Título: "Lula vai governar à direita de seu programa"
Autor: Agostine, Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 30/10/2006, Política, p. A18

Luiz Inácio Lula da Silva mudou de lado outra vez. Depois de dar uma guinada à direita, em 2002, para chegar ao Palácio do Planalto, a campanha deste ano desviou da rota do primeiro mandato e voltou para a esquerda. O destino era o reencontro de muitos petistas desapontados com a gestão do petista. A análise é do cientista político Gildo Marçal Brandão, da Universidade de São Paulo, para quem o cenário que se configurou nos últimos meses é uma pista falsa e não deve ganhar força no novo governo. Isso porque as feições dessa agenda foram meramente eleitoreiras. "O programa é fajuto. É um programa instrumental para as eleições. É evidente que não vai governar assim", diz Brandão.

Autor do livro "Esquerda Positiva" (Hucitec), o cientista político lembra que Lula ganhou sua primeira eleição com a publicação da "Carta ao Povo Brasileiro", uma abertura à direita, com um endereço certeiro: o empresariado brasileiro. "Mas este ano, ele ganhou esta eleição com um programa à esquerda, que relembra, em certos aspectos, o programa de 1989", diz Brandão. "Mas qual é o tipo de aliança com que vai governar?", pergunta. E responde: "O peso dos cardeais do PMDB vai ser um peso grande. Evidentemente isso não tem nada a ver com o que se diz." Leia os principais trechos da entrevista concedida ao Valor.

Valor: Quais são as perspectivas de mudanças para os próximos anos do governo Lula?

Gildo Marçal Brandão: A vitória de Lula abre chance nova para seu governo. Provavelmente ele terá um tempo de acomodação. Deve haver arrefecimento do choque político, até porque essas eleições foram acirradas em torno de falsos problemas. Lula tem possibilidade de fazer um governo com alianças mais sólidas, embora menos partidárias. Os partidos perderam o pé, tanto o PT quanto o PSDB. Hoje, mais que petismo, existe um lulismo. Não acredito que haverá grandes mudanças econômicas. Mas por alguma medida o governo terá de enfrentar a questão da retomada do crescimento. A perspectiva para o Brasil continuar com 2%, 3% de crescimento tenderá a levar a uma complicação nos programas sociais. Não dá para continuar a avançar nos gastos sociais. Não dá para aumentar os tributos. Ou o país cresce mais de 3%, 4%, ou a configuração que deu vitória a Lula vai ficar complicada.

Valor: Em 2002, Lula foi eleito com ampla maioria dos votos e, mesmo com o apoio que teve nas urnas, não pôs em pauta temas como a reforma política. Depois de tantos problemas no Congresso, como ficará a situação?

Brandão: Quando Lula assumiu o governo, não havia interesse em pôr a reforma política em pauta. O presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) também não teve interesse. Se a reforma política se puser - e está sendo posta agora -, é porque a crise do sistema político está expressa. Grande parte da crise do PT foi também do sistema político. Falo em dois problemas principais: do presidencialismo de coalizão - que não se sustenta muito mais -, e de uma crise do sistema partidário. Não temos partidos políticos no país. Os partidos não representam nada. Pela ascensão do PT ao governo, a relação entre oposição e governo levou à crise do sistema político a se tornar tão explícita quanto agora. Suponho que tenha de haver alguma mexida. Não é fácil fazer essa mexida. Veja bem, há um dado desse resultado eleitoral. Uma das mexidas importantes foi a da cláusula de barreira, mas o que essas eleições mostraram? Mostraram que os políticos e os acadêmicos vão em uma direção e o eleitorado em outra. Aumentou o número dos pequenos partidos.

Valor: Houve discordância entre esses dois níveis?

Brandão: Sim. Há um descompasso entre o que se passa no mundo político e acadêmico e o que se passa ao nível do povo, do eleitor, digamos, embaixo da sociedade. Um aspecto curioso é que Lula ganhou a eleição de 2002 com a "Carta ao Povo Brasileiro". Deu uma abertura à direita, para o empresário. Isto é, um partido de esquerda deu uma uma abertura para o centro. Mas ele ganhou esta eleição com um programa à esquerda, que relembra, em certos aspectos, o programa de 1989. É claro que não é com esse programa que vai governar. Esse programa está dizendo: "o choque eleitoral foi um choque entre um bloco de direita e um bloco de esquerda". Mas isso é falso. Inteiramente falso.

Valor: Essa eleição foi decidida à esquerda?

Brandão: Sim. Um elemento essencial para Lula ganhar a eleição foi recuperar - tanto do ponto de vista ideológico quanto político-eleitoral -, o voto de uma camada que havia votado nele em 2002, mas depois se decepcionou com o governo e rompeu com o PT. No segundo turno, entretanto, voltou atrás. O aspecto mais visível disso é o voto nos candidatos Cristovam Buarque (PDT) e Heloísa Helena (PSOL). No primeiro turno, todo mundo esperava que Lula ganhasse - e o eleitor votou contra. Forçou o segundo turno. O eleitor desconsiderou o que os intelectuais e as pesquisas estavam dizendo.

Valor: Se foi o programa da esquerda que saiu vitorioso, pode-se imaginar um retorno à esquerda?

Brandão: Como isso vai caminhar daqui para frente é difícil prever. Digamos que foi a esquerda do PT e não o grupo Articulação [tendência de esquerda do Partido dos Trabalhadores] que ganhou essa eleição. Ele vai governar com quem? Quais vão ser os ministros no segundo mandato? Raul Pont? Valter Pomar?

Valor: No segundo turno, os movimentos sociais retornaram à base de apoio ao candidato Lula. Até mesmo o MST, crítico durante todo o governo, aderiu. A pressão da base não tende a levar a uma maior para abertura do governo à esquerda?

Brandão: Sou cético diante do retorno dos movimentos sociais. Porque o resgate da campanha é um resgate fajuto. Ninguém acredita nesse programa. No segundo turno, em que Alckmin perdeu tanto, a expectativa do PSDB era de que, ao ser mais conhecido, ele teria mais votos. E aconteceu exatamente o contrário. Por quê? Porque ele não tem história. O PT conseguiu pregar no Alckmin vários pontos que ninguém sabe ao certo se ele é ou não é. E ele não é. E aí a campanha do Lula conseguiu grudar nele, por exemplo, a pecha de privatista. Como saber se ele é privatista ou não? A incompetência da turma pessedebista foi brutal nesse aspecto. A campanha de Lula, que foi antiprivatista, não falou, em nenhum momento, que ele vai (re)estatizar a Vale do Rio Doce. O programa é fajuto. É um programa instrumental para as eleições. É evidente que não vai governar assim. Qual é o tipo de aliança com que vai governar? O peso dos cardeais do PMDB vai ser um peso grande. Evidentemente isso não tem nada a ver com o que se diz.

Valor: A tendência ideológica a ser seguida vai ser a mesma do primeiro mandato? Será um governo de "mais do mesmo"?

Brandão: Não é que seja mais do mesmo. Mas há um quadro estrutural no país marcado pela hegemonia liberal, que se manifesta em torno de uma política econômica, cujos fundamentos não mudam. Eles não começaram com Lula, mas, no essencial, vão continuar iguais. A mudança se dá em outros planos. A hegemonia liberal no país é um tipo de ordenamento social, que não é uma questão de um partido. É mais profunda. O modo como a sociedade se organiza é diferente do modo como se organizava há 30 anos. Embora hajam certas oscilações. Por exemplo: do ponto de vista ideológico e político, houve uma retomada do papel ativo do Estado no governo Lula. Mas isso não modifica o fato de que existe uma hegemonia em que a política macroeconômica é controlada por áreas que não são de esquerda e que não serão.

Valor: Que impacto pode ter as mudanças propostas pela Lei dos Partidos Políticos, com a limitação imposta pela cláusula de barreira?

Brandão: De imediato, não haverá mudanças. Os dois grandes partidos, PT e PSDB, que nacionalmente polarizam, estão ultrapassados. Com a vinda do PT para o centro, o PSDB foi empurrado para a direita. Foi constrangido a disputar o voto do eleitorado conservador com o PFL - que aliás é bem mais competente do que ele. O PSDB nasceu como partido de centro-esquerda, que progressivamente foi empurrado para a direita e o centro-direita. Esse deslocamento no espectro central foi acompanhado por uma mudança interna. A velha geração que fez o PSDB, como Fernando Henrique e Tasso Jereissati, perdeu poder. Há dez anos, Alckmin não integrava esse grupo. Era um soldado menor. Houve mudança geracional também no comando do PSDB. Sobra apenas o Serra como representante do velho PSDB. O PSDB tinha quadros competentes e intelectuais, sobretudo no segundo governo FHC. Mas foram todos destroçados. Aqueles que poderiam fazer um segundo governo voltado para o crescimento foram defenestrados da luta política. A organicidade do PSDB fragmentou-se. Esse partido hoje não agrega sequer aqueles que se consideram historicamente pessedebistas.

Valor: E a situação do PT?

Brandão: A crise do PT levou a conseqüências dramáticas. Perdeu o investimento de 20 anos da ética na política. Isso ele não recupera mais. Ao longo do governo Lula, o núcleo dirigente, construído ao longo dos últimos 15 anos, também foi todo destroçado. José Genoino, José Dirceu, Aloizio Mercadante e Luiz Gushiken foram defenestrados. Quem dirige o PT? Tarso Genro, Raul Pont e mais uma liderança em ascensão. Mas o dramático, do ponto de vista sociológico, é que não se cria uma direção do dia para noite. Essa direção, que foi defenestrada com os escândalos, é produto de 15 anos.

Valor: Não há forças novas?

Brandão: Uma figura-chave não é desse núcleo. Trata-se de Dilma Roussef, ministra da Casa Civil. Ela não tem nada a ver com o núcleo histórico do PT. Veio do PDT. Um quadro de primeira linha, excelente. O ministro da Educação, Fernando Haddad, também é muito bom, petista, mas não tem vinculação orgânica e nunca foi um quadro do partido. O PT histórico não sobreviveu e não tem mais idéias novas a propor. E o terceiro grande partido é o PMDB, um condomínio para usufruto comum do poder. Não passa disso.

Valor: A esquerda não deve se estruturar em torno do PSOL?

Brandão: O PSOL, na minha opinião, acabou. Não pode ficar um ano, dois anos batendo no governo e depois apoiá-lo. Entendo a Heloísa Helena. Não tinha como apoiar Lula. Mas o partido não ultrapassou a cláusula de barreira. A eleição detonou o projeto de criar uma alternativa ao PT, que resgatasse o PT da origem. Para onde vão essas pessoas, eu não sei. O César Benjamim saiu da legenda. Existem várias esquerdas, que estavam contra Lula, que votaram em Cristovam Buarque e em Heloísa Helena. Essas pessoas não se sentem representadas. Uma parte pode até voltar para o PT, mas não será a maioria. Hoje tem uma crise de militância, embora, nesse momento, haja uma retomada da campanha. Mas é circunstancial. O processo eleitoral despertou isso.

Valor: Não seria possível a construção de uma frente de esquerda?

Brandão: Não acredito em frente de esquerda. Mas tem gente de esquerda que vai procurar um novo caminho, que não seja nem PSDB nem PT. Se vai encontrar ou não é um novo problema.

Valor: Dos dois partidos que polarizaram a eleição, o PSDB sai à frente para 2010, com dois grandes quadros. No PT, ainda existe uma névoa em relação a uma nova liderança para substituir o presidente Lula. O senhor consegue vislumbrar quadros petistas para a próxima disputa eleitoral?

Brandão: É preciso esperar um tempo para ver se novas lideranças vão surgir. No caso do PT, é mais fácil de perceber. Tem de gerar um quadro dirigente ou um novo grupo lulista que dê as cartas. Um grupo de quadros, de militantes, em torno de um projeto do PT. No caso do PSDB, tem de ver como serão o governo de José Serra, em São Paulo, e o segundo governo de Aécio Neves, em Minas gerais. A minha impressão é de que o governo Serra vai ser à esquerda, porque ele precisa consolidar a vitória que teve. Ele ganhou na maioria dos distritos tradicionalmente controlados pelo PT, com exceção da ultraperiferia. Serra tem de se preparar para a próxima eleição para prefeito - pois a Marta Suplicy vai disputar - e ganhar o eleitorado petista. O governador eleito vai ter de fazer, portanto, um governo mais popular. Tem que se diferenciar dos governos e dos nomes Alckmin e Aécio. Como disse, Serra é o que resta do antigo PSDB, aquele da origem. Vai ter uma disputa pelo voto popular. Disputas mais voltadas para beneficiar o povo, o que é um lado positivo.