Título: A charada da dívida da Argentina
Autor: Yeyati, Eduardo Levy
Fonte: Valor Econômico, 12/12/2012, Opinião, p. A17

A Argentina está diante de um dilema. Antes da troca de sua dívida soberana em 2005, seu legislativo aprovou uma "lei de bloqueio", que barra o caminho a qualquer futura proposta aos detentores de títulos que a Argentina não honrou em 2002.

Embora a "lei de bloqueio" tenha contribuído para ampliar a taxa de participação na troca de títulos em 2005, restaram credores insatisfeitos que foram a juízo para forçar o reembolso de seus investimentos.

No fim de novembro, Thomas Griesa, um juiz federal americano em Nova York, ordenou que a Argentina depositasse em juízo até 15 de dezembro US$ 1,33 bilhão devido aos investidores que não aceitaram a renegociação do valor dos títulos. Griesa levantou o embargo à sua determinação a partir de fevereiro de 2012, após indicações do governo da Argentina de que pretendia ignorar a decisão - inclusive com declarações públicas qualificando como "fundos abutres" os investidores insatisfeitos e uma promessa da presidente Cristina Fernández de Kirchner de jamais pagá-los.

O Tribunal de Apelações dos Estados Unidos (e, possivelmente, a Suprema Corte dos EUA) terão que escolher entre o "tudo" reivindicado pelos investidores que não aceitaram a troca de dívida e o "nada" oferecido pela Argentina.

A decisão judicial, que aguarda julgamento de um recurso, deixa a Argentina com três opções: descumprir sua própria lei, descumprir a lei americana ou renovar um calote.

Em sua decisão, baseada na cláusula pari passu ("pé de igualdade") incluída nos contratos dos títulos, Griesa incluiu o Bank of New York Mellon (fiduciário dos detentores de títulos) entre as entidades que atuam "em concomitância e participação ativas" com a Argentina e advertiu o banco contra transferir fundos se a Argentina ignorar a ordem. Em consequência disso, se a Argentina decidir pagar normalmente os credores que aceitaram descontos sobre o valor de face da dívida, o BNY Mellon poderá recusar-se a transferir os fundos, desencadeando um default técnico.

Mas o tempo para tentar encontrar brechas legais é limitado. Embora o Tribunal de Apelações do Segundo Circuito americano tenha concedido à Argentina uma suspensão provisória (da determinação do tribunal), afastando temporariamente a ameaça de inadimplência, representantes do governo argentino terão de apresentar seus argumentos perante o tribunal em fevereiro.

A decisão assegura à Argentina o pagamento normal da dívida em dezembro. A partir de então, porém, o governo argentino pode ficar diante de um dilema: caso continue a realizar os pagamentos, estará se comprometendo a cumprir uma decisão que é amplamente vista como excessiva e injusta, mas recusar-se a pagar prejudicaria o processo de apelação, ao expor a relutância da Argentina em cumprir uma decisão judicial desfavorável. Com efeito, a dura retórica do governo lhe rendeu escassa margem de manobra. Como num jogo de pôquer, o país vai ter de pagar para ver a próxima carta.

Mas a Argentina tem, efetivamente, opções. Embora o depósito judicial exigido não seja um pagamento efetivo aos investidores insatisfeitos, uma vez que a garantia dada será resgatada, caso o tribunal de apelações finalmente decida em favor da Argentina, tal depósito poderá ser considerado um pagamento contingente que desrespeita a lei de bloqueio. O governo poderia facilmente evitar isso obtendo um acordo parlamentar no sentido da suspensão temporária da lei, como fez em 2010, quando foi efetivada uma segunda troca de dívida soberana. Com efeito, a renegociação da troca de dívida, uma opção que já está sendo avaliada, continua a ser uma alternativa natural à interpretação maximalista (pari passu) de Griesa, embora possa ser tarde demais para prosseguir nessa via.

Por outro lado, recusar-se a cumprir a decisão provavelmente inibiria o BNY Mellon de realizar os pagamentos, o que tornaria praticamente impossível pagar a tempo os detentores de títulos que aceitaram descontos sobre o valor de face. Mas, mesmo neste caso, um default técnico - que reduziria ainda mais o já limitado acesso da Argentina a fundos internacionais - poderia ser evitado mediante um redirecionamento do regate dos títulos renegociados por meio do Reino Unido, de outro país europeu ou da Argentina (a opção mais provável). De acordo com a "cláusula ação coletiva" (CAC) incorporada aos títulos, isso não equivaleria a um calote, caso 75% dos detentores de títulos aceitem a mudança de praça.

Os detentores de títulos certamente poderão recusar, dado que, se declararem individualmente um default dos títulos renegociados, poderiam demandar judicialmente o pleno e imediato pagamento da dívida remanescente. Mas poderão não fazê-lo, caso isso signifique que a Argentina, incapaz de cobrir os pagamentos acelerados, seja forçada a repudiar a dívida - deixando os detentores de títulos sem nada.

Na ausência de um processo de falência soberana, uma solução coordenada - que trocas de dívida e CACs visam facilitar - é a melhor opção. Mas a decisão do juiz Griesa mina as perspectivas de cooperação. Afinal de contas, é mais provável que os investidores rejeitem um período mais dilatado de pagamentos mais baixos pelo resgate de títulos de valor renegociado se puderem tentar ser remunerados imediata e integralmente pelo valor da dívida original.

Com efeito, nem mesmo o risco de nada receber assegura que os detentores de títulos não reverterão aos velhos títulos. E, à parte o muito debatido - e, a meu ver, exagerado - problema da agregação, baixar o custo para os detentores de títulos que não aceitaram o deságio, como faz a decisão de Griesa impediria o êxito dos CACs.

A menos que a Argentina apresente uma proposta alternativa de pagamento, o Tribunal de Apelações dos EUA (e, possivelmente, a Suprema Corte dos EUA) terão que escolher entre o "tudo" reivindicado pelos investidores que não aceitaram a troca de dívida e o "nada" oferecido pela Argentina. Uma suspensão da "lei de bloqueio" e a reabertura da negociação do desconto poderia fornecer uma base para a revisão do caso - e produzir uma decisão que comece a solucionar as falhas na arquitetura financeira internacional. No momento em que novas reestruturações da dívida soberana são possibilidades nítidas, tal ação é crucial.