Título: Competindo com a China
Autor: Lazzarini, Sérgio G.
Fonte: Valor Econômico, 08/02/2007, Opinião, p. A13

Muito se tem discutido sobre os possíveis efeitos negativos para o Brasil da expansão chinesa, com a entrada maciça de produtos manufaturados a baixo custo. Uma questão que naturalmente surge, neste contexto, é simplesmente o que fazer para reagir a este cenário.

O primeiro aspecto a se observar é que, contrário ao senso comum, a expansão chinesa representa, no saldo líquido, um choque positivo ao crescimento da economia brasileira. Em colunas neste jornal, Claudio Haddad e Ilan Goldfajn argumentam que o vigoroso cenário econômico internacional, em grande parte provocado pela expansão chinesa, tem contribuído para uma parcela substancial do nosso próprio crescimento. Fundamentalmente, o crescente apetite chinês por matérias-primas tem mantido os preços das commodities em níveis elevados, logo favorecendo em grande medida nossas exportações. Estes efeitos positivos mais do que compensam os negativos gerados em alguns setores de manufaturados, como calçados e têxteis.

Desta forma, se a expansão chinesa tem beneficiado diversos dos nossos produtos como commodities agrícolas e metais, criando ao mesmo tempo grandes oportunidades para combustíveis substitutos (etanol), a noção de que para competir com a China precisamos fugir de produtos padronizados e "agregar valor" às exportações brasileiras não se sustenta. Por exemplo, recentemente o BNDES sinalizou um maior direcionamento do banco para o apoio às atividades de P&D (pesquisa & desenvolvimento) em setores industriais, como forma a reduzir a dependência em produtos padronizados e intensivos em mão-de-obra.

Embora investimentos em P&D sejam em geral benéficos, o grande risco é que as empresas chinesas têm uma elevada capacidade de absorver tecnologia e imitar produtos. Por exemplo, após a sua entrada na China em parceria com uma empresa estatal, a Embraer se deparou com o lançamento de um jato concorrente ao seu por outra empresa controlada pelo próprio governo. Empresas focadas no design de calçados e roupas da Itália estão tendo dificuldade de evitar a rápida imitação dos seus produtos. Neste sentido, vale notar que a capacidade de absorção tecnológica é diretamente relacionada ao estoque de capital humano nas empresas. Como este estoque é maior na China do que no Brasil (os índices de freqüência escolar, por exemplo, são maiores), é muito difícil que consigamos uma dianteira substantiva unicamente via estímulo a investimentos em P&D.

O que fazer então? Uma recente linha conceitual em estratégia de empresas, denominada "visão baseada em recursos", nos traz algumas respostas. Segundo esta linha, empresas só conseguem sustentar vantagens competitivas se investirem em recursos raros, escassos e difíceis de serem imitados. Neste sentido, não importa se o produto é padronizado ou não, se é commodity ou especialidade com marca; o que importa é a natureza dos recursos empregados em sua produção. Tomemos o exemplo do etanol: apesar de ser um produto padronizado, é muito difícil, até mesmo por restrições de recursos naturais tangíveis (condições climáticas e disponibilidade de solo), que empresas chinesas consigam competir com o Brasil nesta área. O mesmo vale para commodities agrícolas como soja e carnes.

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Empresas podem também empregar recursos intangíveis difíceis de serem copiados. Por exemplo, apesar de muitas mineradoras e siderúrgicas se beneficiarem de um recurso tangível e que apresenta distinta disponibilidade no caso brasileiro (minério de ferro), muitas delas estão investindo em recursos intangíveis relacionados a conhecimento de processos e gestão de pessoas. Estas competências têm contribuído para inovações tecnológicas incrementais e contínua redução de custos. E, dado que são desenvolvidas ao longo do tempo por meio de complexas interações sociais, são também tipicamente difíceis de serem replicadas em outros contextos. Nesta mesma linha, empresas podem criar diversos outros tipos de competências distintivas, incluindo relacionamentos próximos com clientes externos, habilidade de detectar e responder a mudanças de mercado, competências logísticas, e assim por diante.

No caso de setores que se baseiam em recursos não escassos e facilmente imitáveis - tecnologias em domínio público ou replicáveis por "engenharia reversa", mão-de-obra pouco qualificada etc. - a competição com a China deverá ser fatal. Assim, o melhor para o país é que investimentos sejam deslocados para outros setores onde de fato possamos explorar vantagens sustentáveis. Porém, corremos o risco de que aqueles setores ameaçados investirão em recursos valiosos sob a ótica privada, porém danosos sob a ótica pública: estruturas de lobby e conexões políticas, para clamar por mais proteção e linhas de crédito subsidiadas.

Cabe ao governo não sucumbir a tais pressões e acelerar as ações que há muito já precisavam ter sido feitas, tais como reforma trabalhista, reforma tributária e investimentos em infra-estrutura, para desonerar as empresas frente à entrada de produtos importados cada vez mais baratos, assim como amplos investimentos em educação, especialmente no ensino fundamental e médio, para aumentar o estoque de capital humano no Brasil e permitir maior potencial de absorção tecnológica. Vale também avançar na descentralização orçamentária do país para permitir que muitos dos problemas de competitividade locais sejam resolvidos como de fato devem ser: localmente.

Procedendo com esta visão, o deslocamento da demanda mundial trazido pela expansão chinesa, ao invés da grande ameaça alardeada por muitos, no final das contas se transformará em uma grande oportunidade.

Sérgio G. Lazzarini é professor associado e diretor acadêmico do Ibmec São Paulo. E-mail: SergioGL1@isp.edu.br