Título: Para Amorim, Lula é ponto de equilíbrio na América do Sul
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 22/01/2007, Brasil, p. A3

Numa América do Sul com as contradições políticas e econômicas evidenciadas por seus presidentes durante a reunião do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações que se realizou no Rio, quinta e sexta-feira passadas, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva é um fator de equilíbrio. A opinião é do ministro do Exterior, Celso Amorim. "Todos percebem isso. Não é à toa que Rafael Correa, do Equador, e Alan Garcia, do Peru, escolheram o Brasil como primeiro país a ser visitado após suas eleições", disse Amorim, em entrevista ao ao Valor , sexta-feira à noite, no Copacabana Palace, sede da reunião dos presidentes.

O ministro negou que o crescente protagonismo do presidente da Venezuela na política do continente desperte ciúmes no presidente Lula. "Não tem cabimento isso". E reafirmou seu otimismo com o andamento da integração sul-americana. "Há dificuldades", reconheceu, identificando-as nas frustrações do Uruguai e do Paraguai por não alcançar no Mercosul os benefícios esperados e nas assimetrias que impedem a imediata adesão da Bolívia e do Equador ao bloco. "Nada é fácil, se fosse já existido. Mas estamos avançando e consertando", afirmou".

Para o ministro, o Mercosul já é uma referência geopolítica "ineludível". "O Mercosul não pertence mais aos governos e aos burocratas, é propriedade dos povos da região", disse.

Valor: O Mercosul parece que saiu mais dividido desta reunião...

Celso Amorim: Vou responder de maneira indireta. Acho que esta foi a reunião mais importante de que já participei do Mercosul e da América do Sul. Nunca houve uma reunião operativa, não meramente celebratória, com onze chefes de Estado e de governo presentes, com discussões tão francas, tão abertas, tão reais. É claro que, justamente por ser um ambiente franco e real, você tem a percepção do que está acontecendo, percebe as diferenças. O Mercosul eu acho que saiu fortalecido. O Fundo de Convergência Estrutural (Funcem), por exemplo, começa a operar com a aprovação de onze projetos, num total de US$ 70 milhões. Não é pouco dinheiro para países em desenvolvimento. Entre eles, cinco projetos no Paraguai, três no Uruguai e um de interesse regional (combate à aftosa). Isso em si já é uma grande coisa. Aprovamos um grupo de trabalho que vai tratar do ingresso da Bolívia. Também não vai ser uma coisa fácil. Nada é fácil na vida. Se fosse fácil já tinha existido. Aprovamos uma resolução muito importante sobre o tratamento de assimetrias. O Brasil tinha feito propostas específicas com relação à eliminação da dupla cobrança da Tarifa Externa Comum (TEC) e com relação à facilitação de regras de origem para estimular investimentos no Uruguai e no Paraguai. Eles se queixam, com certa razão, de não ter colhido os benefícios que esperavam no Mercosul. Não foi possível aprovar isso agora, mas conseguimos o acordo de todos para ter um Grupo de Trabalho que vai tratar destas questões de maneira urgente. Criamos o Instituto Social do Mercosul, houve a reunião de autoridades locais, houve a Cúpula Social, que precedeu esta reunião, a criação do Parlamento do Mercosul. Enfim, podem haver dificuldades. Mas o Mercosul hoje não é mais propriedade de governos e menos ainda dos burocratas. É propriedade dos povos. Os povos vão cobrar dos governos que eles trabalhem pelo reforço do Mercosul. Dito isso, reconheço que há dificuldades. Os países menores têm queixas históricas porque não obtiveram todos os benefícios, porque, talvez, não demos atenção suficiente no passado à necessidade de um tratamento especial para eles, não pusemos a atenção que mereciam na questão de cadeias produtivas. Mas estamos tentando consertar essas coisas.

Valor: Haverá tempo de consertar isso, antes que as frustrações levem ao desgarramento de um ou outro membro do Mercosul? Do Uruguai, por exemplo?

Amorim: Sou otimista, acho que haverá tempo. O que não posso é ter certeza absoluta sobre o que vai acontecer. Não tenho bola de cristal. Vejo, por exemplo, de parte do Uruguai, um grande sentimento de frustração em relação ao Mercosul. Pessoalmente acredito que o problema do Uruguai - mas é opinião minha, não sou eu que tenho de decidir, quem vai decidir são os uruguaios - se resolve dentro do Mercosul. Mas creio que há certos setores no Uruguai, não é o governo como um todo, que têm uma visão crítica, que o Mercosul não deu, nem vai dar, as compensações que esperavam. Esse é um julgamento que o próprio Uruguai terá de fazer. As declarações políticas que temos ouvido são em geral animadoras, que eles querem procurar soluções dentro do Mercosul.

Valor: Os uruguaios dizem que querem mais e melhor Mercosul. O que isso significa, na sua opinião?

Amorim: Interpretando positivamente, é o aprofundamento do Mercosul, a eliminação de obstáculos. Parece brincadeira, mas é uma coisa emblemática: na reunião dos presidentes e dos ministros servimos água mineral Salus e brindamos por estar consumindo a água uruguaia que não conseguia entrar no Brasil, enfrentava barreiras. Não adianta nada ter tarifa zero, se você opuser uma barreira sanitária. Muitas vezes produtos como esses se exportam para a Europa, para os Estados Unidos, onde há exigências sanitárias muito rígidas. O presidente Lula mencionou isso na inauguração do Parlamento Latino-Americano, eu me dediquei profundamente a isso, ligando para a Alfândega, para a Anvisa. Uma das coisas que o presidente tem demonstrado é o interesse forte pela integração e isso começa a permear para o conjunto da burocracia brasileira. Tenho convicção de que esse tipo de obstáculo vai aos poucos ser eliminado. Se será a tempo de compensar todas as frustrações, não tenho certeza.

Valor: Entre as frustrações do Uruguai não se inclui o fato de o Mercosul não ter tomado posição a seu favor na questão das indústrias de papel que a Argentina não quer que os uruguaios instalem à margem do Rio da Prata?

Amorim: Os uruguaios levaram o caso ao tribunal arbitral de Olivos. Obtiveram uma sentença preliminar que consideraram uma vitória. Não posso dar sugestões ao Uruguai de como deve agir. O que não podemos é impor uma mediação. Mediação só funciona quando é pedida, e tem de ser pedida pelos dois lados. Existe o processo e temos que esperar que ele se desenvolva. O rei da Espanha está mais longe da região, embora uma das empresas seja espanhola... Não é que o Brasil fosse ser parcial, mas qualquer coisa que o Brasil faça pode ser encarada como parcial por um lado ou por outro. Essas coisas, que a gente obviamente lamenta que ocorram, existem também na União Européia. Não vou dar nomes aqui porque amanhã vem o embaixador reclamar que falei do caso A e caso B. Qualquer pessoa que lê jornal sabe que na União Européia existem problemas entre países membros às vezes até mais difíceis do que este. Isso não impede que a União Européia avance. Temos de nos acostumar com o fato de que o Mercosul é fundamental, mas não resolve todos os problemas. Alguns têm de ser resolvidos por outros meios.

Valor: Por que está difícil o ingresso da Bolívia no Mercosul?

-------------------------------------------------------------------------------- É espetacular o crescimento do comércio no Mercosul. Começou com US$ 4 bilhões. Hoje vai para US$ 30 bilhões" --------------------------------------------------------------------------------

Amorim: Nada é fácil. A própria Venezuela. Há cronogramas de desgravação tributária e outros que ainda não foram totalmente aprovados. As datas básicas sim, mas como se chega, se avança dentro desse processo ainda tem de ser especificado. Isso é muito importante. Para o Brasil é fundamental, porque temos que dar satisfação à opinião pública de que é um fato real, não é um gesto meramente político, a adesão da Venezuela. Sinto uma disposição venezuelana de acelerar esse processo. Já a Bolívia é um país muito mais pobre. A questão das assimetrias vai se colocar de maneira muito mais forte. A Bolívia não quer, e eu compreendo isso, romper os laços com a Comunidade Andina, nem nós queremos que ela rompa, mas isso pode implicar alguns esclarecimentos, digamos assim. Há questões técnicas que têm de ser resolvidas. Há uma série de coisas que precisam ser negociadas para a entrada de um país no bloco. As negociações na União Européia para a entrada de novos membros levam dois ou três anos. Às vezes até mais. Não creio que vai levar tanto tempo com a Bolívia, mas é natural que leve alguns meses. Aliás, o próprio chanceler do Uruguai (Reynaldo Gargano), numa demonstração de quanto tem de apego ao Mercosul, foi quem destacou que, com a inclusão da Venezuela e da Bolívia, o Mercosul representará 80% da área da América do Sul, quase uns 14 milhões de quilômetros quadrados. Seria, depois da Rússia, o maior país do mundo (Rússia, 17.075.200 de km2 ; Mercosul hipotético, 13.879.606 de km2; Canadá, 9.984.670 de km2). O fenomenal não é só isso. É a diversidade de recursos naturais, de flora, fauna, recursos hídricos, uma região pujante, muito rica também pela diversidade cultural. Diria que o Mercosul passou a ser uma referência geopolítica ineludível.

Valor: E a Comunidade Sul-Americana de Nações? O panorama hoje é melhor do que antes?

Amorim: Antes não havia. Cada um negociava seus acordos. Quando você viu o presidente da Colômbia vir ao Brasil para uma reunião multilateral e ficar tanto tempo? O presidente do Equador tomou posse há três dias e veio para cá. Demonstra a importância que atribuem à Comunidade. Acho que essa comunidade está se criando efetivamente. A integração se dá em duas velocidades. O Mercosul, que tem a Tarifa Externa Comum, o Fundo de Convergência, que negocia em bloco, que tem agora um Parlamento, é um grupo de integração mais profundo. A Comunidade em algumas coisas é tão importante quanto o Mercosul na parte da integração física, da interconexão energética, da harmonização progressiva de políticas sociais. O ideal seria que todos fizéssemos parte de uma mesma união aduaneira, como aconteceu na Europa. Mas a gente enfrenta a realidade como ela é. Já não era assim. Quando chegamos ao governo, o Chile tinha um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Colômbia, Peru, Equador, Bolívia já estavam negociando. O Equador resolveu parar, a Bolívia também. Enfim, era um processo em andamento e não tínhamos como evitar. Só podemos desejar que seja bom para eles. Não é que isso impeça a nossa integração, mas impõe um limite. Digo melhor: impõe uma velocidade diferente ao processo de integração, em que o limite seria a união aduaneira.

Valor: E o Equador?

Amorim: O Brasil foi o primeiro país que o presidente Rafael Correa visitou depois de eleito. Acho que tem grande interesse numa aproximação com o Mercosul. Mas, como a Bolívia, tem um grande apego, até afetivo, à Comunidade Andina de Nações, patrimônio de 40 anos. Então, eles têm ainda de tatear, ver como vão lidar com a realidade. Mas é certo que desejam aproximação maior com o Mercosul. Se isso vai transformar o Equador em membro pleno do Mercosul só o futuro dirá. O presidente Rafael Correa teve uma participação muito boa na reunião, com propostas concretas, até sobre essa questão da convergência da Comunidade Andina com o Mercosul, já ofereceu Quito para ser sede da Comunidade Sul-Americana de Nações, de modo que está dando importância enorme à integração .

Valor: Vamos falar um pouco da Venezuela. Há um crescente protagonismo político da Venezuela nas questões da América do Sul. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem ciúmes do presidente Hugo Chávez?

Amorim: De maneira nenhuma. Não tem cabimento isso. Cada presidente tem sua realidade, seu papel a desempenhar. É opinião pessoal minha, mas acho que o presidente Lula tem um papel de muito equilíbrio dentro da América do Sul. Todos percebem isso. Não é à toa que, tanto o Rafael Correa, que foi, entreaspas, apoiado pelo Chávez, quanto o Alan Garcia, do Peru, que, ao contrário, sofreu oposição de Chávez - teoricamente, pelo menos, foi o que se publicou - vieram ao Brasil como primeiro país a ser visitado depois de eleitos. É um papel que decorre não só da importância do Brasil, mas também das atitudes do presidente Lula, do seu equilíbrio, do desejo de trabalhar com todos, de respeitar a pluralidade de situações. Nós temos, por exemplo, uma excelente relação com a Colômbia. Os investimentos brasileiros na Colômbia têm aumentado muito, em várias áreas, como siderurgia, petróleo. Peru é outro país onde o investimento brasileiro tem crescido. Em alguns casos vamos mais rápido do que em outros, mas isto não quer dizer que não se avance no conjunto da integração. Começamos a criar instituições, houve um debate muito importante e os presidentes tomaram decisões importantes em Cochabamba, criaram uma comissão de altos funcionários, grupos de trabalho sobre energia, financiamento, tivemos discussões sobre como aprofundar isso. Então, as coisas estão andando. Não importa se será Comunidade, se será União, como propõe o Chávez. O nome não é importante O que importa é que isso antes não existia.

Valor: Por ter feito referência à democracia, a declaração conjunta dos presidentes presentes à reunião está sendo interpretada como uma advertência ou até uma condenação a Chávez, que pretende se reeleger indefinidamente. Essa interpretação está certa?

Amorim: Não interpreto dessa maneira. Como é que o presidente Chávez iria subscrever uma declaração que tivesse esse objetivo? Ele é parte da declaração. Há, sim, um sentimento forte na região de apego à democracia, inclusive do presidente Chávez, que assinou esse documento. O apego à democracia é de todos, independentemente se vai ter mais ou menos participação do Estado, mais ou menos setor privado, mais ou menos investimento estrangeiro. A democracia é um elemento indispensável da integração sul-americana. O povo venezuelano, numa ação promovida por Chávez, colocou na constituição uma cláusula que não existe em outros países, o chamado referendo revocatório, a possibilidade de destituir o presidente no meio do mandato. Ele enfrentou esse referendo e foi confirmado no cargo (o referendo foi introduzido na Constituição em 1999; em agosto de 2004, Chávez submeteu-se ao referendo e 59% dos eleitores votaram pela sua permanência na presidência). Como Chávez vai conduzir a política interna é uma questão do povo venezuelano. Eu posso ter minha opinião, mas isso não interessa, interessa a do povo venezuelano. A gente não pode querer ao mesmo tempo ser democrata, isto é querer que o povo tenha liberdade de escolher, e depois dizer que ele deveria ter escolhido não como ele queria, mas como a gente queria. Isso é uma contradição.

Valor: Quanto vai agregar à corrente de comércio do Mercosul a adesão da Venezuela?

Amorim: Ao ser criado, o Mercosul tinha uma corrente de comércio de menos de US$ 4 bilhões. Hoje é de quase US$ 30 bilhões. É um crescimento espetacular. Quando algumas pessoas dizem que o Mercosul é um simples projeto ideológico, que não é pragmático, isso é totalmente descabido. E o Brasil é superavitário com todos os países da América do Sul, menos com a Bolívia, por causa do gás. Não me importo muito com o superávit, ele varia de acordo com o câmbio, varia de acordo com a taxa de crescimento dos países. O Brasil, por exemplo, exporta muito hoje para a Argentina porque a Argentina cresce a 8% e nós a 3%. Quando, por hipótese, nossa economia crescer a 8%, os argentinos vão vender mais para nós, e o superávit pode mudar de lado. Agora, o aumento das exportações do Brasil para o Mercosul e para os países da América do Sul tem sido muito expressivo. Para a Venezuela saímos de US$ 600 milhões para quase US$ 4 bilhões. Não é só a Venezuela. Com a Colômbia, saímos de US$ 400 milhões para US$ 1,5 bilhão, em três, quatro anos. A América do Sul hoje é um mercado mais importante para o Brasil que os Estados Unidos. E o que vendemos na América do Sul são produtos com alto valor agregado, sem falar nos investimentos. Difícil prever quanto a Venezuela vai acrescentar porque já exportamos muito para ela. A adesão da Venezuela ao Mercosul, entre outras coisas, terá muita importância do ponto de vista energético, porque ela é detentora de grandes recursos nesse setor. E quando o Brasil voltar a crescer, como o presidente Lula quer, na base de 5%, 6% ao ano, vamos ter fome de energia. Ter uma relação muito próxima com a Venezuela - com a Bolívia também, mas a Venezuela tem reservas muito maiores de petróleo e gás - é muito importante. Aliás, ela já fornece energia elétrica, de Gúri, para a região norte do Brasil.

Valor: O ministério já recebeu alguma reclamação de empresários brasileiros com relação à nova política anunciada pelo presidente Chávez? Há interesses de brasileiros atingidos?

Amorim: Interesses contrariados de brasileiros não percebi. Há uma coisa um pouco difusa. Alguns empresários que têm alguma relação mais forte, sei lá, com os Estados Unidos, temem que uma relação com a Venezuela possa contaminar nossas relações com os Estados Unidos. Mas isso não está ocorrendo. Nossa relação, inclusive pessoal do presidente Lula com o presidente Bush, é muito boa. Nosso comércio com os Estados Unidos também alcança um nível recorde. Só vejo empresários interessados em exportar, investir, não só na Venezuela, mas em toda a América do Sul. A gente recebe todos os dias muita reivindicação, demanda e pedido de ajuda. Reclamação, muito pouca.