Título: Maltratados direitos fundamentais
Autor: Castro, Márcio Sampaio de
Fonte: Valor Econômico, 27/03/2007, EU & Fim de Semana, p. 12
Desde 1988, quando foi promulgada com o célebre gesto do então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, erguendo-a, a Constituição brasileira reconhece em seu primeiro artigo dois direitos básicos para todos os brasileiros: a cidadania e a dignidade humana. Contudo, transcorridos 18 anos, ainda há grandes espaços vazios entre as intenções e as práticas, principalmente no que se refere aos direitos humanos.
Na semana passada, a ONG Observatório de Direitos Humanos divulgou estudo em que revela violações significativas no Brasil. Segundo a entidade, o maior problema é que "raramente os responsáveis pelos crimes são condenados". Em 2006, o caso mais grave foi o assassinato de 328 pessoas pela polícia de São Paulo durante o primeiro semestre - com aumento de 84% em relação ao mesmo período de 2005. Várias das mortes ocorreram em operações de repressão aos ataques da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). "A polícia respondeu a esses ataques de forma agressiva e, em alguns casos, com força excessiva", diz o relatório.
No Rio, a morte de civis em confrontos com policiais chegou a número maior, de acordo com o levantamento da ONG: 520, no primeiro semestre. O relatório também cita denúncias de tortura na Febem de São Paulo e superpopulação nos presídios. Segundo o Ministério da Justiça, há 371 mil presos nas 120 mil vagas existentes nos presídios brasileiros. Há destaque ainda para casos de trabalho similar à escravidão, encontrado nas fronteiras agrícolas ao sul da floresta amazônica, nos canaviais paulistas, nas carvoarias mineiras e em confecções localizadas no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, onde imigrantes ilegais bolivianos trocam trabalho por comida e moradia. De acordo com a ONG, 38 pessoas morreram em conflitos por disputa de terra.
A divulgação de dados como esses, sobre diferentes formas de violação de princípios inscritos na Constituição, não tem sido suficiente para modificar a percepção generalizada de que a defesa dos direitos humanos está reservada a marginais e delinqüentes juvenis. Para o secretário nacional dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, as dificuldades para a grande maioria da população lidar com a temática remetem a questões históricas.
"Tivemos um longo período de escravidão e, após a abolição, o tratamento dispensado aos pobres não se diferenciou muito do dispensado aos escravos. O bairro mais famoso de Salvador chama-se Pelourinho. Tivemos também no século XX duas ditaduras ferozes. As práticas policiais refletem, ainda hoje, toda esta cultura", diz Vannuchi.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que 1% dos brasileiros detinha 50% da renda, em 2003, enquanto 53 milhões de pessoas viviam com renda per capta mensal de R$ 120. Outro dado recente, divulgado pela Organização dos Estados Ibero-Americanos, indica que, nas duas últimas décadas, a taxa de homicídios entre jovens de 15 a 24 anos quase dobrou, sendo as vítimas preferenciais rapazes negros da periferia das grandes cidades (64,7% dos mortos), freqüentemente assassinados com características de execução.
Vannuchi evoca esses exemplos para explicar algumas motivações que se escondem por trás dos freqüentes desrespeitos aos direitos da pessoa cometidos no Brasil, particularmente a tortura. Ele lembra que, apesar dos avanços, esta ainda é uma prática bastante disseminada no país e que teve no seu combate uma das primeiras bandeiras levantadas pelos ativistas dos direitos humanos, ainda nos tempos da ditadura militar.
Um passo importante para a erradicação da tortura como instrumento de investigação policial foi dado em 19 de dezembro, quando o Senado Federal aprovou o Protocolo Facultativo das Nações Unidas à Convenção Contra a Tortura. Como o país é signatário do documento, o protocolo passa automaticamente a ter força de lei. Uma das conseqüências será a implementação da Comissão Permanente de Combate à Tortura, formada por representantes dos tribunais de justiça e ministérios públicos estaduais, Ordem dos Advogados e outras entidades da sociedade civil ligadas ao assunto. A função da comissão será visitar instituições policiais e judiciárias para orientar e fiscalizar as práticas cotidianas nas delegacias e presídios.
Mas as políticas de direitos humanos têm críticos severos, como o ex-comandante do policiamento metropolitano da Polícia Militar paulista, coronel Ralph Rosário Solimeo. "Há uma confusão entre direitos e deveres. O direito que tenho à vida me obriga a respeitar o direito do outro. O Estado surgiu para garantir os direitos e exigir os deveres. A deturpação da Declaração dos Direitos Humanos tem se batido na defesa daqueles que têm infringido os direitos alheios. Hoje, a cadeia, por exemplo, é vista como um ambiente de ressocialização, mas em primeiro lugar o papel dela é castigar", afirma. "A maioria das comissões de direitos humanos é engajada ideologicamente, é uma releitura do direito sob o prisma do excluído. Existe uma idéia de que a carência justifica o ato."
Para Vannuchi, visões como essa contribuem para distorcer o debate. "É preciso desbloquear o muro do preconceito, de lado a lado. Precisamos compreender que os direitos humanos são para todos. É o direito do deficiente físico ao trabalho. É o combate à homofobia, é a busca da igualdade racial, o fim do trabalho infantil - trata-se, enfim, de todos entendermos que a defesa dos direitos humanos é a defesa do direito pela vida".
O governo tem trabalhado nessa direção, desde 1999, quando começou a pôr em prática o programa "Direitos Humanos, Direitos de Todos", de apoio à formulação de políticas públicas que permitam a garantia dos direitos constitucionais a todos os brasileiros e, conseqüentemente, a consolidação da democracia. Para Maria Luiza Mendonça, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, entidade que publica anualmente o relatório "Direitos Humanos no Brasil", apesar das boas intenções, os avanços têm sido muito lentos nesta área. "O que percebemos neste governo e no anterior é que as medidas adotadas não têm sido suficientes. O governo Lula, por exemplo, divulgou um plano de erradicação do trabalho escravo. Só que até agora não conseguiu montar ações estruturais efetivas."
Maria Luiza reconhece a implementação de medidas pontuais, como a criação do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo. "Um dos problemas é que o grupo esbarra nas questões de sempre: falta de verba, falta de pessoal e falta de apoio logístico. Além disso, o governo não conseguiu ter força política para aprovar no Congresso a emenda constitucional que pune com medidas severas, como a expropriação de terras, quem explora o trabalho escravo. Até aqui faltou coragem", afirma.
Vannuchi compreende as dificuldades. "O Brasil realmente tem essa rotina de violações, que podemos ver todos os dias nos jornais, mas, ao mesmo tempo, se fizermos qualquer comparação com outros países, podemos dizer que o Brasil vem avançando ano a ano, com o surgimento de novas regras, novas leis, que buscam tornar a sociedade mais justa."
A mais recente investida do governo tem se dado no campo cultural. Durante as comemorações do 58º aniversário da Declaração dos Direitos do Homem, dois eventos culturais foram promovidos: um show de grupos musicais nas areias da praia de Copacabana, no Rio, a mostra "Cinema e Direitos na América do Sul", com a curadoria de Amir Labaki, diretor do festival de documentários É Tudo Verdade.
Para Labaki, ações culturais são importantes para transformar as percepções no conjunto da sociedade. "Boa parte das pessoas não reconhece a cobertura que a bandeira dos direitos humanos garante para suas carências e demandas específicas. Felizmente, esta conscientização cresceu nos últimos tempos e a cultura audiovisual, em nossos dias, cumpre um papel essencial neste processo. Esta convicção é a raíz do festival."
Vannuchi faz coro com Labaki. Diz que, ao lado das políticas públicas, ações de conscientização podem ser tão ou até mais eficientes do que medidas punitivas. Ele acredita que manifestações culturais possam constituir um canal importante para se mudar essa visão de que direitos humanos são coisa para bandido. Em sua opinião, mostras de cinema, por exemplo, podem contribuir para que as pessoas passem a ver com naturalidade a existência do homossexual e se conscientizem da necessidade de combater o trabalho infantil. Enfim, são modos de fazer as pessoas perceberem o que acontece à sua volta, e envolvê-las na defesa solidária do direito à vida.