Título: Vitória de Chávez
Autor: Cunha, Sérgio Sérvulo da
Fonte: Valor Econômico, 09/10/2012, Opinião, p. A17

O trânsito em Caracas é lento, precária a condução pública. As pessoas viajam apinhadas em ônibus que, em grande parte, parecem do pleistoceno.

Sobre as calçadas, não exatamente limpas (portanto como as nossas), espalham-se agora milhares de folhetos de propaganda de Henrique Capriles, candidato da oposição à presidência. Alguns deles reproduzem a cédula ("boleta" ou "tarjetón") eleitoral, pedindo ao eleitor que, ao votar em Capriles, prefira este ou aquele partido, dentre seus apoiadores.

Nesse boleto - cópia da planilha eletrônica que se pressiona no momento do voto - há 42 quadrinhos, cada um correspondente a um partido ou coligação. Desses retângulos, 12 são ocupados pela efígie de Hugo Chávez; 20 por Capriles, cinco por candidatos de partidos nanicos, e três estão em branco. O eleitor, ao mesmo tempo em que escolhe seu candidato, ajuda o partido de sua preferência a superar a barreira eleitoral, habilitando-se para os próximos pleitos.

Esse mar de propaganda oposicionista reflete a mídia impressa, onde Capriles dominou quase 70% do espaço eleitoral (algo análogo à posse de bola do Barcelona, em 2011, na vitória esmagadora contra o Santos). Em compensação, diziam os oposicionistas, foram escandalosos: a) o uso, pela candidatura Chávez, do tempo de propaganda televisiva de que desfruta o governo, e b) o uso da máquina administrativa, por parte da mesma candidatura. Isso é bem verdade. Por exemplo, na antevéspera do pleito, via-se páginas inteiras de jornal em que o banco estatal venezuelano, ou a empresa venezuelana de petróleo (PDVSA) apoiavam a reeleição do presidente.

Quem examina os números do governo Chávez observa índices positivos nos seus programas de inclusão social, que a oposição, aliás, prometeu manter. Fora daí, porém, ela deflagrou um fogo devastador contra o governo, principalmente à gestão econômica: a inflação é alta, o país se endividou; também eram pesadas as críticas quanto ao funcionamento das instituições, na medida em que sobre elas pairava a intervenção autoritária do presidente; essa influência alcançaria inclusive o Judiciário, ao qual, segundo os caprilistas, falta independência. As críticas mais agudas, constantes da mídia impressa, estavam nas colunas de articulistas estrangeiros e na imprensa internacional, notadamente americana.

O eleitorado dividiu-se radicalmente: de um lado o aficionado de Chávez, mais fácil de identificar; de outro, enrustido, o eleitor de Capriles, de quem era difícil extrair a confissão do seu voto. Nesse branco ou preto, tudo ou nada, sim ou não, permeado de desconfiança, se retratava a brutal divisão da sociedade venezuelana, imersa numa luta de classes explícita, patente no discurso chavista de confrontação com a burguesia.

Foram tensas as vésperas da eleição: divulgavam-se pesquisas favoráveis a um e outro candidato; temia-se o inconformismo do vencido. Chávez encerrou a campanha na sexta-feira, em comício monumental, atraindo a Caracas muitos eleitores do interior. Mas também foi multitudinário o último comício de Capriles, realizado em Lara.

Apenas num ponto houve consenso: os procedimentos eleitorais, e principalmente o processo eletrônico de votação, ofereciam plena segurança. Na Venezuela as urnas eleitorais, com sistemas eletrônicos de última geração, foram consideradas seguras por todos: governo, oposição, especialistas, acompanhantes internacionais); elas garantem o sigilo e a destinação do voto, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde as urnas são vulneráveis e o autor do voto não sabe para quem ele foi contado. Tampouco há, no país de Bolívar, uma justiça eleitoral semelhante à brasileira, que acumula funções normativas, executivas e judiciárias, julgando afinal o que ela própria decidiu e fez; na Venezuela as eleições são organizadas e realizadas pelo Conselho Nacional Eleitoral, um poder do Estado tão autônomo quanto o Executivo, o Legislativo e o Judiciário; em caso de impugnação, suas decisões administrativas são submetidas ao Judiciário comum.

Não obstante haja dirigido críticas ao comportamento do CNE (que não teria apreciado denúncias suas), o Comando de Campanha Oposicionista ratificou, com relação a seu trabalho, a confiança que anteriormente demonstrara: de fato, ao início da campanha, ao CNE foi entregue a condução das eleições primárias que escolheram Capriles candidato da oposição.

Com 97,6% dos votos contados, Chávez vencia com 55,1% dos votos (8,1 milhões contra 6,5 milhões), diferença que, sob o ponto de vista político, não se considera suficientemente folgada; até a posse, em janeiro, persistirá a incerteza, mesmo porque, em dezembro deste ano, haverá eleições estaduais (governadores e Assembleias). Ao fim desse novo mandato (quando completará 20 anos no poder), Chavez enfrentará, em outro cenário político-econômico, um novo reagrupamento de forças. Oxalá tenha a Venezuela, ao fim desse período, diminuído a centenária desigualdade social, desenvolvido a economia, e reforçado os laços de solidariedade entre todos os cidadãos.

Sérgio Sérvulo da Cunha é jurista, autor de textos de Direito Eleitoral; foi advogado, professor de Direito, vice-prefeito de Santos, presidente da OAB em Santos, chefe de gabinete do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Acompanhou, em Caracas, a eleição venezuelana, como uma das dezenas de personalidades convidadas, para esse fim, pelo Conselho Nacional Eleitoral daquele país.