Título: Contrato social atual impede crescimento, diz Samuel Pessôa
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 19/01/2007, Especial, p. A16

O professor Samuel Pessôa, da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), vê o Brasil ainda distante do crescimento sustentado a taxas robustas, na casa de 5%. Para ele, o país deverá continuar a crescer de 2,5% a 3% nos próximos anos, mesmo com a expectativa de continuidade da queda dos juros e de implementação de medidas de desoneração tributária e aumento do investimento público - que devem ser o cerne do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a ser anunciado segunda-feira.

O problema, segundo Pessôa, é que o contrato social vigente no país impede uma expansão mais forte da economia. Fruto do processo de redemocratização, que culminou na Constituição de 1988, ele tem como pontos mais importantes regras generosas para aposentadoria e obtenção de pensões no setor público e no privado e o contrato de trabalho - também generoso - que o governo assina com seus funcionários. "Essas duas peças do contrato social fazem com que, de um lado, haja uma enorme pressão sobre o gasto público e, de outro, uma enorme ineficiência do setor público", afirma. Com despesas do governo em alta, a carga tributária não pára de aumentar, além de sobrar pouco dinheiro para investimento público em infra-estrutura, uma combinação mortal para o crescimento. Ao que tudo indica, Lula não tentará mudar as regras desse contrato social nos próximos quatro anos.

Para Pessôa, Lula pretende dar continuidade à política de distribuir renda sem crescimento expressivo que marcou o primeiro mandato. A questão, porém, é que esse modelo parece estar se esgotando, afirma. Não há mais espaço fiscal para aumentar o salário mínimo e os programas sociais na mesma velocidade dos últimos anos e o choque externo que valorizou o câmbio e barateou a comida não deve ocorrer de novo, avalia o professor. Com isso, a combinação que levou a uma melhora significativa da qualidade de vida dos mais pobres não deve se repetir.

Pessôa também vê com ceticismo a possibilidade de as medidas do PAC aumentarem o ritmo de crescimento da economia. A desoneração tributária a ser anunciada na segunda-feira deve ser modesta, avalia ele, para quem o aumento do investimento público previsto no pacote não terá o impacto desejado sobre a atividade econômica.

A seguir, os principais trechos da entrevista de Pessôa, que assessora o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE):

Valor: O governo deve começar o segundo mandato com um pacote baseado em desoneração tributária e algum aumento do investimento público. Essa estratégia pode acelerar o crescimento?

Samuel Pessôa: Acho que não. Desoneração tributária pode ter um impacto grande, mas se for significativa. O que nós vamos aprender quando o governo Lula lançar o PAC é que não haverá quase nenhuma desoneração. Haverá algum impacto, mas não será intenso nem longo, porque o espaço para desoneração é muito pequeno, devido à necessidade de receitas para fazer frente aos gastos.

Valor: O governo dá sinais de que o Estado terá um peso maior no segundo mandato. Faz sentido apostar no aumento do investimento público como motor do crescimento?

Pessôa: Acelerar o investimento público em infra-estrutura em geral tem um impacto sobre o crescimento. O efeito direto é muito pequeno, mas há impacto porque a infra-estrutura é complementar a outros investimentos. Melhora-se a rede de estradas, de portos, a logística em geral, e isso aumenta a rentabilidade dos outros investimentos. Há impacto permanente sobre o estímulo ao investimento do setor privado. Mas, quando nós pensamos em investimento público, é necessário fazer algumas distinções. Há investimentos em infra-estrutura que são muito importantes do ponto de vista social, mas que não necessariamente têm um impacto grande sobre a rentabilidade do investimento privado no sentido estrito que eu estou falando. Se se aumenta muito o investimento em saneamento, isso tem impacto sobre mortalidade infantil instantaneamente, sobre o meio ambiente, mas não há esse impacto de complementaridade entre logística e uma série de setores de infra-estrutura e a rentabilidade do capital. O governo quer investir mais em saneamento, o que é importante, mas não vai fazer o Brasil crescer 4% ao ano em três, quatro ou cinco anos.

Valor: Como o sr. analisa a decisão do governo de adiar o processo de concessão de várias estradas no Centro-Sul?

Pessôa: Isso é uma tragédia. Seria ótimo dar a concessão dessas estradas para a iniciativa privada, porque isso tem um impacto direto sobre o crescimento. Uma estrutura viária melhor é justamente o tipo de investimento que tem complementaridade com os outros investimentos privados. Isso também desafogaria um pouco o caixa da União para que o governo investisse em estradas no Nordeste, que também são muito importantes e que talvez não se viabilizem na forma de concessão, como o trecho nordeste da BR-116 e o trecho entre Natal e pelo menos até Maceió da BR-101, que é um escândalo não ter sido ainda duplicado. É no mínimo um sinal muito estranho. O governo quer acelerar o crescimento, diz que vai lançar um pacote de medidas em que um dos elementos mais importantes é o investimento em infra-estrutura e recua em medidas que são importantíssimas justamente nessa área.

Valor: O que o sr. espera do segundo governo Lula?

Pessôa: A minha opinião sincera é de que esse PAC é para inglês ver. O governo Lula já jogou a toalha. Ele viu que não vai ter crescimento forte e já aceitou que não vai ter crescimento forte. Eu não ficaria surpreso se Lula já souber que o país não vai crescer, como homem super-inteligente que é, experimentado depois de quatro anos como presidente. A pergunta que nós devemos fazer é: os 60% de votos que Lula teve deram delegação para ele fazer o país crescer? Acho que não. A delegação que Lula tem não é fazer o país crescer 5% ao ano, é manter os termos do primeiro mandato.

Valor: Quais são esses termos?

Pessôa: É manter a política macroeconômica do segundo mandato do governo FHC, com estabilidade preços, superávit primário suficientemente alto para manter as condições de solvência da dívida pública, câmbio flutuante, carga tributária crescente e gasto público crescente. Outra característica foi aumentar a velocidade de crescimento do salário mínimo e de programas sociais como o Bolsa Família. Uma novidade é que, como a inflação está controlada, os juros reais estão em queda. Esse leque de políticas, associado a um choque externo positivo que a economia brasileira sofreu, de mudança de preços de commodities, de valorização do câmbio e suas conseqüências, produziu um crescimento chinês no nível de qualidade de vida dos brasileiros mais pobres, até a classe média baixa. Todo mundo que vive de salário mínimo, de algum programa social ou que na sua cesta de consumo depende muito de comida está muitas vezes melhor que há quatro anos.

Valor: Os juros estão no nível mais baixo em muito tempo e devem continuar a cair. Qual será o impacto sobre a economia?

Pessôa: Há uma pergunta no ar, que divide a opinião dos economistas. Há os que acham que há uma ligação muito forte entre juros e crescimento, avaliando que o baixo crescimento dos últimos anos se deve muito ao nível dos juros. Há outro grupo, ao qual pertenço, que não acha que haja problema de demanda. Para mim, não há sinais de excesso de oferta na economia brasileira, de carência de demanda. Houve um aumento brutal do gasto público no ano passado e isso não gerou muita coisa. A queda dos juros não vai ter um impacto muito grande sobre o crescimento. O problema de crescimento não é falta de demanda, mas falta de expansão da oferta. O ano passado coloca em xeque qualquer análise de carência de demanda. Tudo o que houve de aumento de demanda não teve grande impacto no crescimento medíocre de 2006, que vai ser tão medíocre quanto o do ano anterior. O PIB deve ter crescido 2,7%, se for 2,6% eu não vou ficar surpreso. A economia produz pouco. Para mudar esse quadro no curto prazo, o que dá para fazer é aumentar investimento. No médio prazo, melhorar os marcos regulatórios, de todos os setores. No longo prazo, é melhorar a qualidade da educação fundamental pública.

Valor: Quais os principais entraves a um crescimento mais forte?

-------------------------------------------------------------------------------- O problema de crescimento do Brasil não é falta de demanda, mas falta de expansão da oferta" --------------------------------------------------------------------------------

Pessôa: Um ponto importante é que o contrato social vigente no país impede o crescimento. Houve um processo histórico que vem da redemocratização e diz respeito ao modo como foi negociada a saída dos militares do poder, como a democracia foi construída. A forma como esse processo se deu, que culminou na Constituição de 1988, gerou um novo contrato social entre os cidadãos brasileiros.

Valor: O que define esse contrato social?

Pessôa: É um conjunto de regras que definem como ser elegível a direitos que grupos específicos da sociedade têm sobre uma parcela da renda do setor público. Os dois pontos mais importantes desse contrato social são as regras que permitem às pessoas se aposentarem, tanto no setor público quanto no setor privado - e também a serem elegíveis para pensões -, e o contrato de trabalho que o setor público assina com os funcionários públicos. Essas duas peças do contrato social fazem com que, por um lado, haja uma enorme pressão sobre o gasto público e, por outro, uma enorme ineficiência do setor público. Uma boa parte dessa ineficiência está associada ao tipo de contrato de trabalho que o setor público assina com seus funcionários. Não há demissão, não há diferenças de salários, não há mecanismos para incentivar a produtividade, não há cobrança por produtividade. Quando se analisa o crescimento de longo prazo, o maior problema do Brasil é a baixíssima qualidade das escolas públicas. A questão é que é muito difícil melhorar a qualidade se não se puder assinar um novo contrato de trabalho com os professores. O diretor de uma escola pública é uma rainha da Inglaterra. Ele não pode contratar e não pode demitir.

Valor: Por que o contrato social impede um crescimento mais forte?

Pessôa: Ele implica forte crescimento do gasto público, que requer contínua elevação da carga tributária para financiá-lo. A elevação do gasto desvia recursos púbicos do investimento em infra-estrutura, enquanto a elevação da carga tributária desestimula o investimento privado. Ambos resultam no baixo crescimento.

Valor: Por que o governo foi bem sucedido nas eleições mesmo com um crescimento tão baixo?

Pessôa: Ele foi bem sucedido porque distribuiu renda sem crescer, atendendo à demanda da maior parte dos eleitores. A questão é que não há como dar continuidade a esse padrão. Esse modelo parece estar se esgotando.

Valor: Por quê?

Pessôa: Nós vamos descobrir ao longo do segundo mandato do Lula que o potencial de crescimento da economia brasileira mesmo com juros reais mais baixos é essa mediocridade, de 2,5% a 3%, o que é fruto desse contrato social. Os mais pobres também vão descobrir que não há mais fôlego para esse modelo de melhora da qualidade de vida. O que muitas vezes se esquece é que o grosso da melhora da qualidade de vida não foi o Bolsa Família nem o aumento do salário mínimo. Foi o choque externo que valorizou o câmbio e tornou comida muito mais barata. É uma soma do choque externo, com aumento de preços de commodities, e uma série de progressos técnicos que tem havido nos últimos anos, associada à Embrapa e outras coisas, que baratearam muito o custo da comida no Brasil. O choque externo de commodities não vai se reverter, mas não vai haver um outro. A redução do custo de produção de alimentos no Brasil não vai continuar tão grande nos próximos anos. Há sinais de que não dá para continuar a aumentar o salário mínimo na mesma velocidade que ele aumentou e talvez nem se melhore muito o Bolsa Família.

Valor: Isso é suficiente para o presidente fazer o sucessor?

Pessôa: Eu não sei. Eu gostaria de ouvir o que um analista político diria baseado nesse cenário. Acho que não, porque a clientela dele vai ser menos favorecida. As benesses do primeiro mandato vão estar um pouco mais distantes, incorporadas ao dia a dia. Por outro lado, a sociedade vai começar a se cansar do baixo crescimento. Esse baixo crescimento gera para uma parte grande da sociedade um custo imenso. Isso apareceu nos 40% dos eleitores que votaram no candidato da oposição. O custo é um mercado de trabalho pouco aquecido, com salários estagnados.

Valor: Como o sr. analisa o Bolsa Família, que foi um dos grandes trunfos eleitorais do governo Lula?

Pessôa: O Bolsa Família é um programa bem desenhado e focado em quem precisa. Se houver a expansão do sistema, eles vai começar a atingir pessoas que não são tão pobres. O governo precisa ver onde é bom parar. Seria melhor talvez ampliar o valor do benefício médio, ou fazer o Bolsa Jovem, como eu vi recentemente nos jornais. Isso parece uma boa idéia, desde que vinculada à escola, talvez até com prêmio associado ao desempenho no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem). Um dos aprimoramentos que eu faria no Bolsa Família seria vinculá-lo às escolas e incluir algum adicional por mérito. O governo poderia pagar o básico para todo mundo, mas os melhores alunos poderiam receber um adicional. Hoje ele é meramente assistencialista, porque as contrapartidas não são muito bem controladas, apesar de o assistencialismo ser importante para quem precisa.

Valor: É possível acelerar o crescimento sem mexer nas regras desse contrato social?

Pessôa: Para crescer sem alterar o contrato social vigente, eu daria zero de aumento de salário mínimo, congelaria o Bolsa Família nos termos atuais, e faria o ataque mais rigoroso possível em relação ao gasto público, Além disso, seria importante chamar o Henrique Meirelles (presidente do Banco Central) e o Guido Mantega (ministro da Fazenda) e dizer que o superávit primário seria elevado de 4,25% para 4,75% do PIB por três anos, e que se quer o juro real em 6% em três anos. Haveria então uma coordenação entre a autoridade fiscal e a monetária. A autoridade fiscal entregaria um superávit primário 0,5% do PIB acima do atual, com contenção de gastos, e os juros seriam colocados lá embaixo. Com isso, seria possível acelerar o crescimento para algo como 4% ao ano.

Valor: Há espaço para a queda da carga tributária no curto prazo ou ela vai subir, para financiar o aumento dos gastos correntes?

Pessôa: Acho que ela vai subir. Provavelmente haverá alguma demanda para criar imposto sobre exportações, como faz a Argentina. Esse é o próximo candidato para a rapacidade do setor público, e será mais um peso sobre o setor privado. Mas acho que o imposto será criado, porque alguns setores da sociedade vão ser beneficiados. A Fiesp provavelmente não vai se opor a um imposto sobre exportação de commodities, porque isso ajudaria as indústrias intensivas no fator trabalho, que estão sofrendo muito com a competição da China. O efeito ocorreria sobre o câmbio, porque o país exportaria um pouco menos de commodities, entrariam menos dólares no país e isso desvalorizaria um pouco o câmbio, aumentando a competitividade dos setores que sofrem com a competição dos chineses.

Valor: Em que medida a má qualidade da educação explica o baixo crescimento nos últimos anos?

Pessôa: Eu tenho uma conta que é bastante simples. Eu pego o atraso educacional brasileiro e comparo com a educação americana, e faço a seguinte pergunta: se o Brasil estivesse no mesmo estágio educacional que os EUA em termos quantitativos e qualitativos, quão mais próximos nós estaríamos deles? Sendo bem conservador, 35% da diferença de renda per capita se explica pelo diferencial da educação. Para atacar o problema, a prioridade deveria ser o ensino fundamental, focando na melhora da qualidade da educação.