Título: Brasil cede e aceita pagar mais pelo produto da Bolívia
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2007, Brasil, p. A3

Sob intensa pressão do presidente Evo Morales, que conduziu pessoalmente as negociações, o governo brasileiro concordou em pagar mais pelo gás boliviano, mas evitou usar o termo "reajuste" para caracterizar a decisão, anunciada ontem. Nos cálculos da Bolívia, o acordo fechado vai gerar uma receita adicional de US$ 100 milhões anuais. O ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, considerou essa estimativa pouco confiável e preferiu falar em um aumento entre 3% e 6%, dependendo de algumas variáveis: cotação dos preços internacionais dos hidrocarbonetos, volume importado pela Petrobras e teor energético do gás. Em 2006, o Brasil pagou à Bolívia US$ 1,260 bilhão pelo produto.

Sem corrigir o valor do combustível importado pela Petrobras, o governo brasileiro recorreu a explicações químicas para justificar o pagamento adicional ao país vizinho. O preço de compra será mantido em US$ 4,20 para o limite de fornecimento de 30 milhões de metros cúbicos por dia, mas haverá uma recompensa à Bolívia pelo alto teor energético do gás fornecido pelos seus campos. Tudo o que exceder o poder calorífico - ou seja, de gerar energia - de 8.900 quilocalorias por metro cúbico (kcal/m³) receberá um pagamento extra. Rico em componentes nobres, segundo explicou Rondeau, o gás boliviano é despachado atualmente com um teor médio de 9.400 kcal/m³.

A Bolívia se comprometeu a não fornecer gás com poder calorífico abaixo de 9.200, devido à configuração da indústria brasileira que trabalha com esse combustível para gerar energia e mover suas máquinas. Para essas finalidades, a presença do gás metano na matéria-prima é suficiente, mas o produto boliviano vem com outros elementos químicos considerados "nobres": etano (usado na cadeia de plásticos), propano e butano (para a produção de gás de cozinha) e gasolina natural (matéria-prima da indústria petroquímica).

Esses elementos, para todo o volume que exceder o teor de 8.900 kcal/m³, será remunerado a cotações internacionais. Por enquanto, porém, o efeito para a Petrobras é inócuo: a estatal não dispõe de tecnologia para aproveitar cada uma das matérias-primas e precisará investir em uma unidade de separação dos gases. Para entrar em vigor, a nova forma de comercialização precisará de um aditivo no Acordo de Suprimento de Gás firmado entre Brasil e Bolívia, que deverá ter respaldo legal até o fim de março, segundo estimativas dadas pelos dois governos.

Morales demonstrou satisfação com o desfecho das negociações, que ocuparam toda a agenda de uma atípica visita de Estado de um líder estrangeiro. "Nós cumpriremos todos os contratos com a Petrobras", afirmou Morales, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele referiu-se ao colega brasileiro como "companheiro maior" na América do Sul e o "grande aliado" da Bolívia na região. "Reconheço a justeza de todos os pleitos bolivianos", disse Lula. Ao que Morales retribuiu com uma garantia: "Nunca faltará gás ao Brasil."

O ministro Silas Rondeau contou que os bolivianos chegaram ao país, na quarta-feira, exigindo uma equiparação dos preços pagos pela Petrobras ao do acordo assinado recentemente com a Argentina, que estabelece a cotação de US$ 5. O governo rejeitou esse pedido por tratar-se de quebra de contrato, alegou o ministro. A solução definitiva partiu dos negociadores de La Paz e foi bem acatada pelo Brasil. Rondeau assegurou que as despesas adicionais com a importação de gás boliviano serão absorvidas pela Petrobras. "O consumidor não será afetado."

O mesmo não ocorrerá com o reajuste do preço do gás enviado à usina termelétrica Governador Mário Covas, em Cuiabá, da Pantanal Energia. Considerado extremamente defasado, o valor foi corrigido de US$ 1,19 por milhão de BTU (unidade térmica britânica) para US$ 4,20. O reajuste renderá US$ 44 milhões anuais a mais para a Bolívia. Tanto a térmica quanto o gasoduto que transporta o combustível são privados, mas Rondeau disse que o governo viu-se obrigado a interferir nas negociações para garantir o abastecimento de Mato Grosso, que depende do gás boliviano e poderia ter o produto cortado. Furnas compra a energia da usina e vai repassar o aumento para o consumidor.

Segundo o ministro, o aumento será de 0,2 ponto percentual para cada uma das 34 distribuidoras conectadas ao sistema interligado nacional. O aumento na ponta não será imediato; ocorrerá no aniversário contratual de cada distribuidora, quando há reajuste tarifário. Uma conta de R$ 100, por exemplo, passará para R$ 100,20. Rondeau garantiu que nem Shell nem Furnas serão prejudicadas e negou haver quebra de contrato nesse caso. "O que havia era desequilíbrio econômico-financeiro."

No Congresso, a oposição anunciou que tentará barrar o aumento de preços. O líder da minoria na Câmara, Júlio Redecker (PSDB-RS), disse que o partido poderá ingressar com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.