Título: Assimetria em favor da União desequilibra Federação, diz Haddad
Autor: Agostine, Cristiane ; Cunto, Raphael Di
Fonte: Valor Econômico, 31/10/2012, Política, p. A10

Haddad nega que pedirá tratamento de exceção para a dívida: "Tratarei da especificidade de São Paulo, única na Federação"

Prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad (PT) negociará uma solução para a dívida de São Paulo baseado na convicção de que há uma assimetria a favor da União. "É a primeira vez que um prefeito é eleito com o apoio do presidente desde a redemocratização. Já que a história nos reservou essa oportunidade, trata-se agora de aproveitá-la para recolocar o relacionamento em um novo patamar", diz ao Valor.

Haddad afirma que revisará todos os contratos e licitações do atual prefeito, Gilberto Kassab (PSD), para reduzir custos sem romper o que já foi firmado. Nega, porém, que seja uma retaliação - diz que será uma prática ao longo de todo o mandato. Da transição com Kassab, espera ver equacionados problemas que foram represados no ano eleitoral, como o reajuste da tarifa de ônibus.

O petista minimiza a articulação feita pelo atual prefeito para manter-se influente na Câmara Municipal, mesmo depois de deixar o cargo, e garante que fará governo de coalizão com secretários indicados pelos aliados.

Ex-ministro da Educação, Haddad reconhece-se como representante da nova geração de políticos que ascenderam ao poder recentemente, mas diferencia-se do senador Aécio Neves (PSDB-MG) e do governador de Pernambuco e presidente do PSB, Eduardo Campos. A seguir, a entrevista concedida ao Valor no final da tarde de ontem na sede do PT municipal, no centro de São Paulo.

Valor: Que proposta o senhor levará ao governo federal para renegociar a dívida do município?

Fernando Haddad: Não vou antecipar propostas porque quero que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ouça as minhas considerações. Não quero que saiba pelos jornais. Existe uma assimetria a favor da União, que desequilibra a Federação. O município é que tem que ser o ente protegido, não o contrário. E não é o objetivo da União enriquecer às custas da cidade. Existe uma assimetria óbvia no contrato, que precisa ser corrigida imediatamente. Mas isso, por si, não alivia as contas da prefeitura no curto prazo. O que vai aliviar são as parcerias com a União para o investimento público. Nosso grupo de trabalho com o governo federal não vai discutir só a dívida, mas também um novo padrão de relacionamento. É a primeira vez que um prefeito é eleito com o apoio do presidente desde a redemocratização. Já que a história nos reservou essa oportunidade, trata-se de aproveitá-la para recolocar o relacionamento do município com a União em um novo patamar.

Valor: O senhor pode propor a mudança do indexador da dívida?

Haddad: Posso. Vou ponderar também uma série de considerações, inclusive essa.

Valor: Isso abriria um precedente para a mudança da regra para outros municípios e Estados...

Haddad: Vou tratar da especificidade de São Paulo, que é um caso único na Federação.

Valor: Seria uma exceção só para São Paulo?

Haddad: Não se trata de exceção. Trata-se de reconhecer uma especificidade.

Valor: O governo federal sinalizou com a revisão da dívida para aumentar os investimentos. O senhor já mostrou discordar dessa tese, porque a cidade continuará destinando 13% do orçamento para pagá-la. O que muda então?

Haddad: No médio e longo prazo, vai facilitar. Mas acredito também nas parcerias. Não basta rever o contrato. Temos que promover uma reconciliação efetiva. São Paulo é uma cidade estratégica para o desenvolvimento do país, e é reconhecida como tal pela presidenta Dilma.

Valor: O senhor, em entrevista, disse que poderia contrair empréstimos junto ao Banco Mundial para pagar a dívida. Esse é um caminho?

Haddad: Não me referi a isso especificamente. Fazia referência a outras experiências de repactuação. A negociação com a União começa na semana que vem.

Valor: Como São Paulo vai tomar novos empréstimos estando acima do limite de endividamento?

Haddad: É por isso que eu não quero me adiantar. Vou propor para o ministro Guido. Estamos muito alinhados, trabalhei com o Guido, não vai ter nenhuma dificuldade de revisão.

Valor: A gestão Marta Suplicy, da qual o senhor fez parte na Secretaria de Finanças, não amortizou a dívida e por isso São Paulo paga 9% mais o IGP-DI, e não 6%. Por que deixaram de pagar?

Haddad: Não tinha dinheiro. Simples assim. Você faz um contrato leonino, que foi praticamente imposto ao município, em péssimas condições. Se não fosse um contrato tão ruim não estaria sendo revisto. Atribuo mais ao governo municipal e federal à época. Não foi uma decisão. Decisão você toma quando há recursos.

Valor: Não poderiam ter deixado de investir em outras áreas?

Haddad: Você vai deixar de tirar criança de escola de lata? Tem que ter um pouco de comiseração com a população. Não havia recursos. Não pode deixar de cumprir outros deveres constitucionais. Direito a saúde e educação é constitucional. Você vai responder por improbidade administrativa ao cortar dinheiro de saúde e educação?

Tenho trajetória diferente de Aécio e Eduardo porque não sou neto de político proeminente e fiz longa carreira acadêmica"

Valor: O senhor pretende rever os contratos e licitações?

Haddad: É dever do gestor observar todos os contratos em vigor e explorar a possibilidade de economia. Isso é um dever. Tem que verificar todos os contratos Durante os quatros anos essa será a regra.

Valor: Há margem para renegociar os contratos e reduzir custos?

Haddad: Isso são os técnicos que vão apresentar as possibilidades, a partir da análise criteriosa, caso a caso.

Valor: Os contratos das Organizações Sociais (OSs) terão tratamento especial?

Haddad: Sim, por determinação do Tribunal de Contas do Município, que fez recomendações que ainda não foram observadas. O próximo prefeito tem que dar exemplo, seguir as recomendações do tribunal, sobretudo quando são tão eloquentes em relação à fiscalização e à transparência desses contratos.

Valor: O senhor vai manter os contratos com OSs?

Haddad: Serão mantidos. Em nenhum momento no meu plano de governo se disse o contrário, embora isso tenha sido explorado na campanha. Faz parte do embate eleitoral.

Valor: O senhor disse que o Bilhete Único Mensal e o fim da taxa de inspeção veicular vão valer só a partir de 2014...

Haddad: Eu não disse isso. Quis guardar coerência com resposta que já havia dado para a imprensa. Disse que na pior hipótese, tardaria em um ano. Aí saiu o contrário, uma leitura enviesada. São propostas exequíveis rapidamente. Entendo que logo no primeiro ano de governo possamos equacioná-las. Depende de votação na Câmara.

Valor: O senhor prevê dificuldades na Câmara com o "centrão"?

Haddad: Pode ser. Mas a minha experiência em negociação, no governo federal, foi a melhor possível. Aprovei a maior reforma educacional que se tem notícia. Foram duas emendas constitucionais e mais de 40 projetos de lei aprovados e, curiosamente, todos com apoio da oposição, com uma exceção. Então creio que vamos ter ambiente de diálogo, inclusive com a oposição. Não vejo razão para oposição sistemática. Do mesmo jeito que oferecemos respeito, vamos colher o respeito das oposições.

Valor: O prefeito Kassab articula um bloco na Câmara para tentar manter-se influente mesmo depois de deixar o cargo. Como o senhor vai lidar com isso?

Haddad: O prefeito articulou um grupo na Câmara Federal que não tem causado nenhum constrangimento à presidenta. Não sei por qual motivo causaria constrangimento a mim.

Valor: Não o preocupa o fato de Kassab, que apoiou seu adversário na campanha, ter um grupo maior na Câmara do que o senhor?

Haddad: Em primeiro lugar, não acredito que isso vá acontecer. Em segundo lugar, temos que respeitar as urnas em todos os aspectos, inclusive os vereadores que foram eleitos. Não posso desrespeitar o mandato dos 55 vereadores eleitos. Vou procurar inicialmente todos os partidos da base de sustentação do governo Dilma, sem exceção.

Valor: O senhor reuniu-se com Kassab e com o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Eles serão os seus interlocutores com a oposição?

Haddad: No caso do governador é uma relação que pretendo que seja mais parecida com a que manterei com a presidenta Dilma. O governador sabe de suas responsabilidades com todos os municípios. Disse que já repassou recurso para a prefeitura mais de uma vez, para ajudar a construir creches e que a intenção permanece, independentemente de quem seja o prefeito. No caso de Kassab, trata-se do presidente de um partido importante, que nasceu forte, que tem representação nacional, estadual, municipal. Trata-se de uma outra institucionalidade que tem que ser considerada.

Valor: Qual participação que o PSD terá no seu governo?

Haddad: Não tratamos disso, só da transição.

Valor: Essa aproximação com Alckmin é vista com ressalvas dentro do PT, já que ele é candidato à reeleição em 2014 contra o partido?

Haddad: Ninguém fez ressalvas quando fiz, como ministro da Educação, parcerias com prefeitos e governadores do PSDB. Hoje a crítica felizmente se dá ao contrário, quando a parceria não é realizada. Quando o presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] adquiriu [o banco] Nossa Caixa do governo paulista, injetou R$ 6 bilhões nos cofres estaduais. O governador era [José] Serra, candidato a presidente pela oposição.

A sociedade paulistana é plural, tanto está representada nos partidos quanto transcende essa representação"

Valor: Quais serão os critérios para escolha dos secretários?

Haddad: Anunciei já em janeiro que faria governo de coalização, que divide responsabilidades não só no Legislativo, mas também no Executivo. É um pouco nos moldes como a presidenta Dilma organizou seu governo, e que o presidente Lula fez no seu segundo mandato.

Valor: Como serão divididos os cargos no governo? O PMDB, que apoiou apenas no segundo turno, terá menos espaço que o PCdoB e PSB, que apoiaram desde o início?

Haddad: Não é esse o critério. São Paulo tem um conjunto de forças que precisam ser consideradas. Vamos deixar decantar o processo.

Valor: Há áreas em que o PT não vai abrir mão de fazer indicações, como Saúde, Educação e Finanças?

Haddad: A primeira reunião que vou ter com o PT sobre esse assunto é na segunda-feira. Nunca vi o PT se colocar dessa forma, de áreas que não abre mão. É um diálogo, normal na democracia.

Valor: O senhor pretende fazer escolhas pessoais?

Haddad: Existe a chamada cota pessoal em qualquer governo, o que é também legítimo por parte de quem foi eleito. Realmente não tive tempo para me debruçar sobre nomes.

Valor: O senhor citou que tem bom trânsito no meio acadêmico. Deve ser uma gestão com mais acadêmicos do que as passadas?

Haddad: Não diria isso. A sociedade paulistana é muito plural, ela está representada nos partidos, mas também transcende essa representação. E não existe só o primeiro escalão, há cargos de enorme importância nas empresas públicas, os subsecretários, os conselhos de estatais.

Valor: E quais serão os critérios para a escolha dos subprefeitos?

Haddad: Os critérios serão o mesmo dos secretários, a liderança e competência, mas com o acréscimo de ter raízes na região. Duvido que um subprefeito consiga representar bem um bairro se não tiver raízes ali.

Valor: Vai ouvir recomendação dos vereadores?

Haddad: Recomendações vou ouvir até as tuas (risos)

Valor: Este ano não houve reajuste na tarifa dos ônibus. Haverá um aumento em 2013?

Haddad: Vamos começar a estudar isso semana que vem. Quando eu e o Serra fomos perguntados sobre isso, respondemos que pretendíamos observar a inflação para fins de reajuste de tarifa. Ou seja, não promover nenhum reajuste acima da elevação geral dos custos do sistema. O parâmetro máximo que pode ser observado é esse.

Valor: Um dos primeiros desafios do senhor serão as enchentes de janeiro. O que pretende fazer?

Haddad: Tem o plano de contingência que precisa ser monitorado, sobretudo no momento de transição. Quando há mudança de equipe, precisa monitorar. Vamos acompanhar tudo de perto, a transição se dá em torno de todos os problemas, não só deste.

Valor: O senhor será o prefeito que abrirá a Copa do Mundo. Pretende mudar a condução dos projetos da atual gestão para o evento?

Haddad: Sempre fui otimista em relação à Copa. Minha preocupação é de outra natureza. É com a mudança de patamar cultural da cidade para recepcionar mais turistas. Se os tratarmos bem nesse grande evento, vamos ampliar as possibilidades turísticas de São Paulo. Por isso me preocupo com a preparação de recursos humanos, de ter uma cidade mais bilíngue, mais amigável, com roteiros disponíveis, com as obras de arte, parques, peças de teatro e turismo gastronômico. Quero que o visitante perceba uma cidade diferenciada.

Valor: Quais as mudanças que o senhor fará na reforma urbana?

Haddad: A mudança básica pretendida é aproximar o emprego do morador, portanto, promover o retorno de muitas empresas que deixaram São Paulo em busca de alíquotas menores de ISS e IPTU. Mas para áreas específicas, com infraestrutura e onde já tem empreendimentos, já tem pessoas morando. A proposta é não apenas trazer emprego para São Paulo, mas trazê-lo para o lugar certo.

Valor: O senhor faz parte de uma nova leva de políticos, como o senador Aécio Neves (PSDB) e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB). Como vê essa renovação?

Haddad: O presidente Lula sempre manifestou certa satisfação em ver a "nova safra" de governadores do Nordeste, se referindo à mudança geracional que aconteceu no Ceará, em Pernambuco, no Piauí. Ele também sempre fez referência ao Rio de Janeiro, com a transição para o [governador] Sérgio Cabral [PMDB] e o [prefeito do Rio] Eduardo Paes [PMDB]. Acredito que a minha candidatura, na cabeça do presidente, possa ter sido inspirada por esses eventos. De comum, é isso, a ideia de que tem uma troca de comando, em parte geracional, e que representa ventos novos na política. Mas acho que tenho uma trajetória diferente deles. Primeiro, eles são netos de políticos proeminentes. Não é meu caso. Segundo, fiz carreira acadêmica longa antes de participar da administração pública. Em relação ao Eduardo Campos, vejo maior alinhamento de projeto político e o fato de buscarmos a modernização da administração pública.

Valor: A pulverização das forças partidárias nestas eleições pode prejudicar a reeleição de Dilma?

Haddad: Creio que não. O sistema no Brasil é multipartidário, uma característica da redemocratização brasileira. Nem todo país funciona assim, mas no Brasil, por razões históricas, acabou construindo um sistema diferente, que entendo como muito democrático. Não vejo isso como defeito.

Valor: Na comemoração de sua vitória, militantes pediram para o senhor ficar oito anos e o senhor disse que ficaria. É a sua intenção?

Haddad: Ali foi um momento de celebração com a militância, que teve um papel extraordinário. Não pense que é fácil tirar um candidato de 3% e levar a 56% [dos votos].

Valor: A tese da renovação no PT deve valer também para 2014?

Haddad: Vai depender muito das circunstâncias. Os dirigentes do partido farão um balanço do país, do que aconteceu em São Paulo, e estudarão os encaminhamentos. Não é o momento de antecipar tendências que vão se desdobrar mais para frente.

Valor: Qual o peso que o ex-presidente Lula terá no seu governo?

Haddad: O presidente Lula sempre está disponível para quem deseja colher opinião a respeito de um assunto da política. Assim como a presidenta Dilma o procura para trocar ideias, penso que esse padrão será o mesmo no meu caso. Mas troco ideia com o [presidente municipal do PT, Antonio] Donato com muito mais frequência do que com o presidente Lula.