Título: FMI tenta superar "crise de identidade"
Autor: Romero, Cristiano e Ribeiro, Alex
Fonte: Valor Econômico, 02/03/2007, Finanças, p. C5

Representantes do G20, grupo dos países mais industrializados, reúnem-se hoje e amanhã, no Rio, para debater a crise de identidade do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o novo papel que a instituição deverá ter no futuro. O encontro é importante porque o Fundo tem prazo para aprovar, nas reuniões deste e do próximo ano, mudanças centrais em seu funcionamento. Além disso, pela primeira vez, desde o início, há dez anos, das discussões sobre a reforma da arquitetura financeira internacional, países ricos, preocupados com impactos na economia mundial dos desequilíbrios macroeconômicos da China, são os mais interessados em promover mudanças na forma de atuar do FMI.

"O mundo mudou. Os países emergentes têm hoje importância global, tanto de ponto de vista financeiro, quanto político e econômico", diz o diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, Paulo Vieira da Cunha, que, ao lado do secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Luiz Eduardo Melin, representará o Brasil no encontro do G20. "Estamos chegando a um ponto de inflexão. A discussão era puxada pelos menores. Agora, os grandes é que têm interesse."

Os dois principais temas - e os mais sensíveis do ponto de vista político - que o G20 debaterá são as regras de "surveillance" (monitoramento) dos países-membros pelo FMI e a redefinição das cotas (e, portanto, do poder de voto e influência) das nações pobres e emergentes na instituição. Outros dois tópicos também serão tratados - a substituição da Linha de Crédito Contingente (CCL, na sigla em inglês) pela "Reserve Augmentation Line" (RAL), destinada a socorrer países em crise de liquidez; e o aumento da cooperação técnica entre FMI e Banco Mundial (Bird), com vistas à concessão de auxílio não-financeiro a países-membros.

No caso de "surveillance", está em discussão dar ao FMI o poder de fazer recomendações sobre as políticas cambiais dos países. Hoje isso só acontece de fato quando uma economia está submetida a um programa de socorro financeiro - ou seja, aplica-se apenas aos países pobres ou emergentes. A proposta em discussão é polêmica porque países desenvolvidos, que hoje estão no centro dos grandes desbalanços financeiros globais, também serão atingidos. Pelas atuais regras do Fundo, a instituição pode fazer advertências, mas não pode divulgá-las. O FMI realiza todo ano análises profundas da economia dos países-membros. Os estudos são debatidos pela diretoria executiva, onde têm assento permanente 24 dos 184 países-membros. As conclusões só se tornam públicas se o país analisado autorizar.

Em geral, os governos não permitem que o Fundo revele suas análises ao público, o que acaba tornando sem efeito as recomendações feitas. A idéia é que, com a atualização de seus princípios, o FMI, que hoje não tem poder para obrigar um país a mudar suas políticas sem a assinatura de um acordo de socorro financeiro, passe a divulgar as recomendações de políticas. "A divulgação de recomendações e advertências contribuirá para diminuir os desequilíbrios globais", aposta Vieira da Cunha.

Se for aprovada, a medida provocará uma revolução na maneira como o Fundo se relaciona com os países-membros e também com a comunidade financeira internacional. Para entrar em vigor, a medida precisa da aprovação de 85% dos votos da instituição. Juntos, os 19 países do G20 - o 20º integrante é a União Européia (UE) - têm 64,76% dos votos no FMI, mas não estão computados nesse percentual os países europeus que seguem as deliberações da UE e as nações pobres e em desenvolvimento que apóiam as mudanças em análise, mas não participam do G20.

A chance para que os critérios de "surveillance" mudem são consideráveis, na medida em que os Estados Unidos, o principal acionista do Fundo, têm interesse, por exemplo, em forçar a China a mudar a sua política cambial. Na avaliação dos especialistas, essa política provoca desequilíbrios globais.

O problema é que, sob o ponto de vista da China, a taxa de câmbio valorizada é consequência de desbalanços em fundamentos macroeconômicos dos EUA - alto déficit público, por exemplo. Uma "surveillance" realmente eficaz, portanto, deveria ser mais abrangente. O FMI ainda está discutindo os aspectos de política econômica sobre os quais poderá fazer recomendações. A tendência, pelo andar da carruagem, é que isso se restrinja à política cambial. O assunto está na agenda da reunião de primavera da instituição, agendada para abril, e do encontro anual, em setembro, mas ainda sem prazo para deliberação. No caso da revisão das cotas, o prazo-limite para uma decisão definitiva é a reunião de primavera do Fundo em 2008.

Quando foi criado, em 1945, o FMI, lembra o diretor do BC, foi pensado num mundo em que prevaleciam regimes de câmbio fixo. Seu propósito era justamente garantir que políticas cambiais de um país não provocassem desbalanços e crises globais. Por isso, em suas primeiras décadas de existência, o FMI socorreu também as nações ricas, algo que atualmente só faz em relação aos países pobres e em desenvolvimento que assinam acordos em troca de socorro financeiro.

"Até o Acordo de Plaza (de 1985 e que resultou na desvalorização do dólar para fazer frente aos volumosos déficits comerciais dos EUA), o FMI tinha um papel muito importante na análise econômica e no monitoramento dos desequilíbrios globais", assinala Vieira da Cunha. Nos anos seguintes, principalmente durante as crises financeiras da segunda metade dos anos 90, o Fundo perdeu a capacidade de antever problemas.

A realidade, com a emergência nos últimos anos de economias em desenvolvimento como a chinesa, a indiana, a mexicana, a brasileira e a turca, voltou a alterar de forma significativa o cenário internacional. O FMI deixou de ser um grande emprestador de recursos em última instância. Os mercados financeiros se desenvolveram e se sofisticaram tornaram-se globais, e os países passaram a adotar estratégias de "self-insurance" (auto-proteção) para enfrentar eventuais crises.

O Brasil, por exemplo, mesmo tendo adotado o regime de câmbio flutuante em 1999, o que em tese diminui a exposição a crises no balanço de pagamentos, acumulou US$ 101 bilhões em reservas depois de viver três crises de liquidez em apenas quatro anos (entre 1998 e 2002). A acumulação de reservas virou uma tendência. A China, por exemplo, possui um nível reservas equivalente a quase 10% do PIB americano - US$ 1,070 trilhão.

"O papel do FMI como policial que aparece no momento da crise mudou. Hoje, o FMI está sem recursos até para pagar os salários de seus funcionários", diz Vieira da Cunha. "É hora de repensar a sua função."

O novo mapa econômico mundial já tem produzido mudanças na forma de atuação do Fundo, como atesta Maria Beatriz Costa, assessora sênior do Departamento da Dívida Externa e de Relações Internacionais do BC. Uma inovação já adotada são as consultas multilaterais, para efeitos de "surveillance, a países com importância global e, portanto, sistêmica - casos, por exemplo, de EUA, Japão, Arábia Saudita e China. Agora, o FMI estuda a possibilidade de fazer isso também em caráter regional.

O encontro do G20 tem caráter informal, mas é relevante porque é nele que os ricos e os emergentes definem consensos antes das reuniões oficiais do FMI e do Banco Mundial. Serve também para instruir e subsidiar as reuniões dos titulares do G20 - os ministros da Fazenda e os presidentes dos bancos centrais dos respectivos países. Neste ano, a presidência do G20 está a cargo da África do Sul. O próximo encontro do grupo acontecerá, ainda este mês, em Pretória, um mês antes da reunião do Fundo e do Bird, em Washington.