Título: Setor privado desafia protecionismo e move parceria EUA-Brasil no álcool
Autor: Balthazar, Ricardo e Scaramuzzo, Mônica
Fonte: Valor Econômico, 23/02/2007, Agronegócios, p. B12

A resistência dos Estados Unidos em aliviar as barreiras comerciais que blindam sua indústria de etanol ameaça reduzir significativamente o alcance das iniciativas conjuntas que Brasília e Washington planejam adotar em torno do uso do álcool como combustível alternativo à gasolina. Mas, paralelamente e em ritmo frenético, a iniciativa privada dos dois países já trabalha em uma aliança que, incluídos aportes em curso em ambos os mercados e o potencial de outras nações das Américas e do Caribe, poderão resultar em investimentos da ordem de US$ 100 bilhões nos próximos cinco anos.

É verdade que a idéia de criar mecanismos de cooperação entre os dois governos na área ganhou impulso nas últimas semanas, mas é improvável que os primeiros resultados das conversas em andamento justifiquem as expectativas geradas pelo entusiasmo de alguns dos participantes das negociações. "Quem espera maior abertura do mercado americano no curto prazo com essas discussões ficará desapontado", disse ao Valor Brian Dean, diretor-executivo da Comissão Interamericana do Etanol - grupo privado liderado pelo ex-governador da Flórida Jeb Bush, irmão do presidente George W. Bush, e por Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura do Brasil. "Mas muito pode ser feito para facilitar os negócios em curso na região".

Na prática, alguns países latinos-americanos já deram início ao programa de produção de álcool combustível, como Colômbia e Venezuela, com apoio do Brasil. Nessa direção, desde o segundo semestre de 2005 a Petrobras exportou 200 milhões de litros de álcool para impulsionar o programa venezuelano. Outro sinal da força brasileira no ramo são as encomendas feitas à Dedini Indústria de Base, de Piracicaba (SP), que tem em consulta 104 projetos de usinas no exterior, boa parte na América Latina. Segundo José Luiz Olivério, vice-presidente de operação da empresa, três dessas unidades já estão em andamento e três estão em fase final de negociação. No Brasil, a Dedini tem 43 unidades em montagem e 189 em consultas. Boa parte desses projetos tem o apoio do BNDES, que entre 2005 e 2006 liberou cerca de R$ 3,3 bilhões para financiar a construção de usinas, o plantio de cana e a co-geração de energia a partir do bagaço.

Segundo Jose Orive, diretor-executivo da Aica (Azucareros del Istmo Centroamericano), que reúne empresas sucroalcooleiras da região do Caribe, países como Guatemala e Honduras também têm planos para produzir álcool, com o Brasil como modelo.

Para o ex-ministro Roberto Rodrigues, espécie de "embaixador brasileiro do etanol", a união de forças privadas de Brasil e EUA visa fomentar a produção em países com pouca tradição no segmento. Nas Américas, o potencial de produção chega a 200 bilhões de litros. Entre março e abril, Rodrigues, cujas ações contam com a simpatia do Planalto, terá em mãos detalhes sobre cada país da região, em um mapeamento que servirá como guia a investidores interessados - privados, diga-se de passagem.

Foi de olho nessa efervescência que Bush incluiu o etanol na "agenda" e fez do combustível tema central na relação dos EUA com o Brasil. Ele está preocupado com a dependência americana de petróleo, mas sua principal motivação é política. Para Washington, uma estratégia comum para promover o álcool na América Latina ajudará os EUA a recuperar influência na região, isolando lideranças radicais como o presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

"Em Brasília há uma corrente 'romântica' que defende a aproximação com Venezuela e Bolívia. Mas o governo quer estabelecer laços mais estratégicos com os EUA até para neutralizar as ações de Hugo Chávez e Evo Morales", disse ao Valor uma fonte do governo Lula. Nessa linha, a abertura dos EUA ao álcool do Brasil, com a eliminação de tarifas protecionistas, é considerada fundamental. Mas aumentou o prestígio da indústria americana do etanol, e o fim das barreiras, pelo menos no curto prazo, tornou-se tema espinhoso. "Questões tarifárias não estão na mesa", reiterou Greg Manuel, assessor especial para a área de energia da secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, em debate sobre o tema na terça-feira em Washington.

Essa postura, porém, deverá limitar a cooperação entre os governos dos EUA e do Brasil a questões consideradas secundárias, como assistência técnica, pesquisas para o desenvolvimento de tecnologias, levantamentos sobre oportunidades para a produção em outros países e uniformização de padrões técnicos e normas regulatórias. Detalhes não foram definidos, mas Bush e Lula deverão assinar algum compromisso daqui a duas semanas, quando o americano visitará o Brasil e outros quatro países da região. Três semanas depois, os dois presidentes voltarão a se encontrar nos EUA.

Na corrida para estreitar os laços com o Brasil, nos últimos dias funcionários do governo americano consultaram especialistas do setor privado em busca de propostas. Uma idéia que apareceu com freqüência refere-se à criação de reservas estratégicas de etanol, para garantir a oferta do produto nos postos. Do lado dos EUA, a iniciativa é bem vista, uma vez que o país conta com pesados recursos oficiais para viabilizar a criação dos estoques estratégicos. No Brasil, entretanto, a idéia já é discutida há pelo menos cinco anos, mas não há recursos de Brasília para viabilizá-la e muitas usinas ainda preferem defender que o melhor regulador é o "mercado".

O secretário de Energia dos EUA, Samuel Bodman, é simpático aos estoques. Na semana passada, o diretor do departamento de comércio exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Roberto Gianetti da Fonseca, que preside a Ethanol Trading, que exporta álcool, defendeu a mesma proposta num seminário em Washington. Mecanismos para ajudar a financiar o desenvolvimento da indústria nas Américas também chegaram a ser discutidos, mas este nó parece difícil de ser desatado. Uma possibilidade seria usar o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mas há dúvidas sobre sua capacidade de cumprir a tarefa. A instituição atravessa um tumultuado período de reformas e os limites para a sua atuação no setor privado são estreitos.

Apesar de cética quanto aos resultados concretos da aproximação Bush-Lula, as empresas privadas acompanham com interesse o amadurecimento da nova amizade, sobretudo pelo ambiente propício aos negócios que acredita que ela ajuda a estabelecer. "A iniciativa dos dois países criou um clima positivo", afirmou o vice-presidente executivo da seção americana do Conselho Empresarial Brasil-EUA, Mark Smith. Aos olhos do "mercado", Brasil e EUA são os maiores produtores de etanol do mundo (oferta conjunta de quase 40 bilhões de litros), mas ambos têm problemas - ou oportunidades de negócios. Os americanos não conseguem atender sozinhos sua crescente demanda interna, e o Brasil, auto-suficiente, tem de dissipar as dúvidas sobre sua capacidade de exportar grandes volumes de álcool.

Nesse contexto, grupos americanos elevaram a aposta no Brasil e empresas dos dois países passaram a investir na América Central e no Caribe. A americana Cargill e a brasileira Crystalsev são sócias em uma usina de desidratação de álcool em El Salvador. A brasileira Coimex também tem participação em uma destilaria na Jamaica. Ambos os casos se beneficiam do acordo CBI (Caribbean Basin Initiative), que isenta o álcool caribenho de impostos nos EUA. Outro rico manancial.