi conduzido ao Palácio do Planalto no momento de maior desmobilização social da história do partido e do país, o que fez com que o primeiro mandato do PT fosse de transição e não de transformação, como esperavam os criadores da legenda em seu manifesto de criação.

"O PT mudou o perfil ideológico ao longo dos anos. Nasceu e se desenvolveu até 1995 pressionado pelos movimentos sociais. Mas há mais de dez anos o partido faz política numa situação sui-generis para uma sigla de esquerda, sem mobilização da sociedade. A militância está cada vez menos vigorosa", afirma.

Caso Lula tivesse sido eleito em 1989, na primeira eleição democrática para a Presidência depois do regime militar - quando foi derrotado por Fernando Collor -, as condições de um governo nitidamente de esquerda seriam mais favoráveis à mudanças, avalia Skromov. "Naquele momento, havia uma adesão popular por causa do eco das greves e da organização da sociedade. Não haviam ocorrido as privatizações e o partido ainda estava próximo de suas origens, o novo sindicalismo", afirma.

A lacuna histórica teria feito com que Lula fosse mais conservador e reformista ao chegar ao governo, mantendo "no essencial a política macroeconômica dos governos anteriores, mas promovendo a distribuição de renda." Num eventual segundo mandato, Skromov espera um governo com mecanismos de distribuição de renda ainda mais fortalecidos, com um foco na produção e com programas de renda mínima. "Nós, operários, temos o compromisso com a produção. Temos de batalhar por isso", lembra Wagner Benevides.

O futuro do partido

O senador Eduardo Matarazzo Suplicy, 65 anos, outro fundador do partido, concorda com o peso histórico do PT. Avalia que houve um certo desencanto da militância, mas que muitas pessoas decidiram votar no partido "em que pese toda a problemática". Os filiados ouvidos pelo senador têm solicitado a ele, porém, uma renovação na direção partidária "para que o tipo de procedimento que ocorreu nos últimos quatro anos não se repita. É preciso que a direção esteja comprometida com a luta contra a prática que tanto comprometeu o partido", afirma.

Defensor da reforma política, Suplicy avalia que ela deve ser realizada o quanto antes, privilegiando os problemas relacionados ao financiamento público de campanha e a fidelidade partidária. Além disso, ele propõe eleições diretas para os suplentes a senadores. "Deveríamos ter apenas pessoas eleitas no Senado Federal. Hoje, quando o eleitor escolhe o senador, não sabe quem são os suplentes. Temos muitos suplentes no Senado", afirma.

Genoino, que pretende se distanciar dos holofotes e de cargos no partido na nova legislatura, tem como objetivo a criação de um instrumento de diálogo permanente com os filiados, deixando de lado o uso dos meios de comunicação de massa; o investimento na formação dos novos petistas, e a democratização da estrutura partidária para que os assuntos financeiros sejam decididos coletivamente. "O PT cresceu ao longo desses 26 anos. Temos de aumentar os mecanismos de controle na mesma proporção", conclui Genoino.