Título: Deputado Tiririca
Autor: Sifuentes, Mônica
Fonte: Correio Braziliense, 25/11/2010, Opinião, p. 27

Pior do que está não fica! Com esse mote, que conquistou mais de 1 milhão e 300 mil eleitores, Francisco Everaldo Oliveira Silva - o Tiririca - foi o deputado federal mais votado do estado de São Paulo. Nada de novo na República, que já sufragou maciçamente o hipopótamo Cacareco e o macaco Tião e elegeu o então desconhecido Enéas graças ao discurso agressivo e à aparência exótica. A novidade ficou por conta das poucas - ou nenhuma - letras do deputado eleito, suspeita levantada pelo Ministério Público, que requereu fosse o outrora palhaço submetido a testes para lhe comprovar a alfabetização. Deixando de lado o fato de ter sido a opção do eleitor uma forma de protesto, o fenômeno Tiririca dá ensejo ao menos a duas reflexões. A primeira diz respeito à inelegibilidade do analfabeto. Se ele pode votar, por que não pode ser votado? A segunda, talvez mais urgente, refere-se à questão da representação política no Brasil, com a adoção da eleição proporcional.

A Constituição de 1988 estabeleceu que o alistamento eleitoral e o voto são facultativos para o analfabeto. No entanto, eles são inelegíveis, ou seja, não podem se candidatar a cargos políticos. As opiniões a esse respeito se dividem. Há os que consideram que, se a lei outorgou ao analfabeto o direito de escolher o representante, não poderia lhe negar a faculdade de também ser eleito. A lei brasileira, segundo essa corrente, estaria conferindo ao analfabeto apenas a metade dos direitos políticos, o que seria injusto. Outros entendem que o analfabeto não tem condições de exercer plenamente o cargo porque não sabe ler nem escrever. Ponderação sensata, pois a leitura e a escrita são ferramentas importantes para o esclarecimento necessário à manifestação política.

No entanto, é curioso observar a notória contradição existente no nosso ordenamento jurídico quanto à condição do analfabeto, que não pode ser eleito para cargo político, mas tem reconhecida em lei a capacidade jurídica para todos os atos da vida civil. De fato, o analfabeto adulto pode comprar e vender bens, pagar impostos, alistar-se no serviço militar, alugar imóveis, empregar-se ou contratar empregados, contrair matrimônio e tornar-se pai ou mãe de família. Está submetido à responsabilidade civil e criminal em diversos setores da vida jurídica, sujeito a obrigações cívicas e deveres sociais.

A Consolidação das Leis do Trabalho desde 1943 não retira do analfabeto o direito de votar e de ser votado nas eleições para a formação das diretorias dos sindicatos. Uma das vedações que lhe impõe a legislação, portanto, é a da elegibilidade política. Há, por seu lado, considerável número de interpretações em torno do que seja a alfabetização. Basta dizer que, além dos 14 milhões de analfabetos, 25% das pessoas no Brasil são consideradas analfabetas funcionais, ou seja, são incapazes de interpretar o que leem e de usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas. Significa isso que, aplicada a proibição à letra, considerável parte da população brasileira estaria afastada da possibilidade de se candidatar a cargo político.

Outra questão, tão importante quanto a primeira, é a do sistema de votação proporcional para os cargos legislativos. O deputado Tiririca, com seu milhão de votos, vai levar a tiracolo pelo menos mais três deputados da sua coligação que, sozinhos, não se elegeriam. Com Enéas ocorreu o mesmo: sua enorme votação conseguiu rebocar para a Câmara dos Deputados mais cinco candidatos, sendo que um deles obtivera pouco mais de 300 votos. A figura dos puxadores de voto, como Enéas e Tiririca, é hoje determinante para a composição da Câmara dos Deputados, e os partidos políticos investem na sua cooptação. O resultado é o distanciamento cada vez maior do eleitor e do seu representante: ninguém sabe se, ao escolher determinado candidato, o voto não vai acabar elegendo outra pessoa, muitas vezes nem desejada pelo votante. Imaginem o que ocorrerá nas próximas eleições, com o auxílio de mais alguns bons puxadores de voto. Vamos ter que dizer para o Tiririca: "Pior do que está, fica!"