Título: Oportunidade perdida
Autor: Ferreira , Pedro
Fonte: Valor Econômico, 17/10/2012, Opinião, p. A15

A inédita queda do juro real observada a partir de 2011 gerou uma oportunidade histórica para se implantar duas reformas estruturais: a reforma tributária e a ampliação do mercado de capitais. Infelizmente, nenhuma delas está em pauta

Após a redemocratização, a Constituição de 1988 criou pressões fiscais gigantescas que levaram à hiperinflação. O Plano Real extinguiu a inflação, mas, ao eliminar o imposto inflacionário, colocou o país numa acelerada espiral de endividamento público. Enquanto pairaram dúvidas sobre a solvência da dívida pública, os juros pagos pelo Tesouro permaneceram elevados. A reversão da trajetória explosiva da dívida pública não se deu por contenção de gastos, pois estes permaneciam rigidamente determinados pela opção política incrustada na Constituição, mas por aumento de receitas.

A urgência em levantar recursos para preservar a estabilidade monetária levou à adoção de impostos que desconsideravam as distorções microeconômicas por eles geradas. Isto ocorreu no âmbito federal com a criação das Contribuições - impostos que não são repartidos com os Estados - e também no estadual, onde a guerra fiscal se tornou a regra. Os impostos tornaram-se cada vez mais elevados, distorcivos e de administração complexa, implicando em grande incerteza jurídica.

Ao tornar menos claras as contas públicas o governo introduz um elemento de incerteza no ambiente

Embora a necessidade de racionalização da estrutura tributária seja consenso entre os analistas, a negociação política que a envolve não avança, pois qualquer mudança terá ganhadores que a defendem e perdedores que a bloqueiam. Os sucessivos impasses no Confaz, não raro seguidos de disputas judiciais relativas às decisões negociadas naquele órgão, são reflexos disso. A adoção de uma reforma que dê simplicidade e racionalidade à estrutura tributária brasileira só se viabilizará politicamente se um dos agentes públicos envolvidos assumir o papel de perdedor.

Desde o início da industrialização, em meados do século passado, o mercado de financiamento de investimentos privados de longo prazo teve seu desenvolvimento atrofiado por diferentes causas. A inflação gerava incertezas que inibiam a demanda por papéis privados. Após a queda da inflação, a manutenção de um elevado juro real sobre os títulos da dívida pública - mesmo de curto prazo - inviabilizava a emissão de títulos privados de longo prazo.

Em 2008, quando o governo Lula reagiu à crise do subprime com uma política fiscal expansiva, em vez de se limitar à política monetária expansiva, perdeu-se uma boa oportunidade de se dar início à queda do juro real no Brasil. Em 2011, diante da crise das dívidas europeias, o governo Dilma optou por conter a pressão recessiva, adotando uma política monetária flexível em vez de aumentar os gastos públicos. O resultado foi uma inédita queda dos juros básicos da economia brasileira. Hoje o Tesouro emite títulos com 20 anos de prazo de vencimento pagando juros reais de apenas 4% ao ano. Trata-se de uma taxa elevada para padrões internacionais, mas baixíssima para os nacionais.

Essa queda do juro real de longo prazo criou uma oportunidade ímpar para se atacar dois coelhos com uma cajadada só. Por um lado, com uma dívida líquida em torno de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) no início daquele ano, a União poderia ter orquestrado uma ampla reforma tributária, usando a economia fiscal proporcionada pela queda dos juros para custear a eventual perda fiscal decorrente da reforma.

Por outro lado, os investidores institucionais - fundos de pensão, seguradoras, fundos de abertos da rede bancária, etc. -, por muitos anos acostumados a receber juros reais de dois dígitos anuais investindo em títulos públicos de curta maturidade e baixo risco, estão perplexos diante de uma taxa de retorno inferior à metade do que obtinham há apenas poucos anos. São investidores potencialmente dispostos a comprar títulos privados de longo prazo emitidos por empresas nacionais para financiar seus investimentos, cobrando para isso um pequeno prêmio sobre o retorno dos títulos federais. Os riscos seriam devidamente precificados a mercado, alocando-se os recursos aos projetos mais viáveis economicamente.

O que faz o governo? Em vez de usar a folga fiscal proporcionada pela queda dos juros para viabilizar a reforma tributária, distribui casuisticamente isenções aos setores "estratégicos" ou com forte poder de pressão. Em vez de impulsionar o mercado de capitais, emite 7% do PIB em títulos federais com os quais capitaliza o BNDES. Esse banco, após repassar a mercado os títulos recebidos do Tesouro para os investidores institucionais, utiliza os recursos para conceder empréstimos a empresas privadas a um custo muito abaixo daquele que estas obteriam no mercado doméstico. Ao fazê-lo, estatiza o risco do financiamento de longo prazo ao mesmo tempo em que inibe o desenvolvimento do mercado de capitais. Como efeito colateral, ao tornar menos claras as contas públicas - por exemplo, o subsídio ao BNDES não é contabilizado, mas os dividendos que este distribui são utilizados para inflar o superávit primário - o governo introduz um elemento de incerteza no ambiente macroeconômico que torna ainda mais complicada a formação de um mercado para financiamentos de longo prazo.

Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso são professores da Escola de Pós-graduação em Economia (EPGE-FGV).