Título: Governo planeja política fiscal para 10 anos
Autor: Safatle, Claudia
Fonte: Valor Econômico, 30/10/2006, Política, p. A9

O governo pretende fazer importantes mudanças na política fiscal a partir de 2007, para conter a expansão do gasto público, inclusive nas áreas sociais, e discute, também, a possibilidade de substituir as metas de superávit primário por metas de saldo em conta corrente, conceito que exclui todos os investimentos públicos do cálculo das despesas.

Em estágio avançado de elaboração, mas ainda em processo de construção de consenso dentro do governo, o novo programa fiscal deve ser gradual, com implementação para os próximos dez anos, centrado não na redução dos gastos em termos reais, mas na sua diminuição como proporção do Produto Interno Bruto (PIB); no aumento dos investimentos em infra-estrutura - de imediato o governo deve elevar de 0,2% do PIB para 0,5% do PIB as aplicações nos PPI (projetos-piloto de investimentos); e numa reforma tributária que desonere as exportações e os investimentos privados.

Uma das medidas será a alteração na emenda constitucional nº 29, que indexou os gastos em saúde à variação do PIB nominal do ano anterior. Os técnicos da área econômica sugerem que os gastos em saúde, assim como em educação, passem a ser corrigidos pela variação do IPCA adicionada ao crescimento populacional mais uma meta de aumento das despesas per capita ao longo do tempo. Como medidas dessa natureza demandam mudanças na Constituição, seriam discutidas em 2007 para vigorar em 2008, assim como a prorrogação da CPMF e da Desvinculação de Receitas da União (DRU), cuja vigência acaba em dezembro de 2007. No caso da CPMF, discute-se a sua prorrogação com alíquotas decrescentes dos atuais 0,38% para até 0,08%. Já em relação à DRU, a idéia é aprofundar a desvinculação de receitas orçamentárias, dos atuais 20% para até 35% sobre o total de impostos.

O programa fiscal pressupõe que a economia estará em melhor performance do que agora, pois ajustes nas contas públicas feitas em períodos de crescimento econômico são menos dolorosos dos que os implementados em períodos de crescimento moderado ou recessão.

O cenário macroeconômico concebido pela equipe técnica que alinhava o novo plano fiscal indica que a taxa de juros básica (Selic) estará, por volta de março a abril, em torno de 12% nominais. Para uma meta de inflação de 4,5%, isso representaria juros reais na casa dos 7% ao ano. Com essa taxa, acredita-se ser possível o país crescer 5% em 2007, no que será ajudado por uma forte expansão da construção civil. Assim, 2007 se configuraria como uma repetição do que ocorreu em 2004, quando os juros entraram em trajetória de queda e a economia cresceu 4,9%. O grande desafio não será aumentar a taxa de crescimento do nível de atividade no próximo ano, mas manter esse mesmo nível a partir de 2008. Se consagrado esse panorama, a relação dívida líquida do setor público/PIB poderia cair já no ano que vem dos atuais 50,1% para a casa dos 46%, com queda de uns quatro pontos percentuais.

Com taxas de crescimento mais altas, será possível reduzir em 0,1 a 0,2 ponto percentual o gasto corrente como proporção do PIB, a cada ano, sem que as políticas sociais sejam penalizadas por escassez de recursos, conforme tem salientado o ministro da Fazenda, Guido Mantega. A política salarial do funcionalismo público seria de mera recomposição da inflação, pelo menos nos dois primeiros anos do segundo mandato de Lula; assim como o salto real do salário mínimo, dado no primeiro mandato, não se repetiria no próximo.

-------------------------------------------------------------------------------- Mudanças em educação e saúde, que exigem alteração constitucional, seriam implementadas apenas a partir de 2008 --------------------------------------------------------------------------------

É com maior crescimento econômico - "a obsessão do segundo mandato", segundo definição da ministra chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff - que o novo governo pretende também fazer uma reforma tributária seletiva - reduzindo impostos cobrados sobre investimentos e sobre produção de bens exportáveis - simultaneamente ao controle do gasto. O grupo técnico encarregado de propor tal reforma já listou o que cada um dos impostos representa de receitas e os impactos das renúncias de arrecadação produzidas por rebaixamento de alíquotas e ampliação dos limites dos incentivos. Um primeiro esboço da proposta de reforma tributária seletiva deve ser apresentado pelo governo ainda este ano.

Não consta dos planos de Lula, pelo menos por enquanto, impor uma profunda reforma da Previdência Social nem desindexar os benefícios da seguridade da variação do salário mínimo. O que os técnicos admitem é começar uma discussão mais ampla com a sociedade sobre a possibilidade de se aumentar de forma bastante gradual a idade mínima para requerer aposentadoria, algo a ser implementado ao longo de dez anos ou mais. Simultaneamente a essa questão, o governo se empenharia na reforma do mercado de trabalho para aumentar o emprego formal e, com isso, as contribuições à seguridade social. Há, porém, dúvidas relevantes quanto à possibilidade de se avançar na desoneração da folha salarial dos tributos que encarecem o emprego formal. Não está claro que uma troca da base de tributos da folha para o faturamento seja factível.

Para aumentar os investimentos já em 2008 as PPI que hoje podem chegar a 0,2% do PIB, cresceriam para 0,5% do PIB, percentual que seria previsto na proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2008, que é enviada ao Congresso nacional em abril . Esses investimentos não são considerados despesas para efeito do cálculo das contas públicas e, nesse aspecto, há no meio dos economistas oficiais uma nova discussão em curso que deve crescer em 2007: substituir a meta de superávit primário das contas consolidadas do setor público por uma meta de contas correntes.

O saldo em conta corrente seria calculado com base no total da receita corrente, abatidos os gastos correntes (custeio, transferências correntes/capital e inversões financeiras). Se superavitário, equivaleria a uma poupança. Esse conceito difere do resultado primário apenas por excluir da conta os gastos com o investimento público. Essa é uma antiga e recorrente questão. A própria existência dos projetos-piloto de investimento (PPI) foi uma conseqüência desse debate, na época numa negociação travada junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Decidiu-se, há mais de um ano, que alguns programas de infra-estrutura pré-selecionados, com retorno garantido do investimento, seriam excluídos da conta dos gastos públicos por serem cruciais para a expansão da atividade econômica e, portanto, pré-requisitos para o crescimento. O que começa a ser considerado no meio dos economistas oficiais, agora, é mais amplo e implicaria na substituição das metas primárias para metas de poupança em conta corrente do setor público.

É com esse conjunto de iniciativas na área fiscal, que levariam à eliminação do déficit nominal das contas públicas em quatro anos, que Lula pretende convencer o setor privado a aumentar os investimentos, levando o país a um ciclo de crescimento sustentado. Se for bem sucedido nessa empreitada, voltará para São Bernardo do Campo em 2010 como um "estadista", diz o deputado Delfim Netto (PMDB-SP).