Título: Editor da 'verdade'
Autor: Sabadini, Tatiana
Fonte: Correio Braziliense, 06/12/2010, Mundo, p. 14

Fundador do site WikiLeaks se vê como um cruzado em busca da informação que os governos lutam para esconder

Ele se considera o grande divulgador da ¿verdade¿, porém tenta escapar dela. Julian Assange, o responsável pelo vazamento de mais de 250 mil documentos da diplomacia americana, é um homem inquieto e um tanto estranho. Conhecido menos por seus textos e mais pelo trabalho como hacker, o jornalista australiano, de 39 anos, resolveu criar, em 2006, uma organização para comunicar o que acreditava ser incomunicável. O WikiLeaks seria um espaço virtual para funcionar como caixa postal para fontes anônimas. Por publicar segredos, conseguiu uma legião de fãs e um grupo ainda maior de críticos.

Assange ganhou notoriedade em julho e outubro passados, quando documentos secretos sobre a guerra no Afeganistão e no Iraque foram divulgados pelo WikiLeaks. Além disso, acumulou admiradores quando denunciou operação de detenção em Guantánamo, revelou a conta de e-mail pessoal de Sarah Palin ¿ a musa da direita republicana nos Estados Unidos ¿ e trouxe à tona execuções ilegais no Quênia. Por essa última iniciativa, ganhou um prêmio da organização humanitária Anistia Internacional.

O comunicador de segredos de Estado às vezes assume o papel de líder, mas em outros momentos prefere se esconder. Nos últimos meses, tornou-se paranoico e preocupado com a própria segurança. Depois do vazamento de telegramas da diplomacia norte-americana, passou a ser um fugitivo procurado pela Interpol ¿ mas por um caso de abuso sexual.

O jornalista australiano costuma ocultar informações quando fala sobre si mesmo ou sobre seus projetos. Mas com o interesse da mídia, depois do WikiLeaks, sua história começou a tomar forma. Ele nasceu em 1971, em Townsville, Queensland, nordeste da Austrália. A família se mudava bastante, e antes dos 14 anos ele já tinha morado em 37 casas. Durante a adolescência, começou a se interessar por computadores e tornou-se um hacker. Em 1995, foi preso e julgado por entrar em sistemas do governo e em servidores corporativos. Admitiu a culpa e pagou uma multa.

¿Ética e justiça¿ Depois de uma breve passagem pelo Vietnã e do fim de um casamento, ele voltou para a terra natal e se inscreveu no curso de física e matemática na Universidade de Melbourne. Então com 25 anos, publicou um livro com a colega Suelette Dreyfus sobre o crescimento da internet e seu lado ¿subversivo¿. Em uma entrevista, a coautora descreveu-o como ¿um pesquisador muito habilidoso, bastante interessado no conceito de ética, de justiça e naquilo que os governos deveriam ou não fazer¿.

Neste ano, Reino Unido, Islândia e Suécia serviram de refúgio para Assange. A última das três escalas terminou com uma acusação de abuso e estupro, feita por duas mulheres. Segundo os advogados do fundador do WikiLeaks, os encontros foram consensuais e a denúncia seria mais uma forma de atingir sua imagem e atrapalhar as atividades do site.

Ao se juntar a um grupo de especialistas em internet, há quatro anos, Assange resolveu criar um espaço na web para revelar documentos que pudessem ¿fazer uma reforma global e libertar a verdade¿. Apesar de não ter graduação em jornalismo, o fundador do WikiLeaks disse várias vezes que se considera ¿um editor¿, um ¿coordenador¿ das mensagens que recebe de fontes do mundo todo. A organização se sustenta com doações e com o trabalho de voluntários.

Por revelar tantos documentos secretos, Assange ganhou o apelido de ¿James Bond do jornalismo¿. Enquanto estudantes de comunicação o colocam em um pedestal, críticos questionam suas intenções ao divulgar o que chama de ¿verdade¿. ¿Ele é uma das poucas pessoas que realmente se importam com uma reforma positiva no mundo, em um nível onde você está disposto a correr riscos e cometer erros, apenas para justificar o trabalho em que você acredita¿, afirmou o cofundador do site, Daniel Schmitt, em entrevista à rede britânica BBC.

Para Charlie Beckett, coordenador do Departamento de Comunicação da London School of Economics, do ponto de vista jornalístico, a movimentação feita pelo fundador do WikiLeaks precisa se sustentar na ética, e é difícil equilibrar-se nessa linha. ¿Sempre que revela um segredo, o profissional deve fazer um julgamento entre o interesse público e o risco de causar danos a alguém ou ao trabalho de uma organização. Eu acredito que as revelações sobre o Iraque foram, sem dúvida, de interesse público. As revelações diplomáticas são mais complicadas, porque mostram como o poder funciona, não apontam um abuso ou falta específica¿, disse Beckett ao Correio.

Segundo o especialista, não há como descobrir se o fundador do WikiLeaks tem um objetivo maior por trás do vazamento das informações, ou mesmo se ele chega a ter algum objetivo. Mas, ao que tudo indica, ele pretende ir além das grandes instituições. ¿Como todos os bons jornalistas investigativos, Assange teve diversos motivos, mas o primeiro deles é desafiar o poder e transtornar a autoridade. Nós precisamos de pessoas como essas para manter a democracia viva como realidade, e não apenas como um conjunto de estruturas.

No centro Em setembro, Assange participou de uma mesa redonda na Universidade da Cidade de Londres sobre o tema: ¿Muita informação? Segurança e censura na era do WikiLeaks¿. O público conheceu um palestrante calmo, que demonstrava pouca empolgação e raramente sorria. O fundador do site respondia sempre devagar, era pouco articulado. Ele também restringiu o uso de câmeras e gravadores no evento. A repórter Kate Reardon, da revista Vanity Fair, relatou o desconforto do homenageado. ¿Durante todo o tempo, ele permaneceu imóvel, de forma bizarra. Parecia gostar de estar no centro das atenções. O cabelo parecia pintado por ele mesmo, cheio de manchas, terrível. A dicção era ruim, como se a boca dele estivesse cheia de algodão ou paralisada por uma anestesia aplicada pelo dentista¿, descreveu a repórter no blog da revista.

No fim da semana passada, depois de receber ataques e ficar fora do ar durante horas, o WikiLeaks divulgou um novo layout. Uma foto de Assange estampa o topo da página, com olhar determinado, direto para a câmera. A perseguição da polícia e o tom desafiador contra a maior potência do mundo o transformaram em um líder. E, assim como tentava entrar no sistema do governo, na época em que era hacker, o australiano agora conseguiu sacudir as relações internacionais em escala global. Mesmo que venha a ser julgado culpado, o jornalista afirmou aos leitores do jornal inglês The Guardian, na última sexta-feira: ¿A história ganhará¿.

Patriota é ¿nacionalista¿

Prestes a ser anunciado como ministro das Relações Exteriores no governo da presidente Dilma Rousseff, o embaixador Antônio Patriota, atual secretário-geral do Itamaraty, também é citado nas comunicações sigilosas divulgadas pelo site WikiLeaks. ¿Embora Patriota conheça bem os Estados Unidos (era embaixador no país até 2009) e esteja pronto para trabalhar conosco, não o fará numa perspectiva pró-americana, mas com base no nacionalismo tradicional da diplomacia brasileira¿, diz uma mensagem da embaixada americana em Brasília, datada de novembro de 2009, período em que Patriota deixou a missão em Washington para assumir o segundo posto na hierarquia diplomática brasileira.

O retorno de Patriota a Brasília já era, àquela altura, uma indicação clara de quem seria o preferido do ministro Celso Amorim, caso o candidato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse eleito. E, segundo o telegrama revelado pelo WikiLeaks, embora Patriota seja visto em Washington como um diplomata bem familiarizado com a dinâmica política norte-americana, por ter atuado no país entre 2007 e 2009, é percebido como um discípulo da correnta nacionalista ¿ por vezes descrita como ¿antiamericana¿ ¿ à qual pertencem Amorim e o ex-secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães.

O constrangimento pela divulgação dos diálogos sigilosos ainda atinge o Itamaraty de outra forma. Segundo informações publicadas ontem pelo jornal francês Le Monde, Amorim teria afirmado, durante conversa com funcionários americanos, que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ¿late mais do que morde¿, e que isolá-lo não é a melhor opção. O chanceler brasileiro teria dito, segundo comunicação datada de março de 2007, que ¿a orientação política de Hugo Chávez não é a do Brasil¿, e que ¿os brasileiros não se sentem ameaçados por ele¿.

Ainda segundo os documentos, a diplomacia americana percebe as relações Brasil-Venezuela como ponto central de suas preocupações em relação à região, onde o protagonismo crescente do governo Lula é tratado como uma atitude de ¿concorrência¿ com a influência norte-americana. ¿O Brasil acha que está em concorrência com os Estados Unidos e desconfia das intenções americanas. (...) O Brasil tem necessidade quase neurótica de ser igual aos Estados Unidos e de ser percebido como tal¿, afirma outro telegrama confidencial de novembro de 2009.

Caças A disputa político-econômica pela venda de aeronaves também requentou conversas relatadas pelos diplomatas americanos. Segundo uma mensagem, a França estaria disposta a fornecer ao Brasil os códigos informáticos do caça Rafale, se for ele o escolhido para reequipar a FAB. O avião francês compete com o americano F/A-18 Super Hornet, daBoeing, e o sueco Grippe NG, oferecido pela Saab. ¿Os franceses garantiram aos brasileiros que entregarão os códigos informáticos do Rafale, que são o coração digital do aparelho, um gesto que os demais concorrentes estão reticentes em realizar¿, diz o texto.