Título: Inteligência ao sul do Equador
Autor: Wilheim, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 12/03/2007, Opinião, p. A10

Como de repente, a mídia mundial coloca em manchete o que vinha sendo alertado há 30 anos, por cientistas e por ambientalistas: existem mudanças climáticas, repletas de conseqüências, provocadas pela ação humana. O relatório dos 200 cientistas convocados pela ONU, confirmando e ampliando um relatório de 2001, evidencia o que Al Gore, em seu importante filme documentário ("Uma verdade inconveniente"), afirma: não observamos meros indícios, mas sim vivemos já as primeiras conseqüências do aquecimento global.

Neste artigo não pretendo repetir o que a mídia mundial tem precisado, evidenciando de forma dramática o que a omissão e a ignorância podem acarretar à vida do planeta. Pretendo, sim, refletir sobre os motivos pelos quais as denúncias e propostas preventivas, assim como medidas efetivamente tomadas não foram objeto da mídia, nem de políticas públicas enquanto tempo havia para corrigir ou pelo menos retardar os efeitos nocivos de algumas atividades humanas.

O aquecimento global é provocado pela formação de um "teto" de gases, principalmente o CO2, que impedem os raios solares e calor refletidos pela terra de se dispersarem no espaço; este rebatimento é o efeito estufa que aumenta a temperatura ambiente. O CO2 é produzido, em sua maioria (75%), pela exaustão de veículos que utilizam como combustível os derivados do petróleo; e por queimadas de árvores (16%). Estes dados simplificados seriam suficientes para afirmar a necessidade de mudar o combustível de veículos, controlar queimadas e repor as árvores que, por vezes necessariamente, são derrubadas.

Estes fatos já eram comentados, ainda sem a atual precisão e unanimidade, nas décadas de 1970-80 e constaram de relatórios preparados por cientistas e consultores para a primeira Conferência Mundial para o Meio Ambiente da ONU (Estocolmo, 1972). Diversos desses consultores eram brasileiros ou dos demais países do Terceiro Mundo, dentre os quais Ignacy Sachs, autor da expressão eco-desenvolvimento, muito atuante no Brasil.

Em 1975, dois anos depois da grande elevação do custo do barril de petróleo, e, face à necessidade de rever a matriz energética nacional e cuidar do meio ambiente, o então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, criou um grupo de trabalho destinado a estudar e implementar medidas de poupança energética. Como seu Secretário de Planejamento, dirigi esse grupo e dentre as medidas propostas havia horário de verão, apoio ao uso de coletores solares, criação de novas hidroelétricas e a utilização do álcool como combustível para veículos.

Para dar o exemplo, o governo instalou então os coletores solares no Hospital das Clínicas e no Hospoital da Unicamp e toda a frota de veículos do Estado passou a empregar a mistura de 23% de álcool na gasolina, sendo a experiência acompanhada pela Cetesb, pioneira na regulação ambiental de veículos. Iniciou-se assim uma importante experiência nacional: o Pró-Álcool. Embora as teses ambientais ganhassem adesões na sociedade, governos, empresários e mídia permaneceram reticentes. Poucos acreditavam no pioneirismo e no êxito do que já fora feito.

-------------------------------------------------------------------------------- Teses ambientais tiveram adesão da sociedade por anos, enquanto governos, empresários e mídia permaneceram reticentes --------------------------------------------------------------------------------

Este mesmo ceticismo, aliado às estratégias perversas e míopes dos lobbies do petróleo, encontra-se mundo a fora. Em 1978 fui convidado pela ONU para apresentar nossas inovações no uso do álcool combustível em um seminário mundial para a indústria automobilística. Minha apresentação foi recebida em silêncio (ou condescendente ceticismo) pelos 200 representantes daquela indústria, embora tenha testemunhado que, mediante a mistura do álcool, a emissão de CO2 havia se reduzido para quantidade insignificante e que se eliminara por completo a necessidade de adicionar chumbo, perigoso tóxico, ao combustível. Acreditava, contudo, ser esta uma tecnologia temporária, pois uma solução mais definitiva da questão do combustível resultaria das pesquisas com células de hidrogênio já em andamento. O dirigente do conclave explicou-me, à guisa de justificativa, que em ano eleitoral nos Estados Unidos, a indústria nada discute que tenha impacto sobre o mundo do petróleo. Mas, em um café da manhã, um representante da Volkswagen confidenciou-me que sua empresa, ao tomar conhecimento da experiência brasileira, colocara 20 Kombis a álcool para testes em algum lugar da África.

Além dos motivos acima, creio que também exista a resistência do Primeiro Mundo em aceitar que alguma contribuição à civilização possa ser gerada fora de sua esfera; para muitos, inclusive para boa parte da mídia, não há inteligência abaixo do Equador. O Brasil é valorizado pela beleza d sua natureza, pela simpatia de seu povo e não por sua cultura; pela sensualidade de seus corpos e não pelo que suas mentes possam ter produzido.

O mais grave, no entanto, é quando nós mesmos acreditamos nisto. A tecnologia do álcool combustível foi entregue de graça às montadoras, como se os anos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico realizados no CTA de São José dos Campos nada valessem. E, enquanto esta entrega se fazia, o grupo técnico que criara tal tecnologia foi desfeito por falta de verba. Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos ao final do século XIX, com a criação do Escritório de Registro de Patentes, nossas invenções não são patenteadas ou se perdem no emaranhado do seu lentíssimo processo burocrático. Falta-nos uma visão estratégica e a consciência da importância da invenção como mola do desenvolvimento.

Neste século em que o conhecimento estará no cerne de qualquer desenvolvimento, cabe à sociedade, às instituições e aos governos brasileiros, cuidar da geração e desenvolvimento das idéias pois, além dos demais atributos antes citados, há, sim, inteligência ao Sul do Equador. Estão aí, para exemplificá-lo, Fapesp, Embrapa, Ipea, Fiocruz, USP, entre tantos outros grupos criativos a merecer apoio crescente.