Título: BC reduz controle e 'abala' mercado
Autor: Ribeiro, Alex
Fonte: Valor Econômico, 22/01/2007, Finanças, p. C10

O mercado financeiro, que historicamente reivindicou maior liberdade para comprar e vender moeda estrangeira, mostra desconforto agora que o Banco Central derruba controles sobre as operações cambiais. O mais novo atrito ocorreu há cerca de dez dias, quando o BC parou de verificar se cada embarque de exportação tinha o seu respectivo contrato de câmbio. Já tinha havido algum estranhamento no mercado em março de 2005, quando o BC deixou de detalhar os documentos necessários para fundamentar as operações de câmbio.

Esses episódios têm em comum o relaxamento das regras de controle cambial. As empresas, pessoas físicas e bancos ficaram mais livres para comprar e vender moeda estrangeira. De outro lado, o mercado cambial perdeu o conforto que era dado pelos controles feitos pelo BC - que dizia, no detalhe, o que era certo ou errado em cada operação com moeda estrangeira.

O melhor exemplo desse dilema é o que aconteceu há poucos dias, quando o BC parou de vincular os embarques de exportações com os respectivos contratos de câmbio. Essa vinculação obrigatória significava, na prática, que o BC colocava uma espécie de carimbo em cada operação de venda de dólares feita por exportadores. Era um dos resquícios dos fortes controles cambiais adotados no passado - na década de 1980 chegou-se a obrigar cidadãos que importavam remédios a fazer fila na porta do BC para obter autorizações.

A burocracia enfrentada pelos exportadores foi criada em 1933, no governo Vargas, quando foi instituída a exigência de cobertura cambial. A regra dizia que exportadores tinham que trazer ao país os dólares de suas vendas ao exterior. A exigência era uma forma de garantir um fluxo regular de divisas ao país em uma época em que a economia estava sujeita a seguidas crises de balanço de pagamentos.

Para cada embarque, tinha que haver o respectivo contrato cambial. Nos primórdios, as vinculações eram feitas por meio de papel. A Receita mandava para o BC uma via das guias de embarque das exportações, e um funcionário as grampeavas com os respectivos contratos de câmbio. Mais tarde, o processo se tornou automatizado, com a criação de um grande banco de dados das exportações, o Siscomex, que permitiu a vinculação com os contratos registrados no Sisbacen, o sistema informatizado do BC. O processo ficou um pouco menos lento, mas a essência da burocracia foi mantida.

Durante décadas, funcionários do BC checaram a consistência das operações e, no caso de haver eventuais problemas, telefonavam para os bancos ou corretoras responsáveis orientando sobre como resolver. Chegavam ao ponto de manter contato com os clientes dos bancos - as empresas exportadoras - para cobrar explicações e providências e, quando era o caso, instaurando processos punitivos.

Todo essa burocracia impunha custos à economia. Diariamente, são realizados cerca de 2,5 mil contratos de exportação e 9 mil embarques. As operações podem ser desmembradas em várias, de forma que em 2005 foram realizados 1,6 milhão de registros no sistema. Os bancos cobravam altas tarifas para fazer o serviço. E mantinham uma burocracia própria para lidar com problemas.

Em 2006, o governo decidiu que, no atual contexto econômico, não tinha mais sentido o BC, sob o pretexto de proteger o balanço de pagamentos, exigir a cobertura cambial. Foi o desdobramento natural de uma progressiva liberalização cambial que, em 1988, deu um dos seus primeiros passos, ao extinguir limites para cidadãos comprarem dólares - até então, era comum os viajantes recorrerem ao paralelo.

Mas a decisão final do governo foi uma revogação apenas parcial da cobertura. A regra adotada foi acabar com a cobertura de apenas 30% das exportações. "Do ponto de vista do BC, a exigência de cobertura cambial deveria ter sido extinta", afirma o economista-chefe da América Latina do ABN AMRO, Alexandre Schwartsman, um dos que trabalharam no no projeto de liberalização do mercado de câmbio quando era diretor de Assuntos Internacionais do BC. "Mas foi mantida uma cobertura cambial parcial apara assegurar que a Receita não iria perder arrecadação com a CPMF." Se a cobertura cambial fosse extinta, em tese os exportadores deixariam de entrar com os dólares no país, o que gera o pagamento da CPMF.

Como hoje a exigência de cobertura deixou de ser um problema cambial para se tornar um assunto meramente tributário, ficou resolvido que o BC sairia de cena - e, em seu lugar, entraria a Receita. É por isso que o BC deixou de fazer a vinculação dos embarques de exportações com os contratos de câmbio. Agora, o BC apenas recebe informações dos contratos de câmbio para fins estatísticos, repassando os dados para a Receita, que verifica se empresas e bancos estão pagando os impostos.

O fim dos controles cambiais feitos pelo BC causou certo desconforto entre bancos e empresas. Até então, bastava um telefonema para a área de câmbio do BC para saber se determinada operação era legal ou ilegal. Hoje, a determinação do BC é que eles estão proibidos de dar qualquer orientação para o mercado.

O Brasil, diz uma fonte do BC, passou a trabalhar na área cambial com os mesmos princípios empregados por países que não têm controles cambiais. A lei, de um lado, diz como as coisas funcionam. Os participantes do mercado, de outro lado, fazem suas operações de acordo com a lei, sem pedir autorização prévia. Mas, se fizerem alguma coisa errada, como lavagem de dinheiro ou sonegação de impostos, estão sujeitos à sanção da lei.

Bancos passaram a reclamar que, sem o apoio do BC, assumiram a responsabilidade de saber se o cliente que compra ou vende moeda é cumpridor da lei. E é exatamente esse o objetivo do BC: os bancos devem conhecer bem seus clientes. Esse princípio já vem sendo aplicados há algum tempo na fiscalização do sistema financeiro.

Antes desse episódio da flexibilização da cobertura cambial, já havia ocorrido algum estranhamento no mercado, ainda que em menores dimensões. Em março de 2005, quando unificou os mercados de câmbio livre e flutuante, o Conselho Monetário Nacional (CMN) também adotou medidas que reduziam os controles feitos pelo BC, dando mais liberdade nas operações.

Até então, prevalecia o princípio que só eram permitidas as operações de câmbio expressamente autorizadas pela legislação. A partir das mudanças, todas as operações passaram a ser aceitas, desde que atendessem o princípio da fundamentação econômica. O BC deixou claro, também, que a partir de então não iria mais listar quais seriam os documentos exigidos para dar sustentação às operações de câmbio, nem determinar quais cláusulas deveriam constar dos contratos de compra e venda de moeda estrangeira.

As mudanças fizeram com que o mercado, em um primeiro momento, travasse parte das operações. Depois de se acostumarem com o sistema, retomaram os negócios normalmente.

Hoje, o mercado continua travado - a faculdade de deixar 30% das exportações no exterior ainda não foi usada. Uma fonte que trabalha no projeto de liberalização cambial diz que há alguns desafios para destravar o mercado. Um deles é o mercado se acostumar com a idéia de que a Receita - muito mais temida por bancos e empresas que o BC - é quem passará a dar as cartas.

Outro desafio é a própria Receita se preparar para o novo sistema. Funcionários do BC estão treinando seus colegas da Receita. Também falta legislação da Receita que esclareça pontos considerados obscuros pelo mercado. O discurso da Receita é de que não é necessário fazer mais nada. Tudo que existe já é suficiente para o mercado operar.

Schwartsman considera que a maneira mais eficaz de acabar com o impasse é por meio da revogação pura e simples da cobertura cambial. Os cálculos da Receita são de que, no limite, a exigência de cobertura cambial gere arrecadação de R$ 870 milhões por ano. "Para arrecadar um valor irrisório, são mantidos os controles cambiais", afirma. "A perda que a economia sofre com a exigência de cobertura cambial é bem maior que isso."