Título: Economia da Índia ferve e já preocupa
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Fonte: Valor Econômico, 08/02/2007, Especial, p. A14

A economia está fervendo e empresários e investidores estrangeiros estão correndo para Bangalore e Mumbai para aproveitar qualquer oportunidade. A taxa de crescimento anual na Índia poderá bater em dois dígitos em algum momento de 2007, e o país ameaça até crescer mais rápido que a China por pelo menos um trimestre. Mas a economia está tão aquecida que há um grande problema: o ritmo de expansão pode não ser sustentável.

Aparentemente, os números são convincentes. O PIB real indiano cresceu 9,2% nos 12 meses até setembro passado (as estatísticas mais recentes disponíveis). Durante os últimos quatro anos, a Índia registrou uma taxa anual média de crescimento superior a 8%, em comparação com cerca de 6% nas décadas de 80 e 90 - e meros 3,5% durante as três décadas anteriores a 1980, quando políticas intervencionistas seguraram a economia (ver gráfico). A Índia parece colher as recompensas de reformas do início dos anos 90. Tais reformas reduziram muito as barreiras ao comércio e liberaram os mercados de capital. Assim, o comércio de mercadorias e serviços saltou de 17% do PIB em 1990 para 45%.

O crescimento econômico provavelmente permanecerá vigoroso neste ano, puxado por uma expansão acelerada de investimentos e consumo. O plano qüinqüenal do governo até 2011-12 tem uma meta ambiciosa de crescimento médio anual de 9%. A maioria dos economistas indianos espera pelo menos 8% nos próximos cinco anos. Alguns, como Surjit Bhalla, da Oxus Investments, acredita que até mesmo 10% sejam factíveis.

O otimismo é abundante. Os empresários indianos revelaram-se os mais otimistas entre 32 países recentemente pesquisados pela Grant Thornton, uma consultoria com sede Londres - 97% dos entrevistados se disseram otimistas sobre o futuro. Os indianos estão, com justiça, orgulhosos do enorme sucesso mundial de companhias como a Infosys ou da aquisição da Corus pela Tata Steel por US$ 11,3 bilhões. Eles citam novas assinaturas de serviços de telefonia móvel, atualmente registrando uma taxa mensal superior à chinesa, como prova do vigor e modernidade de sua economia. Mas, num exame mais detido, talvez a única coisa que realmente esteja crescendo mais rápido na Índia do que na China seja o otimismo.

Recentes visitantes a Nova Déli foram saudados por uma campanha de outdoors patrocinada pelo "Times of India" anunciando "A Índia está a postos". Mas a postos para o quê? A economia exibe sintomas alarmantes de superaquecimento. Isso implica que a demanda está crescendo em ritmo maior do que a oferta - e por isso o ritmo de crescimento é insustentável. Apesar do barateamento do petróleo, a inflação nos preços de atacado aumentou para 6%, acima dos 5,5% que são o teto fixado pelo Banco da Reserva da Índia (BRI, o BC indiano). A Índia não tem uma taxa unificada de inflação para os preços ao consumidor, mas a média aproximada das taxas em termos do custo de vida dos trabalhadores industriais, de serviços e rurais está acima de 7%. A utilização de capacidade está mais alta do que em qualquer momento na década passada e a forte escassez de mão-de-obra especializada provocou uma disparada dos salários.

O BRI também está preocupado com a explosão do crédito. Os empréstimos bancários a empresas e pessoas físicas cresceu 30% nos últimos 12 meses. Os empréstimos garantidos por imóveis comerciais e residenciais cresceram, respectivamente, 84% e 32%. Os preços dos ativos parecem sugerir uma bolha. Após valorizar mais de quatro vezes nos últimos quatro anos, o mercado acionário indiano é hoje um dos mais caros no mundo emergente, com uma relação preço/lucro superior a 20. Os preços das moradias em muitas grandes cidades mais do que dobraram ao longo dos últimos dois anos.

Contra esse pano de fundo de inchaço, a decisão do BRI sobre os juros, tomada em 31 de janeiro, pareceu tímida. O BC elevou sua taxa de empréstimos no overnight em um quarto de ponto percentual para 7,5%, mas deixou a taxa de recompra (que usa para drenar excessos de liqüidez do sistema bancário) inalterada em 6%. Nos últimos anos, os juros subiram menos do que a inflação e, portanto, caíram, em termos reais.

Os números da inflação provavelmente subestimam o grau de superaquecimento da economia. Numa economia aberta, quando a demanda supera a oferta, é mais provável que isso se traduza num déficit em conta corrente do que em inflação. O déficit indiano aumentou para mais de 3% do PIB nos três meses até setembro - uma enorme inversão, de um superávit de quase 4% no primeiro semestre de 2004. E o verdadeiro descompasso entre a demanda e a oferta domésticas é ainda maior. Yaga Venugopal Reddy, presidente do Banco Central, chamou recentemente a atenção para como o déficit em conta corrente indiano é maior, quando se exclui o dinheiro enviado para casa por indianos no exterior. Essas remessas não refletem a demanda ou oferta domésticas, assemelhando-se mais a um afluxo de capital. Desconsiderando as remessas de dinheiro por trabalhadores, o déficit indiano está perto de 5% do PIB (ver gráfico) - maior que o déficit equivalente durante a crise na balança de pagamentos no início dos anos 90.

O risco de uma crise financeira é pequeno, porque a Índia tem um colchão de US$ 180 bilhões de reservas em moeda estrangeira, equivalente a 11 meses de importações, e sua dívida externa é pequena. Mas isso significa ignorar o problema. A razão para preocupações ante o crescente déficit em conta corrente não está em que ele aponte para uma crise financeira, mas que sinalize como a oferta não têm condições de se manter com uma demanda aquecida.

Além disso, diversamente da China e da maioria das outras economias asiáticas emergentes, a India é muito dependente de entradas de capital aplicadas em carteiras de curto prazo, e não de investimento direto externo (IDE), tipicamente de mais longo prazo. Capitais de curto prazo têm respondido por 80% dos afluxos de capital para a Índia nos últimos três anos e meio - embora, encorajadoramente, o IDE tenha, de fato, registrado um forte aumento no ano passado. Isso significa que a Índia é vulnerável a um aumento dos juros, se houver uma sensível inversão no apetite por riscos nos mercados financeiros mundiais.

Com que velocidade pode a Índia crescer? A maioria dos métodos padrão usados para estimar a taxa de crescimento tendencial (ou potencial, isto é, o máximo ao qual uma economia pode expandir sem desencadear uma alta da inflação) apontam para números em torno de 7%. Mas empresários, investidores e um número excepcionalmente grande de economistas estão convencidos de que a Índia está passando por uma "mudança de paradigma" e, por isso, o exame de dados históricos é agora irrelevante para sondar o crescimento futuro.

A capacidade de crescimento da Índia certamente aumentou, ao longo da década passada, graças a reformas anteriores. Mas em vista dos sinais generalizados de que a Índia já está ultrapassando seu limite de velocidade, há um grande risco de que, se a economia continuar a crescer a 9% ou mais, não parará de crescer. A inflação subirá e os desequilíbrios financeiros se ampliarão, criando o risco de um pouso brusco. A Índia não tem um BC efetivamente independente com autonomia para pisar no freio. E as autoridades monetárias estão compreensivelmente relutantes em esfriar a demanda num momento em que a Índia necessita de crescimento para criar empregos e reduzir a pobreza.

Uma alternativa a esfriar a demanda seria ampliar substancialmente a oferta mediante uma aceleração das reformas e atacar os inúmeros estrangulamentos criados pela infra-estrutura inadequada, péssimos serviços públicos, escassez de mão-de-obra qualificada e legislação trabalhista rígida. Mas melhorias em infra-estrutura e educação não apenas levam tempo como também exigem dinheiro - e as finanças públicas indianas estão longe de saudáveis.

À primeira vista, o governo deu grandes passos para diminuir seu déficit orçamentário. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que o déficit dos governos central e estaduais cairão para 6,2% do PIB no ano fiscal que finda em março, ligeiramente abaixo do estipulado no Orçamento e bem abaixo de um pico de 10% em 2001-02. Parte da redução deve-se a maior prudência fiscal e evasão tributária reduzida, mas reflete também uma retomada cíclica da receita tributária devida a um boom econômico e juros baixos, graças à enxurrada mundial de liqüidez. Se os juros subirem devido ao desinteresse dos investidores por riscos ou se a economia ficar mais lenta, o déficit orçamentário se alargará.

Esse déficit já é uma ameaça perigosamente grande. Chetan Ahya, economista do Morgan Stanley em Mumbai, calcula que itens fora do Orçamento, como subsídios ao petróleo e à eletricidade, somam outro 1,8% do PIB. Com isso, o déficit total resulta mais próximo de 8% do PIB, portanto o maior entre as principais economias emergentes. A Índia também tem a mais alta taxa de dívida pública em relação ao PIB (de 80%, ver tabela 3).

O déficit orçamentário poderá inchar ainda mais nos próximos anos. Generosas isenções tributárias favorecendo exportadores instalados em zonas econômicas especiais poderão comprometer receitas futuras. E a Sexta Comissão Salarial governamental, que deverá publicar seu relatório em abril de 2008, provavelmente determinará um grande aumento nos salários do setor público. O relatório de sua predecessora assinalou o início de uma sensível piora nas finanças públicas; e as novas recomendações serão implementadas em 2009, um ano eleitoral.

Novamente, aqui, a preocupação não é com que a dívida pública desencadeie uma crise financeira. A maior parte da dívida pública é financiada por endividamento doméstico, e não externo, e controles sobre as saídas de capital garantem que os poupadores domésticos comprem bônus do governo. O problema real é que a precária posição fiscal limita seu crescimento futuro por não deixar margem para mais gastos públicos em infra-estrutura, educação e saúde.

Os que apostam no crescimento citam a favorável demografia indiana. A população economicamente ativa continuará a crescer por várias décadas, ao passo que na China esse contingente deverá encolher. Isso, argumenta-se, fará crescer o contingente de trabalhadores, a poupança e o investimento. Além disso, 60% da força de trabalho está engajada em agricultura de baixa produtividade. À medida que os trabalhadores migrarem da agricultura para atividades mais produtivas na indústria e em serviços, o crescimento do PIB será automaticamente impulsionado. Mas isso supõe que todos os recém-chegados ao novo mercado encontrarão empregos. Se essas oportunidades de trabalho não surgirem, é mais provável que o denominado "dividendo demográfico" transforme-se num desastre demográfico. Cerca de 60% do crescimento demográfico acontecerá em cinco Estados pobres e mal governados.

Esse é só um exemplo de como os analistas econômicos tendem a confundir o potencial de longo prazo (o que é factível desde que as melhores políticas sejam postas em prática) com sua taxa de crescimento potencial atual (ou seja, não inflacionária). Inegavelmente, a Índia tem enorme potencial de longo prazo, mas, sem reformas, não as explorará plenamente.

Todos concordam que o maior obstáculo ao crescimento de 9%, ou mais, é a infra-estrutura - especialmente suas péssimas estradas, portos e sistema de energia elétrica. Segundo o Banco Mundial, em média, cada empresa industrial perde anualmente 8% das vendas devido a apagões. A Índia gasta 4% de seu PIB com investimentos em infra-estrutura, em comparação com 9% na China. Em termos absolutos, expressos em dólares, os gastos da China em sua infra-estrutura são sete vezes maiores.

O governo da Índia tem planos ambiciosos para incrementar os gastos totais em infra-estrutura para 8% do PIB nos próximos cinco anos. Isso envolverá aumentos nos gastos governamentais, mas a intenção é de que a maior parte das obras seja financiada por parcerias público privadas. Isso será difícil.

Investidores privados, especialmente estrangeiros, evitarão apostar em sistemas de eletricidade e rodoviários devido à incerteza de retornos razoáveis. Apenas cerca de metade de toda a eletricidade gerada é paga pelos consumidores, porque a energia é desviada e muitas contas de consumo não são pagas. Saumitra Chaudhuri, um assessor econômico na Icra, uma firma de classificação de crédito, argumenta que parcerias público privadas exigem, primeiro, reformas na legislação para proteger os interesses tanto de investidores como de consumidores. Segundo o Banco Mundial, em relatório do ano passado, "quando sistemas entram em colapso, não é suficiente consertar os componentes, mas sim consertar as instituições que consertam os componentes".

Outro obstáculo ao crescimento da indústria de transformação são as leis trabalhistas indianas, entre as mais restritivas no mundo. Empresas com mais de cem pessoas não podem demitir trabalhadores sem permissão governamental, o que desestimula o crescimento. O governo central atual não tem condição de abolir essas leis, porque ele depende do apoio dos partido comunistas. Em tese, os governos estaduais podem aplicar as leis com maior flexibilidade, especialmente nas zonas econômicas especiais, mas é improvável que isso flexibilize os mercados de trabalho de um dia para outro.

Um terceiro grande problema é a péssima qualidade dos serviços públicos - de educação e saúde à distribuição de água. Metade das moradias urbanas não tem água potável dentro de casa; um quarto delas não tem acesso a banheiros, sejam públicos ou privados. Muitos serviços públicos nas cidades pioraram nos últimos anos. Em Bangalore, a água está atualmente disponível durante menos de três horas por dia, em comparação com 20 horas no início da década de 80. Essa pode ser outra razão pela qual trabalhadores não estão migrando das áreas rurais tão rapidamente quanto na China.

E os jovens indianos também não estão preparados para trabalhos mais produtivos nas cidades. A qualidade dos sistema de educação e saúde é péssima. Uma pesquisa realizada em 2003 descobriu que apenas metade dos professores pagos estava efetivamente dando aulas no horário escolar.

Estranhamente, a Índia tem um dos sistemas de saúde mais privatizados do mundo. Os gastos governamentais respondem por apenas 21% dos investimentos totais em saúde. Analogamente, em 8 dos 18 Estados estudados, mais de metade de todas as crianças em áreas urbanas está em escolas particulares. Mas isso não configura um modelo de economia de livre mercado ou o resultado de reformas políticas. As pessoas optam pelo ensino particular apenas devido aos péssimos serviços públicos.

Infelizmente, as perspectivas de mudanças expressivas no futuro próximo parecem pequenas. Com poucas exceções, como a abertura parcial do mercado varejista a investimentos estrangeiros e a privatização dos dois maiores aeroportos, as reformas empacaram desde que o atual governo assumiu o poder em 2004. Apesar dos instintos reformistas de Manmohan Singh, o atual primeiro-ministro, a necessidade de manter a coalizão prevalece sobre o apelo de reformas.

As limitações impostas pela oferta de infra-estrutura, pelas leis trabalhistas e pelos serviços públicos parecem colossais, mas a vasta maioria dos economistas em Nova Déli estima que um crescimento anual de pelo menos 8% é sustentável mesmo sem reformas adicionais (com reformas, eles esperariam 9% ou mais). Um argumento muito comum é que outras economias asiáticas cresceram de 8% a 9% durante longos períodos - então, por que não a Índia? Mas as economias do Leste Asiático investiram bem mais em educação e infra-estrutura do que a Índia hoje.

É possível identificar em alguns círculos uma crença de que agora é um "direito" da Índia crescer os mesmos 10% dos chineses. Até mesmo o ministro das Finanças, Palaniappan Chidambaram, sentiu necessidade de lembrar as pessoas que as atuais taxas de crescimento não são "um presente divino". Nenhum país "merece" crescimento rápido, a menos que ponha em prática as políticas adequadas. O maior perigo do atual otimismo desmedido é que ele fomente complacência em relação à necessidade de reformas. Isso seria uma receita certa para um desaquecimento econômico futuro.

A Índia necessita crescimento mais rápido para criar mais empregos para sua crescente população e para tornar mais fácil reduzir a pobreza. A incômoda verdade é que embora a economia esteja progredindo a passos largos, a maioria das pessoas está avançando milímetros. Embora a classe média escolarizada tenha sido beneficiada por grandes aumentos salariais e um surto no valor de suas moradias e aplicações nas bolsas, 60% da população perto ou abaixo da linha de pobreza ainda não foram beneficiados.

Em termos do comumente utilizado coeficiente Gini, a Índia tem menor desigualdade de renda do que a China ou os EUA. Mas o país tem muito mais pobreza. Cerca de 260 milhões de pessoas continuam vivendo com o equivalente a menos de US$ 1 por dia. A Índia precisa de crescimento rápido. Mas são necessárias melhor infra-estrutura e ensino para dar maior mobilidade aos pobres no meio rural. Assim, melhor infra-estrutura e melhorias nos serviços públicos podem não apenas incrementar o crescimento como também disseminar as recompensas.

Para intensificar o crescimento sustentável, a Índia tem de abrir o caminho para o futuro, em vez de correr o risco de levar sua economia para além de sua velocidade máxima segura. Os indianos estão ansiosos para que a economia dispare como um tigre, em vez de avançar como um paquiderme. Mas poucos animais têm o vigor de um elefante ou podem caminhar tanto num dia - desde que o caminho não esteja obstruído.

(Tradução de Sergio Blum)