Título: Instabilidade política na Bolívia pesa na decisão de Lula
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2007, Brasil, p. A4

O fator geopolítico e a tentativa de preservar a frágil liderança do Brasil na América do Sul, em tempos de aumento da influência exercida pelo venezuelano Hugo Chávez, foram predominantes na decisão do governo de atender às reivindicações bolivianas. A avaliação feita por diplomatas e assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é de que rejeitar os pedidos de Evo Morales teria um custo político maior para a Bolívia, com conseqüências sobre o Brasil, do que o custo econômico de pagar mais pelo gás natural do país vizinho.

Além de reconhecer como "justa" a solicitação de Morales, Lula e seus auxiliares temem o agravamento de problemas internos na Bolívia. Eleito em primeiro turno há 13 meses, com uma votação histórica, o primeiro presidente indígena do país já vê sua popularidade despencar e enfrenta crescente oposição dos governadores de algumas províncias. "Por ignorância ou armadilha", segundo um importante ministro brasileiro, Morales fez um lance de risco: desde a última cúpula do Mercosul, em janeiro, adotou o discurso de que a Bolívia, um país pobre, subsidia o gás a um país industrializado.

Se voltasse a La Paz sem resultados concretos, Morales poderia dar munição aos seus opositores e agravar a crescente instabilidade doméstica. No Itamaraty, avalia-se que, apesar dos surtos estatizantes de Chávez, a região tem ficado mais estável nos últimos anos. E, nesse contexto, o pior cenário que pode haver é o de uma eventual desestabilização do governo Morales e o risco de novas e sucessivas trocas de presidentes na Bolívia, como aconteceu no início da década - não só na Bolívia, mas também no Equador e na Argentina. Por isso, o governo acredita que o custo econômico de pagar mais pelo gás não é grande se comparado ao risco político de maior instabilidade na Bolívia.

Como pano de fundo, lembram diplomatas brasileiros, está o papel de Lula como interlocutor privilegiado dos Estados Unidos na região. Para manter-se numa posição de liderança regional e como contraponto ao fervor socialista de Chávez, Lula sabe que precisa assumir compromissos maiores com os parceiros sul-americanos. Morales pende mais para Caracas do que para Brasília. Na semana que vem, será a vez de Néstor Kirchner aterrissar na Venezuela para receber novos "presentes" de Chávez, como a compra de mais títulos da dívida argentina e investimentos na área petrolífera.

Ou seja, pagar mais pelo gás boliviano tem o significado, para o Itamaraty e para o Palácio do Planalto, de demonstrar que, apesar das restrições financeiras, o Brasil está disposto a "bancar" a integração sul-americana, sem perder protagonismo. Afinal, é justamente esse protagonismo que precisará ser mostrado a George W. Bush, na visita que ele fará a São Paulo, em 9 de março.

A finalidade de atender aos pedidos de Morales foi explicada pelos diplomatas envolvidos nas negociações, mas ninguém escondeu uma certa contrariedade com os procedimentos adotados no transcorrer das discussões. Há quase um ano, quando Morales nacionalizou a cadeia de hidrocarbonetos, o governo brasileiro frisava dois pontos: 1) a negociação deveria ser técnica, entre Petrobras e YPFB, no máximo entre o Ministério de Minas e Energia e o Ministério de Hidrocarbonetos, mas nunca política, entre presidentes; 2) a situação da térmica de Cuiabá não dizia respeito ao governo, por ser um contrato firmado entre agentes privados.

Após meses de impasse, chegou-se a um desfecho em que as negociações foram efetuadas diretamente por Morales, em pleno Itamaraty, e Lula foi consultado sobre cada avanço de um possível acordo. No caso de Cuiabá, o governo entrou nas discussões para assegurar o fornecimento ao Mato Grosso. Pior: nos últimos dias, o governo deu vários recados de que a agenda bilateral não poderia curvar-se à questão única do gás. No fim, foi o que aconteceu. Apesar da assinatura de outros acordos, o gás natural acabou dominando a agenda de Morales no Brasil e foi inevitável a percepção de que o país cedeu às pressões do líder boliviano.