Título: Celso de Mello vê 'delinquência governamental' e Britto, golpe por poder
Autor: Basile , Juliano
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2012, Política, p. A10

O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou ontem, por oito votos a dois, a condenação do ex-ministro José Dirceu por corrupção ativa, numa sessão que foi utilizada para rebater as críticas de que a Corte estaria mudando critérios ou fazendo um julgamento de exceção. Dirceu foi condenado como "mentor" do mensalão e apontado como o organizador do esquema de compra de votos no Congresso. "Tudo passava pelas mãos dele. Ele era plenipotenciário", resumiu o presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto. O ex-presidente do PT José Genoino foi condenado por nove votos a um pelo mesmo crime, enquanto o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares teve placar unânime pela condenação, assim como Marcos Valério, considerado o operador dos repasses de dinheiro a deputados.

O tribunal também iniciou ontem a votação sobre as acusações de lavagem de dinheiro contra ex-deputados do PT que receberam recursos do Banco Rural sob a autorização de agências do publicitário Marcos Valério. O relator, ministro Joaquim Barbosa, sinalizou voto pela condenação dos ex-deputados petistas Paulo Rocha (PA) e João Magno (MG) por lavagem de dinheiro. Hoje, ele retomará a leitura de seu voto tratando do ex-deputado Professor Luizinho (SP). Rocha é acusado de receber R$ 820 mil de Valério com a ajuda de Anita Leocádia, sua secretária. Luizinho recebeu R$ 20 mil, enquanto Magno obteve R$ 360 mil.

As críticas de que o STF estaria condenando réus por mera suspeita ou sem provas suficientes para tanto foram respondidas ao longo de dois votos que tomaram quase toda a sessão de ontem. Primeiro, o decano da Corte, ministro Celso de Mello, ressaltou que os réus não estão sendo punidos por conta de suas atividades políticas nem pelos postos de comando que ocuparam no governo, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e no PT. "Condena-se tais réus porque existe prova juridicamente idônea e processualmente apta", disse Celso.

Depois, Ayres Britto asseverou que há provas suficientes e claras no processo indicando a condenação da maioria dos réus: "A prova é a voz dos fatos. Há fatos que silenciam, que sussurram, que falam em decibeis razoavelmente audíveis, e há fatos que verdadeiramente gritam, porque expõem as próprias vísceras. Seria uma violência fechar os olhos para as vísceras expostas dos fatos criminais sob julgamento."

Celso de Mello enfatizou que os réus do mensalão agiram numa "agenda criminosa muito bem articulada". "Há elementos probatórios e não importa se são indiciários, porque os indícios se qualificam também como prova penal", afirmou. Segundo o decano, os indícios "são convergentes, se harmonizam entre si e não se repelem, e, portanto, não se desautorizam mutualmente".

Celso usou boa parte de seu voto para rechaçar as afirmações de que o tribunal estaria "inovando" para concluir pela punição de políticos. "A jurisprudência do STF em nada foi alterada", ressaltou. "Repila-se a afirmação de que o tribunal está inovando para condenar alguns réus. Isso não é verdade! Isso não é exato!"

O decano defendeu a aplicação da teoria do domínio do fato, pela qual é possível atribuir responsabilidade penal a quem pertence a um grupo criminoso, mas não praticou diretamente o delito porque ocupava posição hierárquica de comando. Essa teoria permite a punição do mandante dos crimes, posição atribuída pela maioria a Dirceu. Para negar a tese de que ela estaria sendo utilizada de maneira casuística, o ministro lembrou que essa teoria já foi adotada pelo STF em outros julgamentos. "A teoria do domínio do fato não é uma construção "ad hoc" [para se chegar a um fim específico]. Nós estamos a tratar de uma hipótese de macrodelinquência governamental." E continuou. "Houve utilização abusiva criminosa do aparato governamental ou partidário por seus próprios dirigentes, objetivando não o diálogo institucional legítimo, não as negociações políticas legítimas, mas, sim, a adoção e consecução de finalidades por meios claramente criminosos."

Ayres Britto ressaltou que o STF fez um julgamento equidistante. Segundo ele, a Corte não julgou com "rajas de sangue nos olhos, nem ramalhete de flores nas mãos", não fez o "direito penal do inimigo nem o direito penal do compadrio".

A partir dessa postura, o presidente do STF disse ter verificado casos de propina e corrupção nos autos do processo. "O que é estranhável nesse caso é a formação argentária e pecuniarizada de alianças. É um estilo de coalizão excomungado pela ordem jurídica brasileira", afirmou, referindo-se aos acordos pelos quais "um partido se apropriou de outros". "Quando acordos se fazem à base financeira, pior ainda, de propina, suborno, corrupção, quando essas alianças são feitas assim argentariamente, são repudiadas pela ordem jurídica, por seus efeitos danosos", concluiu o ministro.

Para Ayres, "[o objetivo do mensalão era] um projeto de poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto". O presidente do STF disse que o objetivo do esquema não era corromper os parlamentares, mas construir um projeto de poder, "não de governo, porque de governo é lícito".

As respostas de Celso e Britto foram dadas não apenas aos réus, aos seus advogados e a setores da imprensa e do PT que questionaram as supostas inovações do STF no julgamento, mas também ao revisor do mensalão, ministro Ricardo Lewandowski, que havia criticado a aplicação da teoria do domínio do fato. "Preocupa-me a banalização dessa teoria", disse o revisor.