Título: Regra deve afetar pouco as relações de trabalho
Autor: Basile, Juliano
Fonte: Valor Econômico, 15/02/2007, Brasil, p. A8

A medida que desautoriza os auditores fiscais de definirem a existência de vínculo empregatício entre empresa e contratado, incluída no projeto da Super Receita pelo Senado e aprovada pela Câmara dos Deputados, não coloca em xeque a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nem deve desestimular diretamente a contratação por carteira assinada. Jogar essa decisão à Justiça do Trabalho, porém, como garante a Constituição, deverá aumentar o volume de processos parados à espera de julgamento e diminuir a arrecadação do governo federal, segundo economistas, consultores e advogados consultados pelo Valor.

Atualmente, o pagamento de multas resultantes do trabalho dos auditores fiscais não induz à contratação posterior dos funcionários em situação irregular, segundo Karla Bernardo, responsável pela área trabalhista da Pactum Consultoria Tributária. Karla explica que o mais comum é as empresas serem autuadas e pagarem apenas 50% da multa por desistirem de recorrer contra a decisão dos auditores. Depois desse pagamento não há nada que garanta ao trabalhador a regularização do contrato.

O maior argumento das empresas é que os auditores fiscais têm assumido um papel que compete à Justiça do Trabalho. Pela Constituição Federal, a única autoridade que pode julgar a existência ou não de vínculo empregatício é o juiz do trabalho. "Quando o auditor autua uma empresa por pagar um empregado como profissional autônomo ou pessoa jurídica, ele cobra a diferença de até no máximo 28% da contribuição não realizada, mas não aborda os direitos trabalhistas não garantidos", explica Fábio Medeiros, advogado do escritório Machado Associados.

Apesar disso, o consultor sindical João Guilherme Vargas Neto considera que a medida deve contribuir para o processo de terceirização das relações de trabalho ao retirar mais um obstáculo para essa prática. "A fiscalização dos auditores era um inibidor, e a medida empurra as condições de trabalho na direção de maior precarização."

Marcel Cordeiro, do Pompeu, Longo, Kignel & Cipullo Advogados, avalia que como atualmente a Receita já não tem poder para impor a contratação de um trabalhador, a medida prevista na criação da Super Receita não implicará em flexibilização das relações de trabalho. "Mesmo que ela traga mais atribuições à Justiça do Trabalho, a mudança é positiva, porque ela é a instituição competente para isso."

Fábiola Marques, sócia do Abud Marques Advogados Associados, também aplaude a medida e diz que "aqui no Brasil partimos da premissa de que todos agem de má fé. E se pensa que se a pessoa está contratada como prestadora de serviços, então é certo que a empresa comete uma fraude". Fabíola acredita que cada caso tem que ser analisado com cuidado. "Não são todas as pessoas jurídicas que não são realmente prestadoras de serviço." Mas ela lembra que os empregados que se sentirem lesados terão de procurar a Justiça do Trabalho. "Sua função não é fiscalizar, é resolver o conflito quando provocada", explica a advogada.

Medeiros diz que a fiscalização da prestação de serviços cabe aos sindicatos e ao Ministério Público do Trabalho. "A Justiça do Trabalho tem que ser notificada pelo empregado que se sentir prejudicado, e os sindicatos têm uma atuação forte nesse sentido. Se já existe um caminho jurídico certo para isso, ele tem que ser seguido." Mas ele avalia que, na prática, o processo de condenação de empresas fraudadoras será mais demorado.

Caso essa medida não seja vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as empresas serão as maiores beneficiadas, segundo os especialistas. Karla diz que os únicos perdedores serão os cofres da União, que terão a arrecadação reduzida. "Para o trabalhador, pouca coisa muda."

Nesse sentido, Vargas Neto considera que a medida é contrária ao espírito geral da Super Receita. "A idéia é aumentar o controle do Estado sobre o pagamento de impostos e a medida limita a atuação dos auditores fiscais e reduz a arrecadação", diz.

Uma forma mais eficiente e justa de desonerar a contratação de mão-de-obra pela CLT, segundo Vargas Neto, seria transferir a tributação da folha de pagamento para o faturamento das empresas. "Quando alguém aceita ser contratado como pessoa jurídica para um trabalho que é de vínculo empregatício, o que é economizado no pagamento de tributos fica apenas com a empresa", diz.

O professor de economia da USP e especialista em mercado de trabalho, Helio Zylberstajn, também acredita que a definição do vínculo pela Receita é uma ilegalidade, mas pondera que ele acaba por ser uma forma de fiscalizar essas contratações irregulares. "O que esse tema deixa claro é que precisamos urgentemente de uma reforma trabalhista". Para ele, há casos em que os trabalhadores podem trabalhar como prestadores de serviços e abrirem mão da Justiça do Trabalho. "E se um jogador de futebol, um artista de televisão ou um executivo optar por esse tipo de contratação? Hoje, pela nossas leis, as empresas que os contratam serão autuadas."

Marcio Pochmann, economista da Unicamp, não defende uma flexibilização da legislação, mas entende que a Receita não pode se sobrepor à Justiça do Trabalho. "O que os fiscais da Receita entendem da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de subordinação, habitualidade e impessoalidade?", questiona, mencionando alguns dos aspectos que comprovam vínculo com o empregador. Para ele, a integração entre as receitas Federal e Previdenciária e a Justiça do Trabalho é positiva, mas cada uma precisa ter atribuições definidas.

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