Título: O governo Lula e a classe média
Autor: Barbosa, Alexandre e Amorim, Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 26/03/2007, Opinião, p. A22

O ano de 2006 terminou com uma torrente de matérias publicadas em boa parte da imprensa nacional denunciando os sofrimentos por que padece a classe média tupiniquim. Por trás dos números e estatísticas, muitos veículos de comunicação deram margem a uma interpretação equivocada, mal escondendo seu reacionarismo.

O diagnóstico viesado pode ser assim resumido: ao drenar recursos para os pobres, via Bolsa Família, o governo Lula teria deixado de lado e mesmo sufocado, com maior carga tributária, a frágil classe média. Esta, então, encolhe e empobrece, enquanto a malta vai ao paraíso. Seríamos, assim, um país de extremos, mas que se aproximam, deixando no meio uma classe média espremida.

Por trás desta interpretação, vários mitos se perpetuam. Porém, o mais grave é o que pressupõe que a renda "dada" aos pobres é retirada da classe média, escondendo algo fundamental e relativamente recente na economia brasileira: a financeirização da riqueza, gerada pela rolagem da dívida pública.

Ora, não há dúvida de que a classe média está encolhendo e empobrecendo. Olhemos alguns números: em 1980, 64,6% da classe média era composta de assalariados, enquanto em 2000, este percentual não passava de 55%. Ou seja, uma parcela não desprezível se converteu em autônomos, geralmente com perda de renda, qualificações e proteção social. Em seguida, a classe média viu diminuir seu tamanho relativo pela primeira vez desde a independência do Brasil. Em 1980, a classe média representava significativos 31,7% da PEA, mas já em 2000, sua participação caiu para 27,1%. Naturalmente isto afetou o seu padrão de consumo. Os gastos tidos como essenciais (habitação, transporte, educação) aumentaram sua importância dentro do seu orçamento, apresentando também a classe média maiores níveis de endividamento.

Mas a causa não deve ser buscada no avanço dos programas sociais direcionados aos segmentos mais pobres da população, e sim no tipo de ajuste a que o setor privado e setor público foram submetidos após o Plano Real. Abriu-se a economia indiscriminadamente à competição externa. Com isso, as empresas, principalmente do setor industrial, foram obrigadas a ajustar-se, fechando suas portas ou a reestruturando-se defensivamente. Isto causou enormes cortes de vagas e taxas recordes de desemprego - aliás, nunca vistas na história republicana. Diante da conseqüente estagnação das taxas de crescimento e do baixo investimento, não se abriram novas vagas para os filhos da classe média e nem para seus pais que haviam perdido o emprego. Esgotou-se, portanto, as chances de mobilidade social ascendente e ceifou-se parcela da classe média existente.

Em suma, é justamente o contrário do que acontecera até 1980, quando a classe média ganhou corpo e se diversificou, ocupando os estratos intermediários das empresas privadas que, enquanto cresciam, sustentavam o vigoroso processo de industrialização brasileiro. A burocracia do setor público, típica camada média, também se ampliou, seguindo tendência similar à verificada nas economias modernas. Não tardou para que profissionais liberais, prestadores de serviços para a própria classe média e outros estratos sociais, também ganhassem espaço e importância.

-------------------------------------------------------------------------------- Enquanto persistir a semi-estagnação econômica, o vácuo na capacidade transformadora da classe média brasileira aumenta --------------------------------------------------------------------------------

Então, por que acusar os programas sociais pelos problemas da classe média? Poderia se alegar - simploriamente - que dada a estagnação da economia, o governo tem feito o leão dos impostos rugir muito alto sobre a classe média e que estes recursos arrecadados beneficiariam apenas os mais pobres. Porém, não é isso que os números mostram. Em primeiro lugar, deve estar claro que os tão condenados gastos com o Bolsa Família representam singelos 5% do que o governo paga em juros da dívida pública, exatamente aquela que o Copom insiste em remunerar a taxas acima de qualquer bom senso. O resultado é a transferência de valores do Estado para os detentores de títulos públicos, permitindo que uma parte da classe média alta, e principalmente os mais ricos, se destaquem do restante da sociedade para viver de rentismo, aí sim, com os impostos de todos.

Olhando a questão por este prisma, o nó do segundo mandato do governo Lula não está em "privilegiar" a classe média, atenuando as "vantagens" concedidas aos mais pobres, mas em engatar um modelo de desenvolvimento que permita equiparar a renda dos de baixo aos ganhos de produtividade da economia. E para gerar ocupações que demandam elevados níveis de escolaridade e pagam maiores salários, o país depende da diversificação e ampliação do setor produtivo, do aprimoramento do padrão de inserção externa e da expansão dos serviços sociais e de infra-estrutura. Enfim, só assim serão geradas novas ocupações de classe média.

Isso não quer dizer que os programas sociais de transferência de renda resolvam todos os problemas. Essa falácia esconde que o enfrentamento da exclusão social depende de vultosos investimentos sociais (escolas, saúde pública, saneamento, habitação, transporte etc), bem acima do nível atualmente praticado. Tanto assim que mesmo a recente melhoria nos indicadores de renda dos grupos mais pobres está associada a outros fatores como o aumento real do salário mínimo, a redução do custo da cesta básica e o crescimento mais vigoroso das regiões de menor PIB per capita, estando apenas indiretamente relacionada com os programas de transferência de renda do governo.

É neste sentido que a expansão contínua da massa salarial, de um lado, e a produção de bens de maior valor agregado nacional e o reforço do investimento público, de outro, podem contribuir para erigir uma nova classe média composta de microempresários empreendedores, funcionários públicos, ativistas sociais e jovens técnicos e profissionais com curso superior. Trata-se de um processo de revitalização da economia de mercado, favorecendo e elevando a participação na renda total de todos aqueles que vivem de trabalho.

O mais preocupante, contudo, é que enquanto persistir o quadro de semi-estagnação econômica hoje vigente, abre-se cada vez mais um vácuo na capacidade transformadora da classe média brasileira: uma parte se vincula aos poderosos, buscando sucesso rápido e olhando para baixo com ojeriza, senão pavor; enquanto uma outra vai vivendo de "bicos", se conformando com a perda de seus ativos intelectuais e culturais. Esta bifurcação leva a atitudes individualistas ou suicidas, perdendo a classe média o seu substrato republicano.

Portanto, ao invés de se encarar o destino recente da classe média como resultado deste ou daquele governo, devemos ser capazes de entendê-lo como expressão dos dilemas nacionais. Não é empobrecendo os ricos em geral ou deixando de investir nos pobres que se reerguerá a classe média brasileira. Devemos olhar para os mecanismos de expansão da economia e de distribuição da renda. Só uma nação mais justa é capaz de potencializar a renovação da classe média brasileira.