Título: Mal-estar na Esplanada
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 01/12/2010, Mundo, p. 20

ESCÂNDALO NA DIPLOMACIA Novos telegramas confidenciais divulgados pelo site WikiLeaks levam o embaixador Thomas Shannon ao Itamaraty e motivam telefonema entre ministros. Jobim teria dito que embaixador Samuel Pinheiro Guimarães "odeia os Estados Unidos" Isabel Fleck

A divulgação, pelo site WikiLeaks, de mais cinco telegramas redigidos na Embaixada dos Estados Unidos em Brasília entre o começo de 2008 e o fim de 2009 causou mal-estar na Esplanada dos Ministérios. Nos documentos, o embaixador norte-americano na época, Clifford Sobel, reporta a Washington declarações do ministro da Defesa, Nelson Jobim, de que o atual ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Samuel Pinheiro Guimarães, ¿odeia os Estados Unidos¿ e estaria trabalhando ativamente para atrapalhar o relacionamento entre os dois países, enquanto ainda era secretário-geral do Itamaraty. Sobel relata que o Ministério das Relações Exteriores (MRE) possui uma postura antiamericana e afirma que o chanceler Celso Amorim tem ¿obsessão¿ em obter um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Os relatos levaram o sucessor de Sobel, Thomas Shannon, ao Itamaraty, na manhã de ontem, e obrigaram Jobim a se explicar com Guimarães.

Logo após a segunda rodada de publicação de documentos ¿ até agora foram divulgados 11 dos 1.947 telegramas das representações americanas no Brasil obtidos pelo site ¿, Jobim, que está em visita à Polônia, telefonou para Guimarães e desmentiu as declarações que teria feito a Clifford Sobel em janeiro de 2008. Segundo Jobim, ele conversou, em algum momento, com o embaixador sobre Guimarães, mas tratou o colega de governo ¿com respeito¿ e o classificou como ¿um nacionalista, um homem que ama profundamente o Brasil¿. ¿Se o embaixador disse que Samuel não gosta dos EUA, isso é interpretação do embaixador, eu não disse isso. Samuel é meu amigo¿, afirmou. Fontes próximas a Guimarães amenizaram ao Correio o impacto da divulgação dos documentos. Segundo elas, o ministro, cujo gabinete fica em um dos prédios do Ministério da Defesa, na Esplanada, tem uma relação de trabalho muito próxima com o colega, em projetos como a aplicação da Estratégia Nacional de Defesa.

No início da manhã de ontem, o atual embaixador americano, Thomas Shannon, esteve no Itamaraty para conversar com a subsecretária responsável pela região que inclui os EUA, Vera Lúcia Machado. Na segunda-feira, o Wikileaks já havia divulgado telegramas nos quais seu antecessor na embaixada criticava o modo como o Brasil trata a presença de suspeitos de terrorismo.

Panos quentes Em Washington, onde foi receber um prêmio, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, minimizou as impressões registradas por Sobel sobre uma postura anti-americana do Itamaraty, argumentando que isso já era dito ¿em outros governos¿. Ele fez questão de ressaltar que ¿quem conduzia a política do Itamaraty não era o Samuel¿, ao comentar as declarações do embaixador sobre as posições ideológicas do então número dois da diplomacia brasileira. Para Amorim, a preferência do embaixador Sobel por Jobim se deve ao fato de o ministro da Defesa não ter a difícil incumbência de defender a soberania nacional. ¿O Itamaraty é a linha de frente da defesa da soberania brasileira. Em geral, quando se trata dos temas políticos, (o responsável) é o MRE. Por isso é que todos os governos querem passar por trás do Itamaraty¿, declarou. Segundo o chanceler, em outros órgãos do governo, como o Ministério da Defesa, as pessoas às vezes ¿ficam encantadas com as perspectivas de acordo internacionais¿.

Os telegramas abordam principalmente da resistência do Itamaraty, em janeiro de 2008, em avançar com um Acordo de Cooperação em Defesa com os EUA, consolidado em abril de 2010. Segundo os relatos de Sobel ¿ que é amigo de Jobim e com quem se encontra com certa frequência, até no ministério ¿, o responsável pela Defesa era favorável à assinatura do acordo já durante a viagem a Washington, em 2008. Nos telegramas, Sobel destaca que aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram ¿flagrados em práticas corruptas¿. ¿Eu acho que as coisas que vi são insignificantes e não merecem ser levadas a sério. Na verdade, não sou obrigado a acreditar num telegrama do embaixador americano¿, respondeu Lula ontem.

DADOS PROTEGIDOS

As informações secretas divulgadas pelo site WikiLeaks continuam repercutindo pelo mundo e deixando os Estados Unidos em maus lençóis. O secretário norte-americano de Defesa, Robert Gates, considerou os vazamentos ¿embaraçosos¿, mas com consequências ¿bastante modestas¿ para a política externa do país. Se o tom no Pentágono foi ameno, o mesmo não se pode dizer do Palácio do Eliseu, em Paris. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, criticou a divulgação das mensagens e classificou o incidente de ¿último grau de irresponsabilidade¿. Outra reação inconformada veio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). ¿O vazamento é ilegal, irresponsável e perigoso¿, declarou Loana Longescu, porta-voz da aliança militar ocidental.

Para tentar impedir o acesso a informações sigilosas, o Departamento de Estado norte-americano ¿cortou temporariamente¿ a base de dados da rede militar. Enquanto isso, o fundador do site, Julian Assange, recebeu o convite do governo do Equador para viver e realizar palestras no país.

TRECHOS

¿Em um café da manhã privado, em 17 de janeiro, o embaixador (Clifford Sobel) disse a (Nelson) Jobim (ministro da Defesa) que sua avaliação inicial sobre um Acordo de Cooperação em Defesa (DCA) para o subsecretário para Assuntos Políticos do Ministério das Relações Exteriores, Everton Vargas, não foi bem aceito, e que Vargas mencionou o secretário-geral (vice-chanceler) Samuel Guimarães quando pediu tempo para trabalhar o assunto internamente. (¿) Jobim respondeu que Guimarães representava um sério problema, não apenas em relação ao DCA, mas sobre uma variedade de assuntos. Jobim disse que Guimarães `odeia os Estados Unidos¿ e está ativamente pensando em criar problemas no relacionamento¿

¿Mais uma vez, o presidente (Luiz Inácio) Lula (da Silva) terá de desempenhar o papel de decidir entre um ministro da Defesa excepcionalmente ativista, interessado em desenvolver laços mais próximos com os Estados Unidos, e um Ministério das Relações Exteriores que é firmemente comprometido em manter controle sobre todos os aspectos da política externa e em manter uma medida de distância entre o Brasil e os Estados Unidos¿

OUTRAS REVELAÇÕES

O site WikiLeaks divulgou apenas 291 de 251.287 documentos confidenciais. Veja as principais novidades

Câncer em Evo Morales Um documento divulgado pelo WikiLeaks da Embaixada dos Estados Unidos em Brasília revela que o presidente boliviano, Evo Morales, tem ou teria um tumor nasal. Segundo um relatório de janeiro de 2009 da representação diplomática, encaminhado ao Departamento de Estado, o ministro brasileiro da Defesa, Nelson Jobim, ¿confirmou um rumor de que Morales sofre de um sério tumor nasal¿. Jobim teria dito que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ¿ofereceu a Morales exames e tratamento em um hospital de São Paulo¿. O governo da Bolívia nega.

China e Coreia do Norte Uma nota confidencial relata as declarações do vice-chanceler sul-coreano, Chun Yung-woo, de que os líderes chineses não consideram Pyongyang ¿um aliado confiável¿ e que as Coreias deveriam ser reunificadas, sob o controle de Seul.

Arsenal nuclear na Europa De acordo com o WikiLeaks, os EUA mantêm um arsenal de armas nucleares táticas da época da Guerra Fria, espalhadas por Bélgica, Alemanha, Holanda e Turquia. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) não confirma, mas critica o vazamento de dados.

Karzai perdoa traficantes O presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, ordenou a libertação sem processo de dezenas de criminosos perigosos e de traficantes de drogas pelas forças internacionais, afirma um telegrama diplomático americano. As autoridades dos Estados Unidos repreenderam Karzai e o procurador-geral do Afeganistão, Muhammad Ishaq Alko, em diversas ocasiões, por terem soltado os prisioneiros em um período de três anos.