Título: A lavagem de dinheiro e o dolo eventual
Autor: Mello , Renato de
Fonte: Valor Econômico, 16/10/2012, Política, p. A5

A distinção entre o querer o resultado e uma simples questão culposa sempre foi duvidosa em sede penal. Mais nebulosa ainda é a questão fronteiriça entre o chamado dolo eventual e a culpa consciente. Essa questão, já tateada no processo do mensalão - a Ação Penal nº 470 - no Supremo Tribunal Federal (STF), é significativamente retomada agora, nas discussões relativas à lavagem de dinheiro.

Segundo o artigo 18 do Código Penal, diz-se crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. De outro lado, diz-se crime culposo quando o agente deu causa ao resultado por negligência, imprudência ou imperícia. Assevera ainda, que, salvo em casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. Em outras palavras, a regra é a punição por fatos dolosos.

A chamada assunção do risco pode configurar uma abordagem complexa de conduta dolosa. Seria o dolo eventual, visto, no Brasil, normalmente através de concepções de probabilidade, sentimento ou consentimento. O desprezo pela ocorrência de determinado evento já autorizaria determinada punição. Essas alegações ganharam espaço significativo, em especial no que se refere à duvidosa compreensão dos crimes de trânsito.

Embora isso se dê nesse quadrante, a situação é muito mais grave em um tipo penal amplo, como é o caso da lavagem de dinheiro. O alerta foi feito, durante a apresentação dos votos, pelo ministro Marco Aurélio Mello. Qual, enfim, deveria ser a abrangência a ser dada para o crime de lavagem de dinheiro? Caberia, nele, o emprego do dolo eventual?

A ministra Rosa Weber mencionou, pontualmente, a aceitação da possibilidade de imputação penal por lavagem dentro de uma visão de dolo eventual. Mas - e isso foi destacado em vários momentos - como se interpretar essa questão em determinadas profissões, como seria o caso de médicos e advogados? Quais as implicações que isso pode ter no dia a dia do profissional liberal? Seria este responsável pelo mero exercício de seu labor?

No estrangeiro se verificam algumas punições de advogados por lavagem de dinheiro pelo único fato de terem recebido valores de honorários com origem suspeita. Essa importação de ideias chega com bastante impacto no Brasil, principalmente depois que a Lei nº 12.683, de 2012, alterou a redação de vários artigos da Lei nº 9.613, de 1998, mudando, pois, a própria definição nacional da lavagem de dinheiro.

Há alguns anos, defendeu-se, no Senado Federal brasileiro, a proibição de que determinados acusados pudessem contratar advogados. Sua defesa deveria ser realizada unicamente por advogados públicos, não podendo, assim, haver o menor desfrute de um dinheiro sujo. Confundia-se, à época, a noção de utilizar dinheiro criminoso e o direito à ampla defesa. Este, sagrado, deve ser garantido em sua plenitude, o que equivale, também, à garantia de livre eleição do advogado constituído.

Muitas teses são discutidas em relação à criminalização, ou não, do advogado pelo fato de receber esses dinheiros de origem suspeita. Fala-se de adequação profissional, proibição de regresso, garantia constitucional de defesa, risco das condutas e condutas neutras, entre tantas. Também nessa quadra são encontradas mais teorias do que se imagina, não havendo resposta simples à questão posta. Apesar de condenações serem presentes, essa não é, de modo algum, a regra. É, sim, exceção.

É de se notar uma significativa sensibilidade do Supremo ao destacar os marcos de extensão do dolo eventual na lavagem de dinheiro. Existe um significativo perigo de acusações e punições desmedidas para além da figura daqueles destinatários da norma penal, e não só para advogados. Profissionais que simplesmente recebem dinheiro não podem ser reduzidos à figura de criminoso. Não o são. É essa a lição de contenção ao entendimento tipológico destacado no tribunal, não só para o caso do mensalão, mas para a realidade futura, agora regida pela Lei nº 12.683.