Título: Em nome do pragmatismo
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Fonte: Correio Braziliense, 30/11/2010, Ciência, p. 24

Certos de que um acordo vinculante contra o aquecimento global não é possível no momento, representantes dos 192 países reunidos para a COP-16 tentam avançar em temas como a compensação financeira pela preservação de florestas e o Fundo verde

Um ano depois do fracasso de Copenhague, negociadores de 192 países voltaram às mesas de reunião ontem, em Cancún, para discutir o esboço da próxima conferência climática das Nações Unidas que vai ocorrer em Durban, na África do Sul, em dezembro de 2011. Como já está certo que um acordo vinculante para suceder o Protocolo de Kyoto não sairá do México, a expectativa é que, nas duas próximas semanas, os debates ocorram em torno do Fundo verde, da transferência de tecnologia, e do REDD (leia quadro).

Sem as expectativas da COP-15, que ocorreu no ano passado na Dinamarca, os diplomatas esperam, ao menos, promover avanços, já que um novo fracasso poderá implicar o golpe fatal no processo de negociações das Nações Unidas, que começou no Rio de Janeiro, em 1992. Na opinião de especialistas, depois do vexame de Copenhague ¿ de onde só saíram duas páginas de documento ¿, falhar novamente seria temerário. Organizadores e negociadores estão decididos a obter resultados que, embora não se concretizem em um tratado internacional, obtenham avanços frente à conferência de Durban.

O presidente mexicano, Felipe Calderón, expressou preocupação na abertura do evento. ¿As mudanças climáticas começaram a nos cobrar pelos erros fatais que viemos cometendo contra o meio ambiente¿, afirmou. ¿Elas já são uma realidade e estão tendo gravíssimas consequências para nós e para o planeta¿, disse, referindo-se às dramáticas inundações que devastaram parte do Paquistão e à onda de calor e de incêndios florestais sem precedentes que a Rússia viveu no verão boreal. ¿São fenômenos que afetam mais aos mais pobres e os tornam ainda mais pobres¿, ressaltou.

Para a costarriquenha Christiana Figueres, secretária-executiva da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, Cancún pode avançar em quatro aspectos: ações contra o aquecimento global, transferência de tecnologias limpas dos países ricos para os pobres, criação de um fundo de financiamento das operações de longo prazo e redução das emissões de CO2 atribuídas ao desmatamento. Essa última é uma das questões com mais chances de avançar este ano, através do mecanismo REDD , que prevê a compensação aos países com selva tropical ¿ como Brasil, Indonésia ou os países da bacia do Congo ¿ que renunciem ao corte de suas árvores. ¿Estou convencida de que em 20 anos admiraremos a tapeçaria de políticas que tecemos juntos¿, afirmou, na abertura do evento.

Ricos e pobres No que concerne à política, o tom de cobranças entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento deve continuar. A China avisou que espera ¿transparência¿ no encontro. Em pleno crescimento econômico, país oriental é radicalmente contra a adoção de metas de emissão dos cortes para nações em desenvolvimento, como querem os Estados Unidos.

O chefe da delegação chinesa, Xie Zhenhua, avisou, por meio da agência de notícias Xinhua: ¿As nações ricas devem ser culpadas por suas responsabilidades históricas. Alguns países desenvolvidos tentaram se eximir da responsabilidade de reduzir as emissões e de prover financiamento e ajuda tecnológica aos países em desenvolvimento. Gostaríamos de estender o Protocolo de Kyoto porque achamos que as nações ricas deveriam assumir sua responsabilidade pelo aquecimento global resultante de seus processos de industrialização. Mas os países desenvolvidos tentaram criar um novo tratado e abandonar o princípio de `responsabilidades comuns, mas diferenciadas¿¿¿, afirmou, em um claro recado aos EUA (leia mais ao lado).

O ex-secretário-executivo da conferência, o belga Yvo de Boer, demonstrou preocupação com rusgas políticas. Em entrevista à BBC, ele citou o Brasil e disse que desentendimentos não podem atrapalhar as negociações. ¿Entendo o atual debate de China e Índia (com os países industrializados) sobre os níveis de ambição, tipo de compromisso e como isso deve ser registrado internacionalmente, mas espero que isso não atrapalhe ações concretas, porque a mensagem da comunidade científica é muito urgente e muito forte: o que precisamos agora é de ação. Acho que o Brasil pode nos ajudar nisso¿, afirmou.

A pauta Veja quais são os assuntos sobre os quais os negociadores se debruçarão nas duas semanas de evento:

Compensações Cancún pode tornar efetivo o mecanismo REDD , que consiste em compensar financeiramente os países que reduzirem o desmatamento ou a degradação de suas florestas. A Conferência de Copenhague conseguiu praticamente um acordo, mas falta definir questões complexas, como o financiamento desse ambicioso dispositivo.

Fundo verde Os países industrializados se comprometeram em Copenhague a mobilizar US$ 100 bilhões até 2020 para alimentar o fundo criado, por sugestão do México, para ajudar os países mais pobres a combaterem o aquecimento. No entanto, só 13% dos recursos já estão garntidos e há uma discussão sobre quem vai gerir o dinheiro.

Compromissos Segundo o Acordo de Copenhague, os países industrializados e as nações em desenvolvimento submeteram à Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas seus objetivos e ações em termos de cortes de emissões de CO2 até 2020. Essas promessas não têm caráter vinculativo, e a conferência de Cancún deverá buscar uma fórmula jurídica para fixá-las legalmente. Apesar de tudo, as promessas feitas até agora são insuficientes para limitar a 2ºC a alta da temperatura média do planeta.

Verificação O controle dos esforços realizados para reduzir as emissões de CO2 é um dos temas mais espinhosos da negociação. A China, principal emissor mundial, é particularmente reticente ao controle exterior de seus planos climáticos, um aspecto no qual, entretanto, insiste outro grande emissor, os Estados Unidos.

Protocolo de Kyoto Os países em desenvolvimento se preocupam com a falta de atenção dedicada a um eventual segundo período de compromissos sob o Protocolo de Kyoto, cuja primeira etapa expira no final de 2012. Ante a dificuldade para concluir um novo tratado vinculativo, esses países insistem em conservar o único instrumento legal existente que impõe obrigações cifradas em matéria de emissões de gases de efeito estufa aos países industrializados (com exceção dos Estados Unidos, que nunca o ratificou).

Transferência de tecnologia Trata-se de ajudar os países mais vulneráveis a ter acesso às tecnologias que permitem reduzir as emissões de CO2 (energias renováveis, por exemplo) e adaptar-se aos inevitáveis impactos das mudanças climáticas. Cancún poderia aprovar a criação de um comitê sobre tecnologia, que seria responsável por centralizar e divulgar essa informação.

EUA perdem espaço As mudanças políticas internas dos Estados Unidos enfraqueceram a influência do país nas negociações sobre o clima, enquanto que a China vem avançando. Se, no ano passado, o presidente Barack Obama trabalhou pessoalmente para salvar a convenção em Copenhague, agora a situação está bem diferente. O Partido Democrata de Obama sofreu uma dolorosa derrota nas eleições legislativas de 2 de novembro para o Partido Republicano, que já avisou ser contra um plano nacional para restringir as emissões de dióxido de carbono.

¿Os Estados Unidos têm o poder de uma grande nação, mas sua capacidade de prometer muito mais está bastante limitada pela situação interna¿, disse Alden Meyer, diretor de estratégia e política da União de Cientistas Preocupados. ¿Está bastante claro que, nos próximos anos, não haverá uma legislação geral sobre o clima nos Estados Unidos. O governo precisa ser cuidadoso em relação a como vai agir em Cancún, porque não pode permitir que nenhuma retórica cética em relação ao clima seja alimentada¿, disse Meyer.

No ano passado, Obama foi a Copenhague negociar o acordo que estabeleceu como meta limitar o aquecimento global em 2°C, mas sem explicar como faria isso. Durante a cúpula, a secretária de Estado, Hillary Clinton, prometeu que os Estados Unidos contribuiriam com um fundo internacional de US$ 100 bilhões até 2020 para ajudar os países pobres mais afetados pelas mudanças climáticas.

Além disso, os Estados Unidos e outros países insistiram que a China, maior emissor do mundo de CO2 , concorde em reduzir suas emissões sob um tratado legalmente vinculante, mas poucos esperam que isso ocorra em Cancún. A disputa foi tensa em vários momentos. Em uma reunião em outubro, o chefe das negociações sobre o clima na China, Su Wei, disse que os EUA são como um ¿porco que não se olha no espelho¿ e se acha bonito.

Energia renovável A China não mostrou sinais de que pretende mudar sua postura, contrária a se comprometer a cortar emissões, mas aumentou o investimento em energias renováveis ¿ como a solar e a eólica. Dois estudos recentes descobriram que o investimento chinês em tecnologias verdes já superou o americano. Ailun Yang, chefe de Clima e Energia do Greenpeace no leste asiático, disse que a China está agindo basicamente devido a impulsos internos. Seu uso desenfrenado de carvão está causando sérios problemas ao meio ambiente e os chineses temem por sua segurança energética.

Mas Yang estimou que a China não está disposta a ter um papel mais ativo nas negociações internacionais, apesar do chamado de alerta em Copenhague. ¿A China está tão impressionada quanto, provavelmente, qualquer outro com as mudanças nas expectativas internacionais do país. Mas o governo simplesmente não parece capaz de estar à altura dessas expectativas¿, argumentou.