Título: Desconfianças secretas
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 30/11/2010, Mundo, p. 20

Documentos vazados pelo site Wikileaks expõem dissonâncias entre Brasil e Estados Unidos sobre a presença e a atuação de terroristas na região. Polícias e órgãos de inteligência cooperam na vigilância

A publicação de mais de 250 mil documentos do governo americano pelo site Wikileaks, que despiu a diplomacia dos Estados Unidos diante de todo o mundo, respingou também nas relações com o Brasil. Em apenas seis telegramas originados nas representações americanas no país e divulgados na íntegra pelo site, fica evidente a preocupação de Washington com a postura do governo brasileiro em relação à ameaça terrorista, em seu território e na região. Apesar de considerarem ¿eficaz¿ o trabalho de órgãos como a Polícia Federal, os relatórios da embaixada em Brasília e do consulado de São Paulo ressaltam a relutância do governo Lula em reconhecer a presença de terroristas no país, bem como de classificar como tal grupos como o Hezbollah e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Isso seria explicado pelo fato de o governo estar, em grande parte, ¿abarrotado de militantes de esquerda que foram objeto da ditadura militar¿, e que dificilmente vão reprimir a ¿violência politicamente motivada¿.

No governo brasileiro, a reação foi a de não causar ainda mais barulho sobre os documentos. Ao contrário do vizinho Paraguai, que logo anunciou ter convocado a embaixadora americana para esclarecer o conteúdo das comunicações, o Itamaraty preferiu não comentar as mensagens do Departamento de Estado. Há, no entanto, a expectativa de que os detalhes publicados azedem ainda mais a relação bilateral, que se tornou menos harmônica nos dois últimos anos do governo Lula. E pode contribuir ainda para que a presidente eleita Dilma Rousseff desista de visitar Washington antes da posse. Hoje, o chanceler Celso Amorim chega à capital americana para receber um prêmio da revista Foreign Policy e participar de um debate sobre potências emergentes, no Carnegie Endowment for International Peace. Não há previsão de encontro com integrantes do governo Obama.

Nos documentos divulgados, o Ministério das Relações Exteriores foi citado diversas vezes como uma voz dissonante de Washington. Segundo Clifford Sobel, embaixador americano no Brasil até 2009, a ¿sensibilidade extrema¿ do Itamaraty em admitir publicamente a presença de terroristas no país teria resultado em divergências explícitas. ¿Nas conferências (entre Brasil, Paraguai, Argentina e EUA), as delegações brasileiras muitas vezes criticam as declarações feitas por autoridades dos EUA, de que a Tríplice Fronteira é um foco de atividades terroristas, e desafiam os participantes americanos a apresentar as provas que embasam essas declarações¿, diz Sobel em um telegrama de janeiro de 2008, classificado como secreto.

Preocupações Sobel pondera, no entanto, que a preocupação dos mais altos níveis do governo brasileiro é evitar a ¿estigmatização¿ da comunidade muçulmana do Brasil, assim como prejuízos para a região turística de Foz do Iguaçu. ¿É também uma postura pública destinada a evitar a estreita ligação com o que é visto como uma excessivamente agressiva guerra americana contra o terrorismo¿, observa. A Polícia Federal brasileira também teria, com frequência, prendido pessoas ligadas ao terrorismo, que no entanto foram acusado de uma ¿variedade de crimes¿, para evitar chamar a atenção da imprensa e dos altos escalões do governo, de acordo com o embaixador Sobel.

No mesmo documento, fica claro que a principal preocupação do governo brasileiro e da missão americana aqui é ¿a presença e as atividades¿ de indivíduos ligados com terrorismo, inclusive o grupo libanês Hezbollah, em São Paulo. O estado seria observado com mais atenção que a própria Tríplice Fronteira. A embaixada dos EUA em Brasília não quis comentar a divulgação dos telegramas, deixando a ¿resposta¿ para a secretária de Estado, Hillary Clinton, que condenou a publicação dos mais de 250 mil documentos em Washington.

Brasil na boca de Ahmadinejad Entre os documentos reveladores que vazaram pelo Wikileaks, um contém o relato de uma conversa em que o presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, cita o Brasil para argumentar com o então colega russo, Vladimir Putin, sobre o programa nuclear do regime islâmico. O comunicado, enviado pouco depois da posse de Barack Obama, explora as perspectivas de entendimento com Moscou e reproduz a descrição da conversa feita pelo chanceler russo, Sergei Lavrov. ¿Putin perguntou a Ahmadinejad, durante um encontro em Teerã alguns anos antes, por que ele havia feito comentários anti-Israel, mas Ahmadinejad não respondeu, e disse apenas que o Irã não estava `fazendo nada diferente do que o Brasil faz na esfera nuclear¿. Putin respondeu que o Brasil não fica no Oriente Médio, enquanto o Irã queria dominar a região e o mundo islâmico¿, contou Lavrov.

Atenção com os latinos

Os documentos da diplomacia americana que têm sido publicados pelo Wikileaks mostram que os Estados Unidos se mantêm vigilantes na América Latina. Uma das grandes preocupações é quanto a como Brasil, Paraguai e Argentina lidam com a segurança na Tríplice Fronteira. Além disso, há a preocupação com a presidente Cristina Kirchner, constantemente chamada de ¿a esposa dirigente¿ e a ¿primeira-dama¿, mesmo quando já havia sucedido o marido.

Segundo o jornal espanhol El Pais, Cristina se lamentou à representação americana por não receber o mesmo tratamento dispensado ao Brasil, tendo em vista que sempre teve uma posição firme em relação ao Irã. No entanto, outras atitudes da presidente argentina teriam desagradado a diplomacia americana, como sua viagem a El Salvador e Washington para interceder pelo presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya. ¿A decisão demonstra a inaptidão dos Kirchner para a política exterior¿, destaca uma mensagem de julho de 2009.

Os documentos também mostram que uma especial curiosidade sobre a presidente, inclusive sua sanidade mental. ¿Que medidas Cristina Kirchner ou seus assessores tomam para ajudá-la a gerenciar o estresse? Ela toma alguma medicação?¿, questiona um documento do Departamento de Estado enviado à embaixada em Buenos Aires.

Segredos revelados

Um resumo do que vazou no WikiLeaks

Total de documentos: 251.288 Telegramas secretos: 15.652 Telegramas confidenciais: 101.748 Sobre relações exteriores: 145.451 Sobre terrorismo: 28.80 País mais citado: Iraque (15.365)