Título: E assim caminha a humanidade
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 23/02/2007, EU & Fim de Semana, p. 4

Foi no dia de Iemanjá que o mundo percebeu que, a continuar como está, o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. Por cinco minutos, em 2 de fevereiro, as luzes da Torre Eiffel se apagaram, assim como as do Coliseu, em Roma, e as de monumentos em Madri. O blecaute simbólico respaldava o que diziam, em conferência, os maiores estudiosos do clima no mundo: ou se muda o consumo energético global ou as conseqüências serão nefastas.

Não é de hoje que o clima ficou maluco. Para quem perdeu a divulgação dos grandes flashes do quarto relatório do IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (na tradução em português), a história é assim: a temperatura da Terra já subiu 0,76° C. Até o fim do século pode subir 3° C ou alcançar perigosos 4° C. O nível do mar já se elevou em 17 centímetros e deve subir entre 18 e 59 centímetros até 2100. Não precisa decorar os números, todo mundo entende o recado.

O grito de Paris foi contundente e deve ter chegado até a quem estava perdido nas profundezas da Mongólia. Divulgou-se um resumo do relatório do IPCC, um organismo criado pela Organização das Nações Unidas em 1988, formado por mais de 2.500 cientistas de 130 países, e considerado a voz máxima a falar sobre o que está acontecendo e o que pode acontecer com o clima da Terra. "É urgente uma revolução das consciências, da economia e da ação política", disse o anfitrião do evento, o presidente francês Jacques Chirac. "Em face dessa urgência, não é mais hora de meias-medidas. É hora de uma revolução."

Por toda parte, jornais, TVs, rádios e sites noticiaram o temor de mais secas, mais chuvas torrenciais, mais ondas de calor, mais furacões, mais derretimento de geleiras. O efeito disso pode ser um inacreditável contingente de "refugiados do clima", milhões de pessoas tendo de abandonar regiões costeiras inundadas e outros milhões as áreas secas, no reverso do fenômeno. Dependendo de quanto a temperatura da Terra esquentar, milhões correm o risco de ficar sem água ou passar fome. A elevação dos oceanos pode tirar do mapa-múndi pequenas ilhas da Oceania ou ser uma ameaça para Nova York, Londres e Tóquio.

Que o planeta está com febre, já se sabia havia algum tempo. A novidade incontestável que os cientistas chacoalharam em Paris foi que a culpa é nossa. Agora há certeza, de 90%, de que a atividade humana é responsável por este tempo louco. Na edição anterior do relatório do IPCC, em 2001, essa afirmação era apenas "provável". A temperatura da Terra esquenta porque uma capa de gases retém o calor na atmosfera, provocando o efeito de uma estufa sobre a Terra. O fenômeno é natural, o problema é o excesso desses poluentes que a ação humana tem produzido com a queima de combustíveis fósseis - do petróleo ao carvão mineral -, passando pelo desmatamento e pela agricultura. Entre os seis gases responsáveis pelo aquecimento global, o dióxido de carbono, o CO2, é o grande vilão, seguido pelo metano. Os oceanos e as florestas, ralos naturais dessa química, já não dão conta de limpar a casa e o resultado é que o termômetro sobe.

"Não há alternativa: temos, sim, que reduzir as emissões o mais cedo possível e da maneira mais intensa possível" diz o físico Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, um dos três cientistas brasileiros que participaram como autores desta rodada do IPCC. "A tarefa que a humanidade tem pela frente é gigantesca. Em escala planetária, nunca tivemos um problema deste porte", prossegue. "Mas não gosto da abordagem terrorista. A visão derrotista não leva a decisões de saída. O problema, agora, é o que fazer, como, onde e quem paga a conta."

Há 15 anos da Eco-92, a megaconferência que a ONU fez no Rio, o tema saltou do discurso inflamado dos ambientalistas, contaminou governos, transbordou dos trabalhos científicos, alcançou o imaginário coletivo e agora inunda a mídia e chega à mesa dos botequins. Em 2006, não foi um ecoxiita a lotar bilheterias de cinemas do mundo mostrando a verdade inconveniente de ursos polares sobre blocos de gelo que derretem ou cenários apocalípticos de metrópoles que submergem, mas Al Gore, o 45º vice-presidente dos EUA.

No fim de outubro foi a vez do economista-chefe do governo britânico, sir Nicholas Stern, a colocar mais lenha nesta fogueira já quente. No que ficou conhecido como o "Relatório Stern", um estudo de 700 páginas encomendado pelo primeiro-ministro Tony Blair, lê-se a conta do prejuízo: "Usando os resultados de modelos econômicos formais, o estudo estima que, se não agirmos, os custos e riscos das mudanças climáticas serão equivalentes a perder 5% do PIB global a cada ano, agora e para sempre. Se levarmos em consideração o pior cenário de ameaças e impactos, a estimativa dos danos pode chegar a 20% do PIB mundial ou mais." Só as perdas com o furacão Katrina custaram US$ 4 bilhões à economia americana. Mas, prossegue o trabalho, os gastos para reduzir as emissões dos gases-estufa e evitar os piores impactos das mudanças climáticas podem ser limitados a algo em torno a 1% do PIB mundial por ano. Não precisa ter Ph.D. em Harvard para entender a mensagem - custa menos enfrentar o problema agora do que correr atrás da desgraça depois.

Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem ÁGUA: dependendo de quanto a temperatura da Terra esquentar, milhões correm o risco de ficar sem ela ou passar fome; além disso, a elevação dos oceanos pode ser uma ameaça para Nova York, Londres e Tóquio As palavras de Stern tiveram muito mais eco do que correntes habituadas a contestar o peso que o IPCC atribui ao aquecimento global. Uma das mais famosas está organizada em torno do Consenso de Copenhague, uma espécie de fórum-contraponto aos grupos ambientalistas que defendem radicalmente o controle de carbono, criado em 1984 pelo dinamarquês Bjorn Lomborg. O professor universitário de estatística causou polêmica ao lançar, em 2001, "O Ecologista Cético". Seu grupo, que reúne alguns economistas de prestígio, não contesta a gravidade das mudanças climáticas, mas defende que o custo é alto para um resultado pífio e acha mais importante gastar no combate à fome ou à aids.

O debate ganha efervescência em dimensão global. Os políticos já não podem dizer que o tema é bobagem sem perder popularidade. A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, sugeriu ao seu partido, o conservador CDU, que seja mais "verde". Por ali, são as montadoras, agora, que estão no olho do furacão, pressionadas a inventar automóveis menos poluidores. Não basta o governo britânico anunciar a meta de ter pelo menos 5% dos veículos do Reino Unido movidos por biocombustível até 2010 - o próprio Tony Blair, em janeiro, pagou o mico de ser publicamente questionado sobre se reduziria suas viagens de avião ao exterior como exemplo de contribuição à melhoria planetária. No Canadá, país que tem as mais altas emissões de gases do efeito-estufa per capita do mundo, as pesquisas indicam que as próximas eleições serão definidas pelo candidato que tiver a melhor plataforma de combate às mudanças climáticas. Os italianos falam em um plano de produzir um terço da necessidade energética do país por meio de fontes renováveis. A China está comprando cinco usinas nucleares de uma vez para "limpar" sua matriz energética baseada em carvão vegetal. Os 27 membros da União Européia trabalham sobre a proposta de cortar as emissões de gases do efeito estufa em pelo menos 20%, em 2020, em relação aos níveis de 1990. Podem chegar a 30%, se outros países também fizerem a sua parte.

Em outro lado do mundo, Arnold Schwarzenegger demonstra que não quer estender à vida real o papel que o consagrou no cinema. A Califórnia, o Estado governado pelo "exterminador do futuro", divulga a intenção de reduzir emissões em 25% até 2020. Até seu colega de partido, o presidente George W. Bush, corre atrás do inevitável. Em janeiro, no discurso anual no Congresso, quando indica os rumos de sua administração, Bush anunciou que pretende reduzir em 20% o consumo de gasolina nos EUA nos próximos dez anos a partir de opções como etanol e biodiesel. Não que tenha sucumbido a um repentino surto ecológico - os EUA são os maiores emissores de gases-estufa do mundo, mas não assinaram o Protocolo de Kyoto, o tratado internacional que procura equacionar este imbróglio sinistro. "Os EUA são viciados em petróleo, geralmente importado de partes instáveis do mundo", argumentou. Por razões talvez menos sensíveis ao aquecimento planetário e mais calcadas no tal "eixo do mal", Bush pode estar involuntariamente limpando sua biografia - ao menos na perspectiva ambiental.

O que está sobre a mesa internacional, agora, é um esforço de governança mundial do ambiente. Desde 2005 já está sendo negociado o futuro do Protocolo de Kyoto, o chamado pós-2012. O tratado, junto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, um dos frutos da Eco-92, é o mais importante acordo mundial sobre o tema até o momento. Estabeleceu-se o Princípio das Responsabilidades Comuns (todos vivemos no mesmo planeta e todos contribuem para o aquecimento global), porém Diferenciadas (alguns países contribuem com o problema, hoje e historicamente, mais do que outros). A convenção foi fundamental para estabelecer a noção de desenvolvimento sustentável, ou seja, crescer sem causar danos irreparáveis aos recursos naturais. Por ela, os 189 países signatários atribuíram às nações desenvolvidas a maior parte da responsabilidade na luta contra a mudança do clima, e também a maior conta a pagar; os países em desenvolvimento, por sua vez, podem contribuir se apoiados em recursos e tecnologia vindos do outro bloco. A prioridade, aqui, é combater a pobreza.

A convenção estimulava os países a reduzirem as emissões, mas não estabelecia metas. De 1995 e 1997, as partes duelaram em busca de um consenso sobre cortes de emissões e nasceu assim o Protocolo de Kyoto. A meta geral, a ser cumprida pelos países industrializados, é reduzir o veneno em cerca de 5% entre 2008 e 2012, em relação aos níveis de 1990. "Em 1992, menos gente falava de mudanças climáticas e o tom de quem falava era de mais otimismo. As pessoas achavam que dava tempo para prevenir", diz Rubens Born, da ONG Vitae Civilis. "Muita coisa avançou nessa questão ao longo destes anos, mas a velocidade dos avanços é menor do que a dos problemas", lembra Born, um dos mais ativos ambientalistas brasileiros desse processo.

Kyoto foi um bom começo, concordam todos, à exceção dos países fora da regra, como os EUA e a Austrália. O tratado introduziu formas para as nações reduzirem suas emissões. O Brasil protagonizou a criação de uma vedete, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o MDL. Por ele, é possível investir em projetos que contribuam para os passos sustentáveis dos países em desenvolvimento e diminuir, por meio de créditos de carbono, a conta de emissões. No Brasil, os projetos MDL envolvem geração de eletricidade a partir do bagaço de cana, casca de arroz e madeira, passam por pequenas centrais hidrelétricas e eólicas, e aterros sanitários. A China lidera o ranking do mercado mundial, seguida pela Índia. O Brasil está em terceiro e não almeja o topo.

"A possibilidade de redução de emissão no Brasil é menor que a da China e a da Índia porque não emitimos como eles", diz José Domingos Gonzalez Miguez, secretário-executivo da Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A matriz energética brasileira, puxada pelas hidrelétricas, é menos agressiva do ponto de vista do clima. "Se eu sou mais 'limpo', não tenho como reduzir emissão. O crédito de carbono sai daí", explica. Mas a crítica mais contundente ao MDL é o temor de que se fique só nisso, trocando créditos de carbono para cá e para lá, num sistema importante, mas que obviamente não resolve o drama.

Kyoto introduziu novos conceitos, como o de seqüestro de carbono. Numa sociedade que valoriza o individualismo, e paga o preço do consumo exacerbado nas ameaças climáticas, é até gozado que a palavra da moda tenha virado "neutralizar". A última edição do São Paulo Fashion Week foi "neutralizada". A Câmara dos Deputados pretende logo ser "neutra". A missa que o papa Bento XVI celebrará em São Paulo, em maio, será "neutralizada". Entidades especializadas em contabilizar quanto uma atividade emite de CO2 calculam, também, quantas árvores devem ser plantadas para absorver o gás e zerar a conta. Dessa forma, procura-se emitir sem culpa ou faturar em cima do marketing verde.

Há outros buracos neste queijo suíço, gritam os sempre alertas ambientalistas. Os países do Leste Europeu se beneficiaram nessa conta de moléculas poluentes ao viver o colapso de suas economias. Suas emissões caíram, em alguns casos pela metade, sem que fossem feitos esforços em novas tecnologias, mudanças nos padrões de consumo, investimentos em energias alternativas. Nada, enfim, revolucionário ou estrutural. Os ambientalistas soam a corneta quando a Rússia, de repente, se vê com um saldo positivo na conta do aquecimento global. "O artifício ficou conhecido como 'hot air'", afirma Mark Lutes, pesquisador associado do Vitae Civilis. "É trocar papéis por um ar que já está aquecido."

Pelo sim, pelo não, muita coisa andou nesse terreno nos últimos anos, mas não o suficiente para provocar a urgente revolução conclamada por Chirac. Os números do IPCC indicam que os riscos caminham a passos mais largos que os resultados das discussões dos diplomatas, os interesses econômicos e a disposição das pessoas em alterar sua maneira de viver diante de um quadro de fim de mundo que os céticos questionam, os sensatos observam e os radicais exageram. "Estou achando muito preocupante tudo isso", confessa o filósofo e professor da USP Renato Janine Ribeiro. "O aquecimento global é terrível, esta agenda deveria estar presente em tudo. Temos uma inércia do passado que vai elevar a temperatura, e uma inércia do futuro, que vai continuar com o processo, mesmo que se mude a consciência", prossegue. "Não sei se o capitalismo pode corrigir seu lado predatório, o capital nunca se sacia."

Ribeiro lembra um episódio delirante das contradições que surgem no meio deste caos. Tuvalu, o conjunto de ilhotas que pode sumir do mapa se os mares continuarem avançando, e onde vivem 10 mil pessoas, vendeu sua terminação na internet, que é .tv, para uma empresa californiana, por US$ 300 mil. "É muito maluco, ter que vender sua identidade para poder participar dos fóruns internacionais e defender sua sobrevivência. Sorte deles que o domínio não era .tu ou .tl", ironiza. "Mas não é impossível sair disso. A natureza humana muda ao longo da história", torce.

AP FOGO: o fenômeno do efeito estufa é até natural; o problema é o excesso de poluentes que a ação humana tem produzido com a queima de combustíveis fósseis, do petróleo ao carvão mineral Há várias trincheiras para enfrentar o problema. A da consciência individual é trabalho de formiguinhas e segue o mantra dos três "Rs" dos ambientalistas: reduzir, reciclar, reutilizar. "As mudanças climáticas são um assunto muito sério para ficar só entre governo e ambientalistas. A pergunta também deve ser: o que eu posso fazer?", diz Born, do Vitae Civilis. Ele vai relacionando: quando se recicla e se reduz lixo está se diminuindo a pressão sobre a cadeia do uso de combustíveis; a construção civil tem de abraçar o tema, sem encher os prédios de vidro e exigir muito ar-condicionado; os arquitetos podem incluir o ambiente em suas pranchetas e criar obras com mais ventilação e iluminação natural; se urbanistas projetarem calçadas maiores, que abriguem mais árvores, diminuirão as ilhas de calor que se formam nas cidades; shopping centers fechados significam torrentes de luz elétrica; e por aí vai, até chegar às indústrias mais modernas, a transportes públicos mais eficientes e às decisões dos governos de lançarem políticas nacionais de combate ao aquecimento.

Mas a escolha de lâmpadas mais econômicas na bancada do supermercado é só uma ponta, e pequena, dessa cena complexa. O que se fala agora é na necessidade, para ontem, de um "Plano Marshall" ambiental, evocando os esforços de reconstruir o desastre provocado pela Segunda Guerra Mundial. Em um almoço recente, cientistas habituados a estudar as variações dos humores do clima na Terra rascunharam uma conta em guardanapos de papel só para ter uma idéia, mesmo que grosseira, de para onde caminha a humanidade. O resultado foi inquietante. Pelo que reza Kyoto, o grupo de países desenvolvidos, responsável por três quartos das emissões globais, tem de chegar a 2010 com um corte de 5%, o que significa redução na emissão global de 4% em dez anos; mas os indícios científicos apontam para um corte de 50% até 2050, o que resulta em um porcentual de 12% por década. Em outras palavras, o esforço exigido pode ser três vezes maior do que o acordado no protocolo.

Kyoto organizou a situação, mas é inegável que está fazendo água. Enquanto se discute quem tem de fazer o quê, a Espanha avisa que não conseguirá cumprir suas metas e o Canadá faz coro. Os Estados Unidos, de Bush, ainda não colocaram sua assinatura lá, embora alguns Estados americanos corram em paralelo e o país já seja o maior produtor mundial de etanol. A configuração planetária das emissões também se mexe velozmente. Em 1997, quando Kyoto foi desenhado, ninguém chamava China, Índia e Brasil de emergentes. Os três países ainda estão na mesma rubrica que Burundi e Haiti pelas regras do tratado, não têm responsabilidade histórica no aquecimento planetário nem metas a cumprir, mas essa situação já provoca constrangimento. Calcula-se que a China venha a superar os Estados Unidos no ranking dos países poluidores em 2009. E é só uma questão de tempo para que a curva das emissões dos países em desenvolvimento encontre a dos desenvolvidos.

O antigo sonho ambientalista de preservar a natureza mantendo o homem a distância virou um paradigma jurássico. Assim como a posição brasileira defendida na primeira grande conferência ambiental, em 1972, em Estocolmo. Em pleno regime militar, o Brasil defendeu seu "direito de poluir" para crescer. A retórica vexatória ficou para trás, o Brasil é pró-ativo no debate atual, mas ainda causa arrepios alguém questionar que, OK, a responsabilidade histórica do problema é dos outros, mas o presente trouxe novas nuances.

O aquecimento global se agravou no pós-Revolução Industrial, acaba de mostrar o IPCC, e as perspectivas não são boas. Para se ter idéia do que ocorre pelos ares, basta imaginar que um litro de CO2 lançado hoje à atmosfera será meio litro daqui a cem anos; um quarto de litro em 200 anos e continuará ali por muito tempo. O excesso de gases-estufa alterou o Ph dos mares, que já não absorvem como antes. As florestas, outro sumidouro respeitável, têm problemas de desmatamento.

O Brasil defende, não sem razão, que não se trate igualmente os desiguais. Países que têm parcela de sua população ainda não incluída na economia, com questões de saúde, abrigo e educação no cotidiano, não podem ser cobrados pelo ônus do desastre da mesma forma que nações onde a preocupação atual é o bem-estar. Mas o calcanhar-de-aquiles brasileiro, quando sobre a mesa está o aquecimento do planeta, sempre foi a Amazônia. É no desmatamento que está a grande contribuição do país na emissão de gases-estufa.

O país acertou na mosca ao iniciar a promoção de uma política de combustíveis alternativos. A iniciativa começou em tempos nos quais não se falava em clima, mas em choques do petróleo. O Brasil se transformou em um dos líderes da produção de etanol e de biocombustíveis e consagrou o sucesso exponencial dos múltiplos combustíveis na tecnologia dos carros, os chamados motores flex.

Mas a lição de casa brasileira é outra. Em novembro, durante a COP-12, o encontro regular entre as partes que assinam a Convenção do Clima, em Nairóbi, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou que o Brasil reduziu em 52% o desmatamento na Amazônia entre 2005 e 2006. De 2004 para cá, nas contas do MMA, o país deixou de emitir algo como 400 milhões de toneladas de carbono. Marina fez mais: colocou a Amazônia na bandeja, mas do jeitinho brasileiro.

Jogar a floresta dentro do debate da questão climática sempre foi tabu dentro do governo brasileiro, mas agora há outros tons. A proposta brasileira, desenvolvida dentro dos Ministérios do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia, e do Itamaraty, se ancora num dispositivo da Convenção do Clima que prevê que os países em desenvolvimento contribuam para a redução das emissões voluntariamente, mas apoiados por ações e recursos das nações poderosas. A idéia é simples: se países em desenvolvimento com florestas tropicais puderem comprovar que diminuem suas emissões com redução de desmatamento, receberiam incentivos financeiros e tecnológicos. A proposta procura seduzir o tradicional fluxo de capitais que existe para quem quer manter suas florestas em pé. A iniciativa está fora das discussões do protocolo para não inflacionar o mercado de MDLs, que vai muito bem, obrigado. E também porque é delicado gerar créditos por algo que não se fez - no caso, pelo que não se desmatou.

Na mesma reunião de Nairóbi, um grupo de países liderados por Papua-Nova Guiné esboçou iniciativa similar, mas sustentada em algum dispositivo tipo MDL, o que deu menos ibope à iniciativa brasileira. "O ganho está para quem pensa no futuro", observa João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente. "No médio prazo, com menos toneladas de carbono na atmosfera, os países terão que contribuir menos, na hora da revisão de metas." O MMA foi procurado por membros do governo britânico, dos EUA e da Itália preocupados em entender melhor a idéia.

"Uma coisa importante é o seguinte: este debate não é ingênuo, simplista, do tipo quem é mais ou menos culpado. A discussão tem a ver com modelos de desenvolvimento econômico. Não é um debate que apenas soma moléculas de gás carbônico de um país e de outro", diz Capobianco. "Há um movimento crescente de dar ao desmatamento importância relativa maior do que ele tem. Mais de 80% das emissões não vêm da destruição de florestas, é queima de combustíveis fósseis."

Trata-se de um tenso jogo de xadrez em que cada passo tem de ser dado por todos. O ponto nevrálgico é barrar o movimento mundial, que parece andar na contramão. A Agência Internacional de Energia, a IEA, divulgou em Londres um relatório no qual se lê que a demanda global por energia deve crescer 53% até 2030 e mais de 70% desse crescimento virá de países em desenvolvimento. Além disso, a demanda por petróleo cresce a passos largos.

Em um artigo recente, um dos papas da energia solar, Hermann Scheer, membro do parlamento alemão eleito pelo partido social-democrata, expõe alguns mitos sobre as energias alternativas e põe mais fogo no debate dos combustíveis fósseis e da energia nuclear, que voltou a ser lembrada como uma opção "limpa". "No que diz respeito às fontes mundiais de energia, há boas e más notícias. As más? O petróleo acabará. As boas? O petróleo acabará. E não somente ele: cedo ou tarde, todas as energias fósseis terão o mesmo destino - até o urânio que alimenta as centrais nucleares." A Alemanha já colhe os frutos de ter adotado, em 2000, uma lei sobre energias renováveis. Os produtores têm acesso à rede nacional de distribuição e tarifa assegurada por 20 anos, e os custos do incentivo não passam de ? 5, por consumidor, por ano. O esforço garante aumento anual de 3 mil megawatts na capacidade de produção de eletricidade, o novo setor criou 170 mil empregos e a mudança energética diminui as emissões de CO2 em 7 milhões de toneladas adicionais por ano.

Por aqui, no Brasil, a luta tem o slogan de sempre. "É preciso decretar uma moratória na Amazônia para não desmatar mais." A frase não parte de um ambientalista radical, mas do engenheiro agrônomo Enéas Salati, diretor-técnico da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável. O frágil ecossistema amazônico, pressionado pelo desmatamento e pelo aquecimento global, deve revidar no ciclo das chuvas, tanto lá como cá, em latitudes mais ao Sul. O volume de águas dos rios será menor. "Acho que a humanidade vai criar juízo e procurar caminhos", diz Salati. "Temos tecnologia e inteligência para isso."

Ele dá uma pista valiosa: a área desmatada da Amazônia em 30 anos corresponde ao tamanho da França e suspeita-se que ¼ dela nem sequer tem vacas pastando. O agrônomo propõe um amplo projeto de reutilização dessas terras abandonadas tomando o biodiesel como mola mestra. A idéia seria recolonizar, recompor as matas ciliares, recuperar o solo, utilizar tecnologia agrícola avançada e replantar de olho na demanda já existente do programa de biodiesel. Sem monocultura, para não corrigir um erro produzindo outro.

Há mais uma bomba-relógio nesse coquetel explosivo e não está nos cálculos do último relatório do IPCC. A Amazônia armazena em torno de 100 bilhões de toneladas de carbono. Estão lá, nos troncos das árvores, no solo. Com o aquecimento da temperatura, a maior floresta do planeta pode sofrer e liberar carbono para a atmosfera. "Quanto é isso, ninguém sabe, ninguém fez a conta", diz o físico Artaxo. As emissões industriais mundiais são da ordem de 7 bilhões de toneladas ao ano. Ou seja, o que existe de carbono armazenado hoje na Amazônia equivale às emissões do planeta por 30, 40 anos. "Tem muito carbono por ali, que atualmente se recicla. Mas, se a floresta entrar em colapso, vai tudo para a atmosfera. Se for, estamos fritos", diz ele.

Novos rounds do debate estão próximos, assim que os outros dois grupos de especialistas do IPCC divulgarem seus estudos sobre a adaptação, as estratégias de mitigação e os custos dos impactos das mudanças globais. Aí as fronteiras ficarão mais evidentes. "O aquecimento global está dizendo que o planeta tem limite. Nós vivemos no todo e a totalidade não é um conceito filosófico abstrato", diz o antropólogo Roberto DaMatta. "Não dá mais: tem que diminuir o número de automóveis, não precisa comprar uma máquina fotográfica a cada seis meses, não tem que reinventar o i-pod a cada estação", prossegue. "A herança da civilização ocidental não é o toque de Midas, é o toque do lixo. É isso que a gente tem que perceber e criar uma civilização que seja um pouco mais consciente dos limites do consumo." Se o homem vai sair dessa? "A natureza desse animal é que ele tem um instinto de sobrevivência escrito no seu gene, no mundo simbólico, na noção de finitude. Esta é a esperança que eu tenho, e que ela nos leve a uma sociabilidade relativamente planetária."