Título: Fim da agonia pela mutação genética
Autor: Leite, Larissa
Fonte: Correio Braziliense, 26/11/2010, Brasil, p. 13

Fim da agonia pela mutação genética

DIREITOS HUMANOS Variações nos genes de ossos de vítimas da Guerrilha do Araguaia podem ajudar nas identificações

O confronto ocorreu há cerca de 40 anos. Mas, para dezenas de famílias, é como se nunca tivesse terminado. A ideia dos guerrilheiros era combater a ditadura a partir da zona rural do país (mais especificamente, do sul do Pará e do noroeste do Tocantins). Mas o saldo do movimento foi a Guerrilha do Araguaia, que resultou em 84 mortes ¿ sendo 69 guerrilheiros. Grande parte deles não foi enterrada pelos familiares, que até hoje lutam para identificar e enterrar as ossadas, e, com elas, o capítulo de confronto na história do Brasil. Apenas a partir de abril de 2009, o governo se comprometeu a localizar os corpos e, desde então, pelo menos seis ossadas foram encontradas e estão em posse da Universidade de Brasília (UnB). Nos próximos dias, uma identificação genética poderá identificar os restos mortais e devolver, pelo menos a algumas famílias, a dignidade do reconhecimento.

Os corpos estão no Hospital Universitário de Brasília (HUB), com acesso restrito apenas a três pessoas. Entre elas, o ¿fiel depositário¿ Malthus Fonseca Galvão, professor do Departamento de Patologia da UnB e diretor do Instituto Médico Legal (IML) do Distrito Federal. Para o professor, a guarda e a segurança adequadas desse material são essenciais para a possibilidade de identificação das ossadas. ¿As ossadas estão muito destruídas. É preciso um lugar seguro do ponto de vista da climatização e do acesso, por exemplo. A UnB está atuando com toda a sua credibilidade para ser a depositária desses ossos¿, explica. A segurança do material guardado envolve o fechamento das ossadas por três fechaduras tetra, de segredo independente, que estão em posse de três diferentes pessoas.

A guarda das ossadas na UnB ocorreu a partir de um convênio firmado entre a instituição e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Isso porque, antes de ir para a universidade, os restos mortais repousavam em instalações inadequadas na própria secretaria. Também foi a comissão da secretaria que pediu autorização para realizar exames de identificação nos restos mortais. O pedido foi concedido em18 de outubro por decisão da juíza Solange Salgado, da Justiça Federal no DF, ¿pelo fato de referidos restos mortais já terem sido examinados sem sucesso com a aplicação de outros métodos¿.

Segundo Galvão, as ossadas serão identificadas por uma técnica conhecida como SNP (Single Nucleotide Polymorphism). ¿Essa técnica permite identificar pequenas mutações genéticas em pequenos fragmentos. Ela é importante em se tratando do material que temos, que se deteriorou bastante com o tempo¿, explica o professor. A identificação será feita em laboratórios especializados, fora da universidade.

O armazenamento e a identificação dos restos mortais de possíveis desaparecidos políticos só existem atualmente em função do Grupo de Trabalho do Tocantins (GTT), constituído em 2009 pelo Ministério da Defesa. No ano passado, o grupo realizou cinco expedições na região do conflito e, neste ano, foram feitas sete incursões. Atualmente, o grupo está no local, elaborando um relatório final relativo ao trabalho realizado em 2010. O coordenador de campo do GTT, Edmundo Muller, enfatiza que foram dois anos de escavações cuidadosas. ¿O grupo já trabalha há dois anos na localização dessas ossadas, no cumprimento da sentença. Só paramos agora porque, em novembro, começaram as chuvas na região¿, disse. O coordenador afirma que ainda aguarda, da UnB, um plano de trabalho para identificação das ossadas que estão na instituição.

Buscas vão continuar

A procura pelos restos mortais de desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia deverá continuar em 2011. Essa é a previsão do coordenador de campo do Grupo de Trabalho de Tocantins (GTT), Edmundo Muller. ¿Tudo indica que os trabalhos continuam no próximo ano, porque inúmeros pontos de enterro de guerrilheiros que nos foram relatados ainda não foram explorados.¿ Segundo ele, a equipe ainda espera localizar pelo menos outras 12 ossadas no Cemitério de Xambioá (TO). ¿Retiramos um resto mortal do local e expedições anteriores identificaram outros dois guerrilheiros no cemitério¿, completou Muller.

Além de apresentar a sentença inicial para a realização de escavações na busca dos desaparecidos políticos, a juíza Solange Salgada foi pessoalmente ao município Xambioá para examinar a evolução dos trabalhos do GTT. Na ocasião, no fim de outubro, a magistrada ouviu mateiros, guias e colaboradores da região. A localização de restos mortais ocorre, na maioria das vezes, a partir da indicação de moradores da região.

Mas desde os anos 1980, familiares buscam informações perante o Exército. Segundo Edmundo Muller, o Ministério da Defesa pediu formalmente que as três Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) disponibilizassem informações a respeito da Guerrilha do Araguaia e a resposta foi negativa. ¿As três forças disseram que não têm mais nenhum documento sobre o período. Não têm informações¿, relatou Muller. (LL)

RADAR As escavações que resultaram na descoberta das amostras ósseas partem de um processo que se inicia com a aplicação do GPR (um tipo de radar de solo), que tem o objetivo de detectar alvos nos locais apontados pelos colaboradores. Com a identificação dos alvos, começa a fase da escavação por meio de pás e picaretas. A escavação só é feita até a descoberta da existência de uma inumação (sepultamento).

MEMÓRIA Oposição no campo A Guerrilha do Araguaia é considerada a mais importante oposição armada ao regime militar em se tratando de conflitos rurais. Ocorrida no início da década de 1970, a guerrilha levou esse nome por ter sido travada em locais próximos ao Rio Araguaia, na divisa entre os atuais estados do Pará, do Maranhão e de Tocantins. Organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a mobilização tinha o objetivo de enfrentar a ditadura a partir do campo, com o apoio da população. O conflito armado foi deflagrado em abril de 1972, quando o Exército chegou à região à procura dos guerrilheiros. Na época, cerca de 70 militantes do PCdoB moravam na região e trabalhavam como agricultores ou comerciantes. Acredita-se que os guerrilheiros só foram descobertos em função de informações passadas por um militante do partido. Os guerrilheiros resistiram por dois anos. No combate, cerca de 80 pessoas morreram, sendo a maioria militante do partido. A maioria dos corpos nunca foi encontrada e, desde a década de 1980, familiares dos guerrilheiros lutam pelo direito de saber a localização dos restos mortais.