Título: SP pode rever incentivos fiscais, diz secretário
Autor: Watanabe, Marta e Agostine, Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 04/01/2007, Especial, p. A10

O governador José Serra inicia a quarta gestão do PSDB no comando do Estado de São Paulo, mas suas primeiras medidas demonstram que o governo terá uma marca própria, com mudanças que se contrapõem a bandeiras do antecessor Geraldo Alckmin.

No comando da transição de governo desde que Serra foi eleito no primeiro turno, o novo secretário de Fazenda, Mauro Ricardo Costa, sinaliza uma mudança muito mais ampla dos que as já anunciadas nos primeiros momentos de Serra como governador.

Além dos oito decretos assinados na solenidade de posse e publicados ontem no Diário Oficial, com medidas como o uso obrigatório do pregão eletrônico, a reavaliação dos contratos de obras e o recadastramento de servidores, o secretário também sinaliza mudanças na política tributária. Os benefícios fiscais da gestão Serra, segundo ele, não devem seguir as reduções do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que se iniciaram nos setores do álcool combustível e têxtil e depois se ampliaram nas "primaveras tributárias" que marcaram o governo Alckmin. Segundo Mauro Ricardo, os benefícios do imposto serão estudados não só sob a ótica da Secretaria de Fazenda como também em função de um projeto de desenvolvimento do Estado. "Vamos ver qual é o incentivo para estímulo de uma região, se é que há necessidade para o fortalecimento de uma determinada atividade econômica."

O governo deve resgatar também um instrumento que ficou em segundo plano no governo Alckmin: a ampliação da substituição tributária como uma das estratégias para elevar a arrecadação. A substituição ajuda a combater a evasão fiscal porque antecipa o recolhimento do ICMS para a etapa da indústria. O secretário, porém, não quis estimar percentuais de aumento de arrecadação.

Mauro Ricardo diz ainda que o governo pretende contrair novas operações de crédito ainda em 2007. Os financiamentos seriam voltados principalmente para a área de infra-estrutura viária, como a linha 4 do Metrô e as estradas vicinais. Os novos empréstimos podem ser viabilizados com o índice de endividamento mais favorável do Estado, que se consolidou em 2006 e fechou o ano com uma relação de 1,85 entre a dívida consolidada líquida e a receita corrente líquida. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) impede que os Estados contraiam novas dívidas caso estejam com uma relação acima de 2, quadro que São Paulo apresentava até meados de 2005.

Apesar de uma situação mais "confortável", as previsões sobre investimento e alta de arrecadação estão distantes do entusiasmo alardeado em 2006, ano em que Alckmin concorreu à Presidência. Em compasso com uma proposta de Orçamento para 2007 que prevê investimento em valor 15% menor em termos nominais do que o de 2006 e um crescimento de receita que não vai além da previsão de inflação, Mauro Ricardo diz que ainda desconhece qual o superávit financeiro do Estado e a disponibilidade real para aumento de investimentos. Segundo ele, o Orçamento apertado e os decretos publicados ontem, com medidas para redução de despesas e custeio, refletem exatamente a preocupação em garantir recursos para investimentos.

Um dos decretos prevê que todos os contratos de obras e de engenharia sejam reavaliados até 31 de março. Mauro Ricardo diz que o governo deve dar atenção especial aos projetos da área de transportes, como Rodoanel, Metrô linha 4 e manutenção de rodovias. "Sempre há espaço para revisão de preço. Em todos os contratos de licitação dos quais participei, em todos, sem exceção, houve possibilidade de redução de preços na prefeitura", diz, lembrando de sua experiência como secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo escolhido por Serra, quando tomou posse, em 2005. Na administração municipal, lembra Mauro Ricardo, a redução média foi de 17%.

Na sua passagem pela prefeitura paulistana, o secretário deixou uma imagem de rigidez na negociação com os empresários ao parcelar o pagamento aos grandes fornecedores até 2012. Ele dá sinais de que essa severidade não mudou. "Aqueles que não quiserem renegociar, nós vamos, logicamente, caminhar no sentido de não renovar os contratos de prestação de serviços."

A situação financeira do Estado, mais tranqüila do que a da prefeitura, e a manutenção da equipe do governo municipal - Serra no comando e Francisco Vidal Luna, no Planejamento - faz Mauro Ricardo sentir-se mais à vontade em seu novo gabinete, diferente de quando tomou posse na prefeitura em 2005, recém-chegado do Rio.

Em sua sala de trabalho, documentos em caixas empilhadas ainda esperam um destino definitivo, mas um objeto com lugar garantido já ganhou uma marca da passagem do administrador de empresas que, aos 44 anos, chega à secretaria estadual. Encostado em uma das paredes, um velho móvel, com a inscrição "baú dos órfãos" guarda uma tradição entre os secretários de Fazenda. Cada um que ocupa o gabinete deposita uma cédula em seu interior. "Eu já coloquei R$ 2 e fiz meu adjunto depositar também", faz questão de dizer.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ontem ao Valor.

Valor: O governador iniciou o mandato com oito decretos. Um deles fala da reavalização de contratos. Como deve funcionar isso?

Mauro Ricardo Costa: O governador determinou que sejam reavaliados todos os contratos em vigor e todas as licitações em curso. A partir disso vai se verificar a necessidade de se fazer uma renegociação. Nem tudo será renegociado. Serão analisados basicamente as obras públicas e os serviços de engenharia.

Valor: Qual a estimativa de recursos envolvidos nesses contratos e as despesas correntes?

Mauro Ricardo: Não tenho ainda essa informação, mas todos serão reavaliados. A Secretaria de Fazenda baixará um ato determinando as regras do processo de reavaliação e renegociação.

Valor: Como acontecerá a redução de preços nos contratos?

Mauro Ricardo: Na realidade, vamos avaliar três coisas. Primeira, a disponibilidade orçamentária para a execução. Segunda, a necessidade dos serviços contratados. A terceira é o preço. E sempre há espaço para revisão de preço. Em todos os contratos de licitação de que participei, em todos, sem exceção, houve possibilidade de redução de preços na prefeitura, numa média de 17%. No Estado não vai ser diferente. Com aqueles que não quiserem renegociar, vamos, logicamente, caminhar no sentido de não renovar os contratos.

Valor: A equipe de transição teve acesso às informações do governo desde outubro. Existe algum contrato com margem para renegociar?

Mauro Ricardo: Os contratos da área de transporte merecem uma atenção especial pelo volume de recursos envolvidos. Os contratos do Rodoanel, do metrô, de manutenção de rodovias, por exemplo.

Valor: O senhor disse que não vai haver suspensão de pagamento. Os empresários ficaram preocupados com esse assunto em função da experiência da prefeitura...

Mauro Ricardo: Mas a situação é totalmente diferente da encontrada na prefeitura. Eram R$ 8 bilhões de dívidas vencidas e não pagas e R$ 16 mil em caixa, R$ 16. 178, 85. Não tinha como fazer. Tivemos de estabelecer uma estratégia de parcelamento dessa dívida. No Estado é diferente: há caixa para arcar com os restos a pagar. Existem passivos no Estado a serem equacionados, mas não são como os passivos que nós recebemos da prefeitura.

Valor: O senhor acredita que os empresários estarão dispostos à renegociação?

Mauro Ricardo: Sim. O problema é o sindicato, que tem uma postura mais conservadora. Mas os empresários não. Você senta e conversa com eles. Os que negociaram com a prefeitura são as pessoas que são filiadas a esses sindicatos. Foi muito salutar. Diria que é um 'ganha-ganha': a obra estava parada, nós renegociamos, reduzimos o valor, as obras foram retomadas, eles ganharam, mas diminuíram sua margem de lucro.

Valor: Um dos decretos trata da obrigatoriedade do uso do leilão eletrônico na compra de bens e serviços comuns. Na gestão anterior, o uso desse pregão era baixo?

Mauro Ricardo: Antes essa regra era editada anualmente. Agora nós a tornamos permanente e além disso estabelecemos a obrigatoriedade de pregão eletrônico, que permite redução de preços maior porque evita a formação de cartel, mais comum no presencial. Quem não quiser fazer esse tipo de pregão precisará se justificar. Desde 2002, o acumulado na compra de bens e serviços pelo pregão presencial foi de R$ 883,6 milhões enquanto o eletrônico foi de R$ 29,3 milhões. Agora praticamente todas as compras de bens e serviços comuns serão por meio eletrônico.

Valor: Um dos decretos pede levantamento de dívidas e haveres da administração direta e indireta. Há indícios de dívidas não contabilizadas?

-------------------------------------------------------------------------------- Sempre há espaço para redução de preços. Quem não quiser renegociar, não terá contrato renovado" --------------------------------------------------------------------------------

Mauro Ricardo: Não conseguimos levantar o passivo do governo. Sabemos de algumas potenciais dívidas ainda não registradas, como com a Vasp. A Vasp tem dívida com o governo federal e o governo do Estado é avalista. Essa é uma dívida que pode realmente complicar a situação do Estado. São cerca de R$ 700 milhões. Existem passivos ainda discutíveis com o INSS, com relação a previdência dos servidores ocupantes de cargos em comissão e servidores temporários, contratados lá atrás, de cerca de R$ 15 bilhões. Esses casos são tratados como contingências, não estão registrados no passivo. Temos também R$ 14 bilhões de precatórios a serem pagos. Depois do levantamento, eventualmente podemos fazer encontro de contas com a União. Queremos ter uma visão da real situação econômica e financeira do Estado.

Valor: Mas qual é a real situação financeira do Estado? Com essas medidas, parece que não é uma situação tão confortável...

Mauro Ricardo: É uma situação que exige medidas como essa que fizemos para controlar despesas e poder investir mais. Isso exige ações. Os precatórios, por exemplo. Apoiamos uma emenda do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que promove uma vinculação de parte da despesa com o pagamento de precatórios e permite o leilão desses créditos. Acaba a ordem cronológica. Pagaríamos por ordem crescente de valor. A expectativa é que seja votada em fevereiro. Isso diminuiria o dispêndio com precatórios. Nós temos R$ 1,5 bilhão de pagamento anual de precatórios e ficaria em torno de R$ 1,2 bilhão. Outro ponto preocupante é a Previdência. O rombo é de cerca de R$ 153 bilhões.

Valor: O projeto de Orçamento para 2007 prevê investimentos menores, 15% abaixo do que foi previsto para 2006, em termos nominais. O nível de receitas está com crescimento zero em termos reais. Por que um Orçamento tão apertado?

Mauro Ricardo: Os decretos são justamente para reduzir custeio e propiciar investimento. Essas são só as medidas do primeiro dia. Outras virão, em breve, muito breve.

Valor: Então não haverá aumento de receita neste ano?

Mauro Ricardo: Está cedo ainda. Faremos um esforço muito grande. Seremos implacáveis com a fraude, sonegação e inadimplência em relação ao recolhimento de tributos.

Valor: A substituição tributária de ICMS, que antecipa o pagamento do imposto para a etapa industrial ou de distribuição, poderia ser ampliada como forma de reduzir evasão e elevar arrecadação?

Mauro Ricardo: Acho que dá para expandir. É uma forma interessante de reduzir a sonegação. Muito foi feito mas há espaço para ampliação. É uma das várias coisas que estão sendo estudadas, mas ainda é cedo para falar dos setores.

Valor: A gestão de Alckmin foi marcada pela redução de ICMS em vários setores. O governo de Serra deve manter essa política de diferimentos?

Mauro Ricardo: Não está descartado, mas vai ser feito analisando a questão não mais sobre aspecto apenas da Fazenda. Isso será discutido no conselho de desenvolvimento. Vamos analisar qual é o projeto de desenvolvimento do Estado, qual área precisa ser incentivada. O incentivo fiscal é um dos instrumentos. Não é o único. Vamos ver qual é a necessidade de estímulo para uma região e se há necessidade de fortalecimento a uma determinada atividade.

Valor: Serra herdou um caixa de R$ 3,3 bilhões. Mas esses recursos estão realmente disponíveis?

Mauro Ricardo: Tem que ver os compromissos. É isso que nós estamos levantando: quais são os compromissos deixados. Não adianta deixar R$ 3 bilhões e R$ 7 bilhões para pagar. Temos que fechar a contabilidade de 2006 para verificar se há ou não superávit financeiro. Que é isso que as pessoas confundem com disponibilidade de caixa.

Valor: O superávit orçamentário foi muito tímido, de R$ 150 milhões. Com o PSDB entrando em sua quarta gestão, a situação financeira não deveria estar mais equilibrada?

Mauro Ricardo: Para você ver como o Estado estava ruim antes. (risadas) Você pensa o mesmo em relação à prefeitura: está bom? Não está. Andou bastante, muita coisa foi feita, mas ainda precisa fazer muita coisa. Os governos Covas, Alckmin, Lembo, fizeram muita coisa, mas a situação financeira do Estado ainda não é boa.

Valor: O choque de gestão poderia ter ido além?

Mauro Ricardo: Cada um tem sua realidade. Tudo depende do contexto. Pegamos o bastão agora e vamos correr para frente. Não vamos olhar para trás. Lá atrás a dívida estava em um percentual significativo em relação à receita corrente líquida. Hoje já não. Podemos abrir espaço para novas operações de crédito. Isso não havia no passado.

Valor: Há espaço para novas operações de crédito em 2007?

Mauro Ricardo: Para iniciar a discussão sim. Vamos avaliar primeiro a questão da linha 4 do metrô. Serra levou ao governo federal algumas idéias sobre estradas vicinais. Existem diversas possibilidades: PPPs, Orçamento, concessões, operação de crédito externa ou interna, com o BNDES. Abrindo essa oportunidade com o comprometimento da dívida com a receita corrente líquida, é possível avançar.

Valor: A desvalorização do dólar ajudou a melhorar a relação da dívida. Esse ano há uma perspectiva de manutenção do câmbio. Isso não atrapalha esses planos?

Mauro Ricardo: Sempre defendi que o indexador (IGP-DI) é inadequado porque carrega os preços das commodities, em dólar. Isso não tem qualquer relação com a receita do Estado. O governo federal tem sido muito camarada com o privado, quando toma empréstimo do BNDES, com TJLP, e também com os devedores do Fisco federal, quando também parcela suas dívidas com TJLP. Mas é muito duro com Estados e municípios, quando cobra IGP-DI mais 6% mais 9%. Isso já foi objeto de conversa de Serra com Guido Mantega (ministro da Fazenda), durante o governo de transição. A dívida do jeito que está estruturada, com o Tesouro, é impagável. É preciso acabar com esse dogma de que a dívida do setor público é inegociável. O privado negocia e o próprio governo federal também.

Valor: O senhor acha que Serra pode ser uma liderança nesse processo de renegociação?

Mauro Ricardo: Sim. Esse é um problema de todos. Não vejo problema em alongar prazo e reduzir juros.

Valor: A guerra fiscal entrará na pauta do governo federal. O ponto mais delicado é discutir os benefícios que foram concedidos no passado. Saber se um Estado ressarcirá o outro em função disso. O governador Serra deve manter a posição da gestão Alckmin, de que o passado é inegociável?

Mauro Ricardo: Nós não aceitaremos a discussão do passado isoladamente. O futuro também precisa ser discutido com compromissos formalizados que resultem no fim da guerra fiscal.