Título: Empresas temem interferência federal
Autor: Balthazar, Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 27/03/2007, Especial, p. A14

Milhões de americanos correm o risco de perder suas casas e sair arruinados do vendaval que há meses sacode o mercado imobiliário nos Estados Unidos. Para bancos e companhias financeiras que lucraram bilhões de dólares fazendo empréstimos para essas pessoas, a crise fez aparecer outro tipo de problema, o risco de um aumento significativo na interferência do governo nos seus negócios.

O Fed, o banco central americano, e outros órgãos governamentais que exercem funções de supervisão no mercado, querem forçá-los a adotar critérios mais rigorosos na concessão de empréstimos.

Vários governos estaduais decidiram apertar o controle sobre as empresas menores, que atuam longe da vigilância das agências federais. E os políticos no Congresso se preparam para discutir mudanças nas normas que regulam esse setor.

O objetivo dessa movimentação é coibir práticas abusivas que proliferaram no mercado nos últimos anos e ajudar as pessoas que não conseguem mais pagar seus empréstimos. Mas um número crescente de especialistas e participantes do mercado teme o risco de que a intervenção do governo amplifique a crise atual no setor e crie complicações em outras áreas.

"O governo tem uma boa dose de responsabilidade pelo que está acontecendo, mas há um risco enorme de que as coisas piorem se sua resposta for descuidada", disse ao Valor Joshua Rosner, diretor da Graham Fisher & Co., uma firma de consultoria financeira em Nova York. "Mudanças de legislação e normas muito rigorosas podem ser contraproducentes agora."

Uma das idéias em discussão no Congresso prevê a extensão da responsabilidade legal por eventuais irregularidades a investidores como fundos de pensão e seguradoras, que ganham dinheiro negociando títulos emitidos por bancos e companhias hipotecárias com lastro nos empréstimos concedidos para aquisição de imóveis. Hoje, apenas os diretamente responsáveis pelos empréstimos podem ser processados na Justiça.

Muitos especialistas temem que iniciativas como essa afastem os investidores desse mercado e produzam uma reação em cadeia, diminuindo o volume de recursos disponíveis para financiamento imobiliário, atrasando a construção de novas unidades e empurrando a economia americana para uma recessão. Mas a maioria concorda que é preciso fazer alguma coisa para pôr ordem no mercado de hipotecas.

Parte do problema é que os reguladores não se entendem. O alcance do Fed e de outras agências federais é bastante limitado. Mais da metade dos empréstimos para clientes de alto risco que estão no centro da crise atual foram contratados por companhias hipotecárias independentes de grandes bancos e portanto imunes à fiscalização de órgãos federais.

Essas empresas em geral são reguladas apenas por órgãos estaduais, que nem sempre têm gente suficiente para fiscalizá-las. Alguns Estados têm normas mais exigentes que outros. Muitos enfrentaram a oposição do governo federal nos últimos anos quando tentaram fazer valer leis mais exigentes ou estender sua vigilância a instituições fiscalizadas por órgãos federais.

Essa confusão criou um ambiente propício para a criatividade do mercado e abriu caminho para irregularidades. Um volume enorme de empréstimos passou a ser feito sem nenhuma verificação da capacidade de pagamento dos clientes, muitas vezes imigrantes e trabalhadores de baixa renda. De acordo com o banco de investimentos Credit Suisse, a apresentação de documentos de comprovação de renda foi dispensada em 49% das operações contratadas em 2006.

Um de cada cinco empréstimos feitos no ano passado foi liberado sem que fosse exigido o pagamento de uma entrada, como era praxe no mercado até recentemente. A maioria dos contratos previa que as taxas de juros seriam baixas nos primeiros anos do empréstimo e dariam um salto depois de algum tempo, mas nem sempre os consumidores que contrataram esses financiamentos foram avisados disso na assinatura dos papéis.

"O mercado escapou do controle nesses anos", disse ao Valor João Simões, um brasileiro que se estabeleceu há seis anos nos EUA e dirige uma filial da Premier Mortgage Capital, companhia hipotecária sediada no Estado da Flórida. "O nível de exigência caiu tanto e a competição ficou tão acirrada que era difícil aparecer um cliente e a gente não poder fazer nada por ele."

Algumas coisas começaram a mudar na empresa há um mês. A Premier não empresta mais nada sem exigir comprovação de renda e pede no mínimo 5% de sinal para fechar uma operação. Simões também passou a exigir garantias dos corretores autônomos que atuam como intermediários no mercado. Quem quiser negócio com ele precisa garantir que as prestações serão pagas em dia pelo menos durante o primeiro ano do contrato.

Iniciativas como essa têm caráter preventivo, agora que até o governo admite ter relaxado na supervisão do mercado. "Dado o que sabemos hoje, poderíamos ter feito algo mais cedo", disse o diretor da divisão de supervisão bancária do Fed, Roger Cole, numa audiência no Senado há uma semana. Ele revelou que até hoje o Fed só abriu processos para coibir práticas abusivas no mercado de hipotecas em três casos.

Cole sugeriu aos senadores que tomem cuidado para não criar normas tão restritivas que impeçam o desenvolvimento do mercado ou tenham efeitos indesejáveis. Foi o que ocorreu há três anos no Estado da Georgia, que adotou uma legislação rigorosa para responsabilizar investidores e outros participantes do mercado de hipotecas e depois foi forçado a recuar porque as empresas do setor ameaçaram se mudar para outros Estados.