Título: Marco na luta contra aquecimento, Kyoto tem futuro incerto
Autor: Barros, Bettina
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2007, Especial, p. A18

O Protocolo de Kyoto completa hoje dois anos com uma incógnita sobre o seu futuro mas fortes sinalizações de que sociedade, governos e empresas deram os primeiros passos necessários para tentar reverter o processo de superaquecimento da Terra.

As exigências do tratado para que o setor produtivo mude seu modo de agir e reduza suas emissões de gases poluentes foi o marco histórico a favor do planeta que culminou, no início deste mês, com a divulgação do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), composto por cientistas da ONU, que provou que o aquecimento global é causado por atividades humanas. Nunca se soube com tamanho grau de precisão os riscos que o planeta corre.

"Talvez esse tenha sido o maior impacto do Protocolo de Kyoto. Sem ele, o IPCC seria um artigo obscuro dentro da revista Science", afirma Shigueo Watanabe Jr, consultor sênior da Geoklock.

Apesar de rejeitado pelo maior poluidor do mundo - os EUA -, Kyoto avançou. Ainda são necessários ajustes, dizem os especialistas, e as empresas precisam fazer mais para reduzir a sua poluição. A grande questão é o que ocorrerá com Kyoto pós-2012, quando expira o tratado. É unânime que ele não desaparecerá. Será aperfeiçoado, incluindo setores hoje desprezados - como o biodiesel - e metodologias novas. Mas a discussão sobre seu futuro vai além: deveriam os países em desenvolvimento ser incluídos no pagamento da conta? Oficialmente, o Brasil diz que não.

A conta é alta e atribuída, por enquanto, a 35 países desenvolvidos, que ao longo dos séculos levaram ao estado irreversível de aquecimento. Pelo tratado, esses países devem reduzir em 5% suas emissões dos gases estufa até 2012, tomando como base os níveis de 1990. O dióxido de carbono, o CO2, é o principal deles, mas existem outros cinco na lista.

"É absurdo querermos ficar fora dessa conta", diz Marcelo Furtado, do Greenpeace. "Argumentamos que nossa matriz energética é limpa, mas daqui a 50 anos ela não será mais. Os planos de investimento do governo estão focados em energia suja, como termelétricas. E aí? E Índia e China? Somos todos poluidores."

Desde 2005, quando foi ratificado o Protocolo de Kyoto, cerca de 12 mil indústrias com alto consumo energético da União Européia se tornaram aptas de comprar e vender CO2.

O tratado especificou alguns mecanismos para que empresas e governos desenvolvidos que não consigam reduzir sozinhos suas emissões de gases, como a Espanha, se aproximem da meta.

Um deles é o comércio de emissões, negociado em bolsa. É um mercado de compra e venda do "direito de emitir gases do efeito estufa" - créditos de carbono. Permite que países que poluem mais possam comprar créditos dos que cumpriram sua meta além do imposto por Kyoto.

Esse mercado andou em baixa nos últimos meses. Despencou dos US$ 30 por tonelada para em torno de US$ 16 em janeiro. O motivo, dizem analistas, é que alguns países europeus supervalorizaram suas estimativas de emissões de gases em inventários nacionais. A demanda por créditos caiu, os preços recuaram.

O outro é uma idéia brasileira e diz respeito aos países em desenvolvimento. O MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo) prevê que os países desenvolvidos invistam em projetos de energia lima nos países em desenvolvimento. Há mais de 40 países conduzindo esses projetos hoje, com reduções de emissão de 31,5 milhões de toneladas de CO2. As grandes estrelas são Índia, China e Brasil, nesta ordem.

Nesta semana, o Conselho Executivo do MDL da ONU, sediado em Bonn, contabilizou o 500º registro de projeto de MDL. "É um março animador, especialmente considerando que o Protocolo de Kyoto foi ratificado há apenas dois anos e que, há um ano, menos de cem projetos estavam registrados", disse o secretário-executivo da Convenção a ONU para Mudanças Climáticas, Yvo de Boer. "Isso prova do que pode ser feito quando países se unem para encontrar soluções globais".

Segundo dados mais recentes do Ministério da Ciência e Tecnologia, há 1.597 projetos de MDL sendo estruturados. O Brasil mantém a terceira posição em números de projetos, com 210. À frente estão China, com 299 projetos, e a líder Índia, com 557.

A terceira posição é em parte explicada pelo fato de o Brasil ter uma matriz energética limpa, o que não ocorre sobretudo na China, movida à carvão. Isso fica claro com os números de potencial de redução dos projetos apresentados à ONU. Nesse quesito, a China pula para primeira posição - conseguiria reduzir 1,056 bilhão de toneladas de CO2 equivalente, contra 548 milhões de toneladas da Índia e 195 milhões de toneladas do Brasil.

"A gente não vai ser um grande produtor de carbono, mas temos que ter qualidade para ganhar preço", diz Marco Antonio Fujihara, consultor da Totum Sustentabilitas, em São Paulo. "E para ganhar preço, tempos que ter um marco regulatório. Só assim podemos negociar melhor". Ele cita como exemplo a China, que há cerca de um ano apresentou um "primor de marco, com o requinte de determinar um preço mínimo para o carbono".

Pelo menos 84 projetos brasileiros já foram aprovados na ONU. O retorno financeiro já começou a chegar. O caso pioneiro de MDL no país e no mundo foi o Projeto Novagerar, um aterro sanitário de Nova Iguaçu, no Rio. O governo holandês, por meio do Banco Mundial, fechou contrato para compra de créditos de carbono até 2012. O projeto prevê que, em vez de ser lançado no ar, o gás metano gerado com a decomposição do lixo é canalizado e queimado, gerando partículas menores de CO2, menos poluente. Serão reduzidos 2,5 milhões de toneladas de carbono nesse período. O preço do negócio: 13,5 milhões de euros. A primeira parcela do contrato, de 1,5 milhão de euros, foi depositada em junho de 2006.

O maior projeto de MDL do Brasil, porém, é da planta da Rhodia Energy em Paulínia, em São Paulo. A empresa iniciou em novembro a redução anual de 6 milhões de CO2. Até o fim de março, a planta passará pelo processo de validação - apuração de que a empresa de fato reduziu as emissões prometidas no projeto. "Vamos avaliar o que fazer. Vendemos créditos de carbono ou a matriz em Paris usará para compensar suas emissões próprias", diz Sergio Damore, diretor comercial do mercado de CO2.