Título: Uma 'triste' mudança para salvar a Springs
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Fonte: Valor Econômico, 22/03/2007, Especial, p. A20

A fábrica da indústria têxtil Springs foi durante mais de um século um marco em Lancaster, uma pequena cidade no Sul dos Estados Unidos. Nos seus melhores anos, ela chegou a produzir mais de 3,5 mil quilômetros de tecido por semana. Suas duas torres orgulhosas podiam ser observadas de longe até três anos atrás, quando a fábrica foi demolida e elas vieram abaixo.

Não muito longe dali, o interior de uma fábrica que a Springs começou a construir no final da década de 40 está se transformando num ambiente desolador. Galpões enormes que até outro dia eram locais de atividade frenética estão vazios. As máquinas foram desmontadas e despachadas para o Brasil, onde até o fim deste ano deverão ficar prontas para voltar a produzir.

O império fabril que a Springs levou décadas para erguer nos EUA está se desmanchando de forma acelerada. O processo começou há bastante tempo, mas ganhou impulso com a fusão que no ano passado uniu os ativos da companhia americana com os da brasileira Coteminas, criando um gigante chamado Springs Global, maior fabricante de lençóis e toalhas do planeta.

Como resultado da transação, a maior parte da atividade industrial do conglomerado está sendo transferida para fábricas da Coteminas no Brasil, onde os salários são mais baixos que nos EUA e há melhores condições de enfrentar o avanço de competidores como a China. Além de gerar milhares de empregos no Brasil e aumentar o poderio industrial da Coteminas, que tem 13 fábricas no país e na Argentina, a fusão ampliou o mercado para seus produtos no exterior.

A Springs tem tudo para sair lucrando também, mas o impacto inicial da fusão foi devastador para as comunidades em que ela cresceu e para a família que administra a empresa desde que a primeira fábrica foi posta de pé, em 1887. "Tem sido muito duro", diz a presidente da Springs, Crandall Close Bowles. "Mas a fusão criou novas oportunidades para nós e não havia outro jeito de manter a companhia viva."

Desde que a associação foi anunciada, a Springs comunicou o fechamento de quatro fábricas nos EUA e cortes na produção de outras duas. Tudo somado, as mudanças representaram a eliminação de 1,7 mil postos de trabalho até agora. Quando tudo que está planejado for feito, restarão dez fábricas e menos de 5 mil funcionários nos EUA, um quarto do que a empresa chegou a empregar no passado.

Mas a transferência da produção para o Brasil permitirá que os produtos da Springs se tornem mais competitivos, ajudando o grupo a conservar as posições de liderança que detém nos EUA e criando uma plataforma para explorar novos mercados. "A realidade do setor mudou muito e eles sabiam que precisariam se ajustar de alguma forma", afirma o presidente da Coteminas, Josué Gomes da Silva.

O casamento foi consumado em janeiro do ano passado. Embora tenha sido anunciado como uma fusão de iguais e Josué e Crandall tenham o mesmo cargo, como co-presidentes da Springs Global, a Coteminas é o pólo mais forte. Ela tem 61% do capital da nova empresa. A família de Crandall e o Heartland Industrial Partners, um grupo financeiro que entrou na Springs em 2001, ficam com o restante.

Com faturamento previsto de US$ 2,2 bilhões neste ano, a Springs Global calcula ter 7% do mercado mundial de artigos para cama, mesa e banho. Seus produtos são vendidos por algumas das maiores cadeias varejistas dos EUA, como a rede Wal-Mart e as lojas de departamento Target. O mercado americano é responsável por 80% das vendas do grupo.

A fusão representa uma mudança e tanto para a família de Crandall, que começou a plantar algodão quando ainda havia escravos no Sul dos EUA e inaugurou a primeira fábrica 80 anos antes da fundação da Coteminas, que o pai de Gomes da Silva, o vice-presidente José Alencar, começou a construir em 1967.

A Springs chegou a controlar uma enorme variedade de negócios. Na década de 60, o grupo incluía um jornal, um banco, uma seguradora e uma ferrovia. A Springs também estabeleceu vínculos profundos com as comunidades ao seu redor. Um dos maiores hospitais da região onde fica sua sede foi erguido pela família. Seu dinheiro ajudou a construir parques, hotéis, escolas e universidades.

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Agora que as fábricas estão indo embora, muita gente teme pelo que pode acontecer em lugares como Lancaster, onde a taxa de desemprego é o dobro da média nacional e faltam oportunidades de trabalho atraentes para os mais jovens. "Tivemos sorte em ter a Springs tanto tempo por perto, mas nada dura para sempre", afirma o prefeito de Lancaster, Joe Shaw, ele mesmo um ex-funcionário da empresa.

O declínio da companhia acompanhou as transformações que atingiram a indústria têxtil no mundo inteiro. O uso de máquinas mais modernas e a expansão da produção da China criou pressões para redução de custos em toda parte e a competição ficou cada vez mais difícil para empresas como a Springs, onde um operário chega a ganhar dez vezes o que a Coteminas.

Desde 1994, mais de 1 milhão de postos de trabalho foram eliminados pela indústria têxtil e de confecções nos EUA, segundo o Birô de Estatísticas do Trabalho. Mais de 380 fábricas fecharam as portas na última década, de acordo com o Conselho Nacional de Organizações Têxteis (NCTO, na sigla em inglês), principal associação da indústria.

O processo se acelerou bastante no ano passado, com o fim do sistema de cotas que travava o comércio internacional de têxteis, protegendo os produtores menos eficientes em lugares como os Estados Unidos. Um acordo negociado pela indústria e pelos governos dos dois países manteve cotas para alguns produtos fabricados na China, mas foi insuficiente para deter um aumento significativo das importações dos americanos.

As cotas bloqueiam principalmente a entrada de artigos de vestuário e valem até 2008. O acordo deu algum refresco para a indústria americana, mas ela sabe que esse tipo de proteção não é uma solução duradoura para os problemas do setor. "Precisamos de um plano melhor do que simplesmente ganhar tempo", diz o vice-presidente do NCTO, Mike Hubbard.

A Springs saiu-se melhor do que muitos competidores ao enfrentar a turbulência dos últimos anos. A Pillowtex, por muito tempo uma das suas principais rivais no mercado americano, encerrou suas atividades há dois anos. Outro grande fabricante de lençóis e toalhas, a WestPoint Stevens, saiu de um longo processo de recuperação judicial há menos de um ano.

Vários fatores ajudam a explicar por que a Springs continua de pé. A família de Crandall nunca deixou o negócio acumular dívidas, ao contrário do que alguns dos seus concorrentes fizeram. Outra decisão importante foi tomada na década de 80, quando abandonaram o setor de vestuário, onde a competição com os chineses se tornou feroz nos anos seguintes.

A Springs também investiu muito no desenvolvimento de marcas exclusivas e no relacionamento com as grandes cadeias varejistas americanas. "São duas coisas que ajudaram a proteger a empresa e que a China não consegue reproduzir facilmente", diz Fred Abernathy, um especialista na indústria que dá aulas na Universidade Harvard.

A Springs começou cedo a transferir sua produção para fora dos Estados Unidos, abrindo fábricas no México e contratando fornecedores na China. Em 2001, a companhia fechou um acordo comercial com a Coteminas que serviu como um ensaio para o que as duas empresas estão fazendo agora. Nos oito anos anteriores à fusão, a Springs fechou 17 fábricas e eliminou 5 mil postos de trabalho nos Estados Unidos, segundo o NCTO.

A empresa tem procurado preservar uma parte de sua base industrial nos EUA para ter condições de responder rapidamente às necessidades de seus clientes se um produto sumir das prateleiras e precisar ser reposto com agilidade. Isso lhe permite atender em poucos dias a encomendas que demoraria meses para entregar se contasse apenas com fábricas em outros países.

O próximo passo poderá ser a abertura de uma unidade na China. Gomes da Silva foi até o país recentemente para discutir a viabilidade de algum tipo de associação com os fornecedores locais da Springs. Não há nada resolvido, segundo Crandall. Mas desta vez eles não estão apenas atrás de mão-de-obra barata. De olho no aumento do poder aquisitivo dos consumidores chineses, a empresa quer ficar mais perto do promissor mercado asiático.