Título: "Não tenho compromisso com a gestão Ciro"
Autor: Romero, Cristiano e Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 26/03/2007, Política, p. A14

Há apenas dez dias no cargo, o novo ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, um ex-opositor ferrenho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sinaliza que os dois principais projetos do governo para a região Nordeste - a transposição das águas do Rio São Francisco e a construção da ferrovia Transnordestina - serão modificados em sua gestão.

No caso da transposição, a idéia é rediscutir o projeto original e adotar um programa, já apelidado de "Água para Todos", para assegurar o abastecimento das inúmeras comunidades ribeirinhas que vivem ao longo do rio nos chamados "Estados doadores" do projeto, entre eles, Bahia e Minas Gerais. Esta seria uma forma, diz o ministro, de diminuir a resistência desses Estados à obra, que, na oposição, ele sempre combateu. "Tenho visto, e eu mesmo já fui vítima disso, aquele lema do 'não vi, não conheço, não sei, mas reprovo'."

Quanto à ferrovia Transnordestina, Geddel quer incluir no projeto um novo ramal, ligando a região de Barreiras (BA), forte produtora de soja e algodão, aos portos da Bahia. Nesta entrevista ao Valor, o ministro diz que seu ministério é uma Pasta nacional, mas deixa claro que a prioridade é o Nordeste e que nada, inclusive a transposição, será feito em prejuízo da Bahia, seu Estado natal. "Se eu tiver que levar adiante qualquer posição que comprovadamente prejudique ou atrase o desenvolvimento da Bahia, serei entrevistado não mais como ministro, mas como ex-ministro", assegura ele.

Na estratégia original do governo para a transposição, a idéia era acelerar as obras, com a ajuda do Exército, tão logo o Ibama concedesse a licença ambiental. Na sexta-feira, o Ibama, depois de quase três anos de análise, decidiu autorizar a obra. Apesar disso, Geddel quer conversar antes com o presidente. "Estou me preparando para levar a ele preocupações, alternativas e estratégias. Caberá a ele, em última instância, dizer que rumo deveremos seguir", pondera o ministro.

Sobre o fato de ter mudado radicalmente sua opinião sobre Lula, Geddel, que é da cota do PMDB no governo, sustenta que ele e o presidente mudaram de 2002 para cá. "Não posso ficar amarrado permanentemente a posições que eventualmente defendi. O projeto de convergência que interessa é o destino, não o início. Lula tem dado demonstrações permanentes de que está olhando para o futuro e não é escravo do passado."

Valor: Como o senhor pretende vencer as resistências ao projeto de transposição São Francisco?

Geddel Vieira Lima: Vou dialogar com todos que queiram conversar. Estou absolutamente aberto a conversar com o bispo (Dom Luiz) Cappio. Chego ao ministério com os editais de licitação lançados. É evidente que podemos aprimorar o projeto.

Valor: Como?

Geddel: Sobretudo, oferecendo aos chamados Estados doadores, que em tese têm alguma resistência às obras, alternativas de investimento que demonstrem de forma clara que o projeto, além de não fazer mal nenhum a esses Estados, inclusive ao meu (a Bahia), pode agregar novas alternativas de desenvolvimento. Chamei a equipe da Codevasf e pedi que fizesse um levantamento imediato para ver a possibilidade de se lançar um programa na linha "Água para Todos". Vou tratar disso com o presidente Lula no momento adequado.

Valor: O que seria esse programa?

Geddel: Falemos da Bahia, por exemplo. Pedi que se percorressem todas as comunidades ribeirinhas do rio numa distância, digamos, de cinco quilômetros em cada margem, e ver o que é preciso fazer para resolver os problemas de desabastecimento de água. É claro que, para levar isso adiante, será preciso fazer uma discussão honesta.

Valor: Como assim?

Geddel: Não dá para querer discutir, como alguns colocam, a universalização dos serviços de água. Quem conhece o Brasil profundamente, sabe que é impossível discutir isso como condição sine qua non para resolver a integração de bacias, que é como eu prefiro chamar a transposição.

Valor: É uma compensação para os Estados doadores?

Geddel: Falar em compensação passa a sensação de que alguém está perdendo. Não é isso. Veja a questão da revitalização do São Francisco. Desde sempre sabemos que o rio das Velhas, o mais importante afluente do São Francisco, vem despejando dejetos da Grande Belo Horizonte no rio. Desde muito sabemos que as matas ciliares estão sendo dizimadas, que não há políticas de reflorestamento nem a devida proteção às nascentes. Mas, o que está fazendo surgir a revitalização, com investimentos de porte que as pessoas ainda desconhecem, é exatamente a discussão sobre a transposição. Por si só, isso já tem sido um ganho para esses Estados.

Valor: Mas os Estados doadores não vão perder?

Geddel: Eles não perdem absolutamente nada do ponto de vista do fornecimento de uma parcela da água retirada. Tenho visto, e eu mesmo já fui vítima disso, aquele lema do "não vi, não conheço, não sei, mas reprovo". Há segmentos no Nordeste que, quando se fala em transposição, têm a sensação de que se está tirando o rio do seu leito e colocando-o em outro lugar.

Valor: A revitalização do rio não teria que vir antes da transposição?

Geddel: A revitalização é fundamental, mas no curto prazo não acrescenta volume à vazão do rio. Cuidar das nascentes, criar as condições de proteção das matas ciliares, desassorear o rio, são iniciativas que vão agregar volume ao rio ao longo dos anos. Uma coisa não exclui a outra. As duas podem ser tocadas ao mesmo tempo. Um exemplo: o abastecimento de água de Salvador é fruto de uma transposição. O rio Paraguaçu, que abastece a cidade, não banha originalmente o município. Imagine se os outros municípios baianos não aceitassem que Salvador tivesse acesso à água.

Valor: A estratégia dos ex-ministros Ciro Gomes e Pedro Brito, para acelerar a transposição, era dar início às obras com o Exército. Esse plano está mantido?

Geddel: Ainda não tive uma conversa objetiva com o presidente sobre esse tema. Estou me preparando para levar a ele preocupações, alternativas e estratégias. Caberá a ele, em última instância, dizer que rumo devemos seguir. Evidentemente, é preciso deixar claro que eu não tenho nenhum compromisso de manter as estratégias estabelecidas pelos ex-ministros Ciro Gomes e Pedro Brito, por mais respeito que tenha por eles.

Valor: A resistência da Bahia à transposição tem caráter político?

Geddel: É uma pressão legítima, natural, para que surjam novos investimentos. Qual é a posição de quem se posiciona contrariamente ao Eixo Norte da transposição, levando água para o Nordeste setentrional? É que podem ser criados novos pólos de irrigação em outras áreas e isso fragilizaria, em tese, os pólos de agricultura irrigada da Bahia. Olha, estou me debruçando com vigor para viabilizar o lançamento dos editais de licitação de parcerias público-privadas para os pólos de agricultura irrigada, no Baixio Irecê e no Salitre. Quando se fala que é uma decisão do governo fazer a interligação de bacias, pergunto sempre no meu Estado: é melhor que isso seja feito por um ministro baiano ou por um não-baiano? Se eu tiver que levar adiante qualquer posição que comprovadamente prejudique ou atrase o desenvolvimento da Bahia, serei entrevistado não mais como ministro, mas como ex-ministro.

Valor: Quanto aos dois eixos previstos na transposição, pode-se começar com um antes do outro?

Geddel: Tudo é possível. Vou apresentar ao presidente alternativas não para inviabilizar o projeto, mas para fazer com que ele não seja levado adiante "na tora".

Valor: O senhor vai tocar adiante o projeto da Transnordestina?

Geddel: Estou convidando para uma conversa o consórcio que está se aglutinando para levar adiante o projeto. Vou mostrar que é fundamental, se não já agora, logo na segunda fase, incluir o oeste da Bahia porque temos lá uma nova fronteira agrícola.

Valor: É um novo ramal?

Geddel: Sim. Seria um ramal passando pela região de Barreiras e ligando-a aos portos da Bahia. Estou há apenas uma semana aqui e já sinalizei vários projetos importantes para meu Estado.

Valor: Um relatório do TCU de 2006 diz que a transposição custará mais do que o valor citado pelo governo (pouco mais de R$ 4 bilhões) e não atenderá ao número de pessoas planejado. Uma das necessidades apontadas pelo relatório é a construção de adutoras nos Estados...

Geddel: Elas têm sido construídas. Já há uma rede de adutoras e de distribuição importante. É claro que precisa fazer mais. Os Estados têm que entrar nesse jogo com as parcerias. Esta é uma das alternativas que quero discutir com o presidente.

Valor: Tanto a transposição quanto a Transnordestina são projetos do fim do século XIX. O que o faz crer que, agora, essas obras sairão do papel?

Geddel: Quando Juscelino falou em construir Brasília, aquilo causou enorme polêmica. Tinha muita gente contra, acusações de que o governo estava jogando dinheiro fora, que a mudança da capital não serviria para nada. Hoje, vemos o quanto Brasília representou em termos de interiorização do desenvolvimento do país, de ocupação do Centro-Oeste. Recentemente, li trecho de uma entrevista de Mário Henrique Simonsen (ministro da Fazenda nos governos Geisel e Figueiredo). Numa visão profética, ele falava sobre o que aconteceria no futuro quando as pessoas descessem os morros do Rio de Janeiro para tomar conta da Zona Sul, em função exatamente da falta de visão sobre o que estava se colocando ali.

Valor: Que relação isso tem com o Nordeste?

Geddel: O que está acontecendo no Nordeste é mais ou menos isso. A região está se tornando inviável e assim ficará se não fizermos esse enfrentamento. Isso que tem ser feito tecnicamente, de forma desapaixonada, analisando-se as alternativas, mostrando que não se pode mais fazer poço artesiano...

Valor: Por que não?

Geddel: Porque já há 25 mil poços artesianos perfurados naquela região. Esta não é mais uma alternativa. Em outros países, já está comprovado também que cisterna não é um mecanismo saudável de fornecimento de água para consumo humano. Vamos promover essas discussões quando o projeto passar a ser conhecido.

Valor: Que discussões?

Geddel: Por exemplo: de onde vem a captação de água no São Francisco? Vem do rio "artificial". O rio normal termina naquele monstro de acumulação de água que é a barragem de Sobradinho. São 34 bilhões de metros cúbicos de água. A transposição estabelece uma tomada de 26 metros cúbicos de água, algo, inclusive, que não é permanente. O que se está criando são condições para se ter uma torneira para regular os açudes do Nordeste setentrional.

Valor: Os açudes já não resolvem o problema?

Geddel: Os açudes são lâminas de água imensas, sujeitas a um grau elevado de evaporação. Hoje, não temos como fazer o manejo correto dessa água. Não se pode usar muito a água do açude porque logo vem uma seca e está criado o problema. Com a alternativa da transposição, pode-se usar a água dos açudes e reduzir o espelho d'água, portanto, a evaporação. Quando vier a seca, abre-se a torneira.

Valor: O Nordeste será a prioridade de sua gestão?

Geddel: O Nordeste tem a menor renda per capita do país. Num país que reconhecidamente tem desigualdades regionais tão brutais, combater essas diferenças é melhorar a vida do país como um todo. Ajudar o Nordeste vai diminuir o êxodo rural, a favelização, a criminalidade. É evidente que temos carência de recursos, no Brasil tudo é prioridade - educação, saúde, segurança pública. Mas, em nome de todas as prioridades, não podemos deixar de reconhecer que precisamos fazer algo pelo Nordeste. Este é o papel que vou exercer sem me esquecer que o ministério é nacional.

Valor: O senhor foi um opositor ferrenho do presidente Lula nos últimos quatro anos. O que mudou para que, hoje, esteja no ministério dele?

Geddel: Mudei eu, mudou o presidente Lula, mudaram as circunstâncias. As coisas evoluem. Rui Barbosa já dizia que até as pedras mudam. Não posso ficar amarrado permanentemente a posições que eventualmente defendi. Se o presidente avança, se suas políticas avançam, se seu próprio partido avança na linha de protagonizar políticas públicas que coincidem com o que eu sempre pensei, não vejo por que não me aproximar. O projeto de convergência que interessa é o destino, não o início. O presidente tem dado demonstrações permanentes de que está olhando para o futuro e não é escravo do passado.

Valor: Dá para garantir que o PMDB votará com o governo?

Geddel: O PMDB tem demonstrado isso. Todas as matérias, inclusive as mais polêmicas, o partido tem votado com o governo de forma majoritária, quando não, unânime. Não tenho dúvida nenhuma de que o partido está imbuído dessa idéia de dar sustentação ao governo Lula para que tenhamos um período de alavancagem do crescimento, de modernização da nossa infra-estrutura. Isso não significa, quero deixar bastante claro, renegar, retirar, modificar nada do que foi feito no passado. O que foi dito, foi dito. Vamos olhar para a frente e construir o futuro.

Valor: Há uma avaliação corrente no Congresso de que as lideranças do PMDB que apóiam o governo não são representativas dos dois partidos.

Geddel: Sou obrigado a repelir essa avaliação. O presidente do PMDB, Michel Temer, foi eleito numa convenção com 82% dos votos. Se isso não é representativo, não sei o que é. Não vamos confundir representatividade com unanimidade. Michel representa, sim, a vontade majoritária do partido, expressa através de suas bases em convenção nacional realizada há 15 dias. Um descontentamento eventual aqui ou ali eu atribuo à parcela da não-unanimidade. Posso assegurar, porque tenho conversado com o presidente Renan Calheiros, com José Sarney e outras lideranças do partido, que o espírito é de busca permanente de unidade.

Valor: O senhor disse que o presidente Lula mudou. Quem é, na sua visão neste momento, o presidente Lula?

Geddel: As pessoas amadurecem, o tempo corrige os defeitos. Vejo o presidente Lula como uma pessoa madura, sem rancor, uma pessoa que não vive, como na linguagem de (Marcel) Proust, debruçada no passado em busca de memórias perdidas no tempo e que sabe que, como presidente da República, tem obrigatoriamente que se comportar como alguém que é contemporâneo do futuro, não escravo do passado. É esse o presidente com quem tenho convivido e que aprendi a admirar.

Valor: Por que o senhor não percebeu isso em 2002?

Geddel: Em 2002, apoiei a candidatura de José Serra porque achava que aquele era o melhor projeto para o Brasil. Perdi as eleições e segui o que as urnas determinaram. Não aderi. Fiquei na oposição, exercendo o meu estilo, com vigor. Em 2006, chegou o momento de renovar o meu mandato e eu propus à sociedade do meu Estado um novo pacto político. Expliquei que, por circunstâncias locais, revi minha posição e estava propondo um novo pacto político. A sociedade aprovou e me consagrou. Vim para a Câmara com quase 300 mil votos. Portanto, estou fazendo agora o que a sociedade do meu Estado determinou: apoiar o governo do presidente Lula.